Obstrução da justiça ou direito de defesa?

05/07/2017

Por José E. da C. Fontenelle Neto - 05/07/2017

O crime de obstrução à investigação de organização criminosa (denominado pela imprensa de crime de obstrução da Justiça) ganhou (novamente) relevância na República brasileira, em virtude de outro fato que seria inédito (além da prisão de um Senador em exercício pela prática deste delito – ex-Senador Delcídio do Amaral[1]), a possível denúncia contra o Presidente da República em exercício em virtude deste delito.

O fato que se apura, em tese, é que o Presidente da República em exercício, sr. Michel Temer, teria comprado (ou determinado à compra ao delator Joesley Batista) o silêncio do ex-Deputado Eduardo Cunha, impedindo, assim, que a Procuradoria da República fizesse com ele um acordo de delação/colaboração premiada.

Portanto, ao que tudo indica, em havendo indícios de tal conluio para sustento do ex-parlamentar em troca de seu não auxílio aos órgãos de investigação, o Presidente em exercício será denunciado.

Assim, imputar-se-á ao Presidente da República em exercício a prática de obstrução à investigação envolvendo organização criminosa, que possui o seguinte núcleo típico: “impede ou, de qualquer forma, embaraça a investigação de infração penal que envolva organização criminosa” (Art. 2.º, § 1.º, da Lei 12.850/2013).

O ponto nevrálgico da questão, penso, não seria se houve ou não o referido ato (o conluio para impedir a delação), mas, sim, se estes fatos se amoldariam à figura típica imputada ou, diversamente, seria mero exercício de direito de defesa, direito consagrado constitucionalmente (art. 5.º inciso LV, da CRFB/88).

Pois bem. Sendo assim, é indissociável à discussão uma análise acerca do instituto da delação/colaboração premiada.

A delação premiada, instituto de importância e relevância empiricamente demonstrada, é fruto de importação de institutos (principalmente estadunidenses) que, acertadamente, entendem o processo penal de forma dialética e contraditória, ou seja, um processo de partes.

Nesse sentido, o pano de fundo da teoria é o paradigma da disponibilidade dos direito (de defesa, de ação e de punição), em prol de uma negociação, onde ambas as partes (parciais, portanto) querem maximizar os seus ganhos, seja como Estado Acusador/Sancionador, com uma maior punição dos demais agentes; seja como particular, na sua redução de pena.

Portanto, penso que a melhor ótica para visualizar a matéria seja a teoria dos jogos, onde os jogadores, com recursos limitados, querem maximizar seus ganhos e minimizar suas perdas, conforme destaca Alexandre Morais da Rosa:

Para fins de abordagem, a teoria dos jogos parte do sujeito reduzido ao indivíduo, concepção que deslocarei para o sujeito mais adiante (5.1.). As noções de indivíduo otimizador (2.2.) é ponto de partida da análise econômica. O senso comum acaba compreendendo-o como um egoísta estúpido. Entretanto, a satisfação de suas próprias referencias implica, em todos nós, a possibilidade de imputação de indivíduo otimizador, desde querer auxiliar ao próximo, não fazer nada, ganhar dinheiro, vencer um jogo processual penal ou buscar prazer. Enfim, somente a partir desta noção (autointeresse) é que se compreendem as noções de microeconomia[2]

E mais especificamente sobre a delação premiada:

Delatar ou não delatar é o dilema, reiterado pelos prisioneiros (2.6.), dado que o colaborador terá que assumir as consequências diretas e as externalidades (positivas e negativas), a saber, os efeitos para com terceiros, tanto delatores como familiares, sócios, amigos, enfim, toda gama de relações sociais que não será, definitivamente, mais a mesma. A cadeia de decisões prévias À negociação de delação/colaboração decorre de uma análise econômica de custos/benefícios, não exclusivamente econômico/financeiro, mas de reputação, projeção, de futuro, impactos positivos e/ou negativos, não só individualmente e sim do ponto de vista familiar e coletivo (12.1). a decisão sobre delatar/colaborar envolve muito mais do que decisão individual. Gera efeitos para todos os familiares, empregados, amigos, terceiros, enfim, externalidades negativas e positivas. O cálculo será sempre se os custos imaginados serão menores do que os benefícios obtidos[3] (9.2.3.5).

Por oportuno, vale destacar que em virtude de avanços civilizatórios (sempre ameaçados por reacionários de plantão, frise-se) não é possível mais se falar em torturas para a captação de cooperação (embora ainda hajam as estratégias de pressão[4]), motivo pelo qual se consagrou, em todas as legislações que preveem benefícios por colaboração, que esta deve se dar espontaneamente. Ou seja, consagrou-se que a colaboração é um direito, jamais um dever.

Além do mais, o princípio nemo tenetur se detergere (nada temer ao se omitir), consagrado na Constituição da República como direito ao silêncio, implica que qualquer acusado jamais poderá ter ônus algum por sua atitude passiva, conforme aduz a doutrina:

O direito ao silêncio é apenas uma manifestação de uma garantia muito maior, inculpida no princípio nemo tenetur se detergere, segundo o qual o sujeito passivo não pode sofrer nenhum prejuízo jurídico por omitir-se de colaborar em uma atividade probatória de acusação ou por exercer seu direito de silêncio quando do interrogatório.

Sublinhe-se: do exercício do direito de silêncio não pode nascer não pode nascer nenhuma presunção de culpabilidade ou qualquer tipo de prejuízo jurídico ao imputado[5].

Por outro lado, investigação criminal é a busca, por parte das agências oficiais de persecução penal (Polícia e Ministério Público, jamais Poder Judiciário, frise-se), de material probatório apto a ensejar a responsabilização dos eventuais autores de uma infração penal.

Portanto, malgrado a delação/colaboração premiada seja, de fato, um meio de obtenção de prova, ela não é meio de prova, o que é sobremaneira diferente, eis que a palavra de delatores, ainda que em grande número, por si só, não podem ensejar condenação.

Outrossim, conforme se vislumbra, quem possui o mister de investigar são as agências oficiais, sendo eventual colaboração um plus, que pode, ou não, ser aceita, inclusive.

Assim, em virtude do princípio acusatório, que é reforçado na leitura de um processo que aceita a colaboração premiada, porquanto vislumbra as partes como parciais e o juiz como um terceiro alheio, a outorga de vantagens ao criminoso capturado, para que este não entregue os demais coautores, deve ser visto como exercício do direito de defesa.

Afinal, a delação/colaboração premiada, a partir de uma leitura acusatória e democrática, deve ser vista como um negócio entre partes iguais (daí a necessidade de defesa junto ao acordo), motivo pelo qual a ação de coautores tende a servir como mais uma oferta por uma mesma demanda, ou seja, mais um mecanismo de aumento de recompensas... E segue-se a lei do mercado[6].

Obstrução à investigação seria, então, qualquer ato tendente a impedir que as agências oficiais cumpram seu mister ou, ainda, que eventuais terceiros (alheios aos fatos e com dever de dizer a verdade) mintam ou se omitam sobre fatos que sabem.

O acusado (não delator), por sua vez, possui o direito de dar a sua versão (ainda que mentirosa) dos fatos, possui o direito de não dar versão alguma, sendo que o seu agir será regulado por apenas uma máxima: “maximização de recompensas”.

Optar por dinheiro de um coautor ou pelo benefício de redução de pena, é uma questão de consciência, ou de conveniência.

Sendo assim, é de se concluir que, diante de um processo de partes, a busca de mecanismos para desestimular a delação de coautor não pode ser tida, por si só, como fato típico.

Não obstante, é plenamente possível a prática de crimes como meio de outorga dessas recompensas (eventual doação, por exemplo, feita neste âmbito sem o devido recolhimento de impostos pode se amoldar à figura de sonegação), todavia, o que se esta a discutir é a tipicidade da prática de “compra de silêncio”, o que entendemos, por si só, não constituir crime.


Notas e Referências:

[1] Nesse sentido, (re)lembra-se que o Senador Delcídio do Amaral teve sua prisão preventiva decretada em virtude da prática de suposto crime de obstrução à investigação sobre organização criminosa, por estar esta buscando impedir a delação premiada de Nestor Cerveró. Sobre o assunto: <https://www.cartacapital.com.br/politica/lava-jato-senador-e-banqueiro-sao-presos-pela-pf-5219.html>.

[2] MORAIS DA ROSA, Alexandre. Guia do processo penal conforme a teoria dos jogos.4.ª ed. rev. atual. ampl. Santa Catarina: Empório do Direito, 2017, p. 68/69.

[3] MORAIS DA ROSA, Alexandre. Guia do processo penal conforme a teoria dos jogos.4.ª ed. rev. atual. ampl. Santa Catarina: Empório do Direito, 2017, p. 546/547.

[4] MORAIS DA ROSA, Alexandre. Guia do processo penal conforme a teoria dos jogos.4.ª ed. rev. atual. ampl. Santa Catarina: Empório do Direito, 2017, p. 558/562.

[5] LOPES JR., Aury. Direito processual penal. 9.ª edição. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 251.

[6] MORAIS DA ROSA, Alexandre. Guia do processo penal conforme a teoria dos jogos.4.ª ed. rev. atual. ampl. Santa Catarina: Empório do Direito, 2017, p. 527: “A colaboração/delação premiada é o mecanismo pelo qual o Estado autoriza, no jogo processual, por mecanismo de barganha (17.3.1), o estabelecimento de um ‘mercado judicial’, pelo qual o colaborador, assistido por advogado, negocia com o Delegado de Polícia e/ou Ministério Público, informações capazes de autoincriminar o agente e carrear elementos contra terceiros”.


José E. da C. Fontenelle Neto. José E. da C. Fontenelle Neto é mestrando em Ciências Jurídicas pela Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI. Pós-graduado em Direito Penal e Criminologia pelo Instituto de Criminologia e Política Criminal – ICPC/UNINTER. Graduado em Direito pela Universidade da Região de Joinville – UNIVILLE. Advogado no escritório Fontenelle Neto Advocacia e Consultoria. E-mail jedneto2@hotmail.com 


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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