Obstrução da justiça não é crime – Por Ricardo Antonio Andreucci

09/06/2016

É isso mesmo. Não há, no Brasil, nenhum dispositivo legal que tipifique a obstrução da justiça como crime.

A integridade do sistema judicial depende da participação honesta e sem medo de represálias de todos os envolvidos em um caso que esteja sendo investigado ou processado.

Mentir ao juiz, tentar constranger uma testemunha, encorajar ou participar da destruição de provas, intimidações e retaliações de toda natureza contra quem participa de um processo, interferência de maneira inadequada no trâmite das investigações ou no trâmite processual são exemplos claros de obstrução da justiça no direito norte americano.

Nos Estados Unidos, o crime de obstrução da justiça nas cortes federais é tipificado das mais diversas formas (18 U.S.C.A., Chapter 73, §§ 1501-1517), indo desde a obstrução às ordens da corte (a nossa desobediência – art. 330 do Código Penal) até a retaliação (vingança) contra um juiz federal (muito parecida com a nossa coação no curso do processo – art. 344 do Código Penal).

Além disso, no direito norte americano, há várias outras modalidades de obstrução da justiça tipificadas em leis estaduais, que atendem às peculiaridades locais de cada estado da federação.

No estado de Ohio, por exemplo, a “Ohio State Bar Association”, espécie de seção estadual da OAB, considera como obstrução da justiça “any act that is intended to interfere with the administration of justice”, esclarecendo que “there are many different kinds of obstruction of justice that are covered by different federal and state statutes. For example, separate federal statutes cover obstruction of court orders, obstruction of criminal investigations, obstruction of state and local law enforcement of gambling statutes, and tampering with or retaliating against witnesses, victims and informants.”

Além disso, a “Ohio State Bar Association” elenca, como outras hipóteses de obstrução da justiça, qualquer ato tendente a evitar descoberta, prisão, condenação ou punição de qualquer pessoa que haja cometido um crime, incluindo assassinato, intimidação, uso de força física contra alguém (testemunhas, por exemplo), participantes do processo judicial ou da investigação policial. Esconder evidências, segundo a OSBA, é uma forma de obstrução da justiça.

Inclusive, há muitas críticas dos juristas norte americanos à amplitude da concepção de “obstrução da justiça”, que faz com que um cidadão possa ser detido simplesmente por se insurgir contra uma prisão ilegal feita por um policial, em evidente abuso de autoridade. Quem não coopera com a polícia, pode ser preso e acusado de obstrução da justiça.

Percebe-se, portanto, que, sob o manto da “obstrução da justiça”, se encontram vários crimes contra a administração pública e contra a administração da justiça, que, no Brasil, já são tipificados no Código Penal, tais como resistência (art. 329 do CP), desobediência (art. 330 do CP), coação no curso do processo (art. 344 do CP), falso testemunho (art. 342 do CP), favorecimento pessoal (art. 348 do CP), favorecimento real (art. 349 do CP), fraude processual (art. 347 do CP), dentre outros.

Merece destacar que, no Brasil, o Decreto nº 5.687, de 31 de janeiro de 2006, promulgou a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, adotada pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 31 de outubro de 2003 e assinada pelo Brasil em 9 de dezembro de 2003. Referida convenção, em seu artigo 25, estabelece que cada Estado Parte deve adotar as medidas legislativas e de outras índoles que sejam necessárias para qualificar como delito a obstrução da justiça.

Assim, não obstante já conter a legislação penal pátria inúmeros tipos penais que poderiam muito bem abrigar as condutas configuradoras da “obstrução da justiça”, tramita na Câmara dos Deputados, aguardando apreciação do plenário, o Projeto de Lei nº 3.180-A, de 2004, de autoria do então deputado federal Antonio Carlos Biscaia (PT-RJ), inclusive com aprovação pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania, que propõe seja inserido no Código Penal o art. 329-A, sob o nomen iuris obstrução, com a seguinte tipificação:

“Art. 329-A – Impedir, embaraçar, retardar ou de qualquer forma obstruir cumprimento de ordem judicial ou ação de autoridade policial em investigação criminal:

Pena: detenção de 1(um) ano a 3(três) anos, e multa.

Parágrafo único. A pena é aumentada de um terço se a ordem judicial ou a ação policial não se realizam em razão da obstrução.”

Como se pode observar, não obstante a louvável iniciativa legislativa, a redação do tipo penal não é das melhores, confundindo-se mesmo com o crime de desobediência e revelando uma espécie de resistência sem violência ou ameaça, restringindo indevidamente o espectro de alcance da norma, tornando-a despicienda.

Melhor seria, portanto, a meu ver, a manutenção do quadro legal já existente, até para que se possibilite uma discussão mais ampla sobre o assunto, evitando-se a criação de mais um tipo penal que em nada irá contribuir para o incremento do arcabouço penal pátrio.


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