Não se pode pedir lembrança de tudo o que se leu. Não li muito e muito menos li tudo o que gostaria de ter lido. Aliás, um desgosto meu me vem da minha biblioteca: olho-a e sei que terei que fazer escolhas; não há tempo para cumpri-la toda. Quer dizer, eu vou morrer deixando livros pelo caminho. E minha ideia de morrer não é a de ir para outro lugar.
Nem aos crédulos persiste a hipótese outro lugar, porque, se cressem nisso, para honestar a crença, não se angustiariam com a certeza da morte. Alguém quer deixar as coisas de que gosta e mesmo as de que não gosta? Crédulos, se botassem fé na sua crença morreriam felizes, porque seguros do paraíso, coisa em que ninguém confia tanto assim.
Mas eu falava sobre lembrar textos e autorias. É que não recordo quem escreveu que muita gente vê seu sol se pôr antes do seu ocaso. É uma destas frases afortunadas da literatura que encerra um grande conteúdo existencial. Entendo-a como referindo a pessoas que ainda não estão tecnicamente mortas, mas que já se apartaram dos prazeres da vida.
Gente que não morreu, mas que não vive. Não sei o que ocorre com suas ganas, seus sonhos. Gente matriculada na televisão, no celular, no computador; carente de uma mesa de jogos; dada a porres, a excesso de comer; viciada em trabalho, ou em diversão. Essa gente afogou a natureza que o animal humano preserva em um psiquismo maltratado.
Acredita-se que a natureza seja sábia. Discrepo, dado que a natureza não é sujeito, mas objeto de conhecimento, contudo, vá lá, para argumentar, fico com o ditado popular: “A natureza é sábia”. Pois bem, na natureza, nenhum animal sadio presta-se a estes maçantes e deletérios comportamentos; todos estão muito ocupados satisfazendo seus instintos.
Na natureza (reporto-me à condição biológica) machos gostam de fêmeas enquanto fêmeas se satisfazem em serem procuradas por machos. Na selva, machos disputam fêmeas como podem. Além do desforço físico, com lutas até a morte, todos os animais têm estratégias de sedução. Há danças, cantos, oferta de comida, defesa de território etc.
Os animais humanos ao se irem humanizando (cultura) derivaram seus recursos atrativos para adornos, vestes, habitação, postos de comando etc. Dias de hoje, não obstante as conquistas feministas e superação da binaridade que democratizou a variação de gênero, ainda é mais do macho (já homem) que da fêmea (já mulher) o gravame de “dar” condição.
Explico: a civilização já declarou igualdade de direito às mulheres, mas ainda não autorizou os homens a se dispensarem de suas “obrigações”. Se contemporaneamente, homens, mulheres e os vários gêneros exercitam o poder dos jogos de sedução, ainda os homens se fazem apresentar por automóveis e exibem cartão de crédito como “argumento”.
Retomo a vida em estado primitivo. Na sábia natureza, os machos, todos os machos, só param de acasalar, de procurar as fêmeas quando são vencidos pela velhice, ou, mais exatamente, por outro macho mais forte, geralmente mais novo. Mas, na igualmente sábia civilização, isto é problema, em boa parte, resolvido. Dá para mitigar os prejuízos do tempo.
Há tratamento de beleza, cirurgia plástica, reposição hormonal, academia, e o que mais a imaginação e a ciência permitirem. Não é imperativo o pôr-do-sol antes do ocaso. Inexiste causa para entregar-se à televisão e a aplicativos. Não há nenhum motivo para tanto ócio, tanto porre, tanta comida. Há bastante razão para viver a vida, para passear, para namorar.
Homens, mulheres, os variados gêneros que a democracia sexual permite, todos gostamos de sexo, de festa, de vida. Que acontece, então, com os tristes tipos referidos acima? Sendo oprimidos por uma má interpretação do que seria civilização, acabam, quando têm poder opressor, vítimas da própria opressão que lançam ao mundo, querendo controlá-lo.
Toda civilização produz mandamentos valorativos postos em circulação que são introjetados, norteando comportamentos individuais. Mas os imperativos morais necessários à vida em comum foram exacerbados, convertendo-se em repressão, basicamente repressão sexual, inibindo a pulsão de vida, o erotismo que nos alegra, que nos move a existência.
É dizer: conquanto haja esforços e sucessos na liberação dos costumes, admitindo que aflorem formas diversas de sexualidade e de relacionamento sexual, indivíduos e grupos sociais reprimidos, na ânsia de impor seu modo de existir ao mundo, buscam poder e, se logram êxito – e têm logrado –, convertem interditos pessoais em censuras públicas.
Contradição do nosso tempo: mulheres empoderadas, homens liberados da obrigação de provedor, gêneros vários podendo se expressar. Condições de leveza do existir. Só que não: lembro do Renascimento que gestou a Inquisição. Afloram o esclarecimento e as franquias libertárias, mas afloram também os reacionarismos, as censuras, as religiosidades.
Reclames por “moral”. Cultura hipócrita, Superego doentio. A moralidade prestante a garantir a paz é torcida em moralismo odiento. Natureza reprimida, sequelas no Id. Na natureza não há animal obeso, bêbado, depressivo, infeliz. Somos natureza mais cultura. Na natureza se vive. Na cultura há o gosto pela vida. Evite seu ocaso antes do seu pôr do sol.
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