1. Funções desempenhadas pela investigação preliminar
Toda apuração criminal decorre de uma suspeita da prática de um delito.
Este, por atentar contra um bem jurídico fundamental, seja ao indivíduo, seja à convivência social, não pode ficar impune.
As infrações penais, como exemplo, o homicídio, o estupro, ou crimes patrimoniais, especialmente aqueles que envolvam violência, causam forte abalo social, devendo tais atos ser reprimidos para a própria manutenção social. Sem uma resposta cabal do Estado, não haveria freio a fim de impedir – ou, ao menos, tentar desestimular que condutas desta mesma magnitude se repitam com frequência.
Daí a finalidade preventiva do próprio Direito Penal, sendo que Direito Penal Material e Processo Penal devem ser pensados em conjunto.
A necessidade de sanção criminal, para cumprir os fins de proteção de bens jurídicos, evitando a prática de novos crimes (efeito preventivo), deve ocorrer apenas quando estiver configurada e comprovada a prática da infração penal.
Excetuadas as situações em que o fato criminoso foi filmado ou presenciado em público, estando evidenciado, de forma, mais ou menos, cristalina, este sempre é um dado bastante nebuloso, incerto, duvidoso, sendo imprescindível, portanto, uma averiguação preliminar para certificar a sua ocorrência.
Parte-se, portanto, em toda e qualquer investigação (em 99% delas), de um juízo de ignorância, que, aos poucos, vai coletando elementos a fim de que se chegue a alguma convicção acerca dos fatos, partindo-se de um juízo de suspeita em direção a um juízo de probabilidade quanto à ocorrência do fato.
Trata-se do que chama o Professor Antonio Scarance Fernandes, em suas aulas, na USP, de juízos progressivos de imputação, também desenvolvido em seus trabalhos acadêmicos.
Justamente por não conhecer o fato a ser investigado, em sua inteireza, todo evento, a respeito do qual haja suspeitas da prática de crime, necessita de uma investigação prévia, de modo a evitar que alguém seja acusado e até punido injustamente.
Uma investigação preliminar, neste sentido, cumpre uma função de garantia, como proteção daquele que poderá ser futuramente acusado, evitando-se, assim, com a apuração prévia levada a cabo por meio de um inquérito, acusações infundadas ou levianas.
O inquérito policial não deixa de constituir proteção para o investigado, como consta da Exposição de Motivos do Código de Processo Penal de 1941, pois serve para evitar juízos apressados quanto à prática de infração penal, pretendendo-se, portanto, evitar, ao máximo possível, que alguém seja acusado injustamente.
“há em favor do inquérito policial, como instrução provisória antecedendo a propositura da ação penal, um argumento dificilmente contestável: é ele uma garantia contra apressados e errôneos juízos, formados quando ainda persiste a trepidação moral causada pelo crime ou antes que seja possível uma exata visão de conjunto dos fatos, nas suas circunstâncias objetivas e subjetivas. Por mais perspicaz e circunspeta, a autoridade que dirige a investigação inicial, quando ainda perdura o alarme provocado pelo crime, está sujeita a equívocos ou falsos juízos a priori, ou a sugestões tendenciosas. Não raro, é preciso voltar atrás, refazer tudo, para que a investigação se oriente no rumo certo, até então despercebido. Por que, então, abolir‑se o inquérito preliminar ou instrução provisória, expondo‑se a justiça criminal aos azares do detetivismo, às marchas e contramarchas de uma instrução imediata e única? Pode ser mais expedito o sistema de unidade de instrução, mas o nosso sistema tradicional, com o inquérito preparatório, assegura uma justiça menos aleatória, mais prudente e serena” (Exposição de motivos do CPP)
Por outro lado, na esteira das pertinentes lições do Professor Aury Lopes Júnior, a pronta investigação do fato, por uma autoridade, ainda que policial, cumpre a função de dar uma imediata resposta para a sociedade (ou de então se passar a sensação de que algo está sendo feito, ainda que simbolicamente), mostrando que as autoridades estão agindo e trabalhando para prevenir o crime.
Geralmente, a Autoridade Policial, o Delegado de Polícia, é um profissional mais próximo do povo e mais acessível se comparado a um juiz ou promotor, mais distante da população em geral.
Nosso modelo de apuração preliminar, já que concretizado, em maior parte, por um delegado de polícia, é um modelo interessante.
Por fim, não menos importante, a investigação preliminar desempenha uma função acautelatória, haja vista o escopo de resguardar o corpo de delito, isto é, os vestígios deixados pelo evento, a fim de não se perderem.
2. Várias espécies de investigação preliminar
Geralmente, o instrumento apto para levar a termo a investigação preliminar é um procedimento presidido pela autoridade policial - que é a autoridade competente para apurar infrações penais – sendo instaurado um inquérito policial, meio este mais comum de se investigar um fato, em tese, delituoso.
Há casos, entretanto, em que outros tipos de investigação podem fazer o papel deste procedimento criminal, não sendo necessário instaurar um inquérito perante o Delegado de Polícia.
A investigação preliminar, nesse sentido, é gênero que engloba, em seu bojo, diversas espécies de investigação.
A principal forma de investigação preliminar é o inquérito instaurado perante a Polícia Judiciária, seja na esfera federal ou na esfera estadual.
Assim está previsto no artigo 4.º, do Código de Processo Penal, ao dispor que “a polícia judiciária será exercida pelas autoridades policiais no território de suas respectivas circunscrições e terá por fim a apuração das infrações penais e da sua autoria”.
Isso não exclui a possibilidade de haver outras formas de investigação prévia, a exemplo do que dispõe o artigo 4.º, parágrafo único, do Código de Processo Penal, no sentido de que “a competência definida neste artigo não excluirá a de autoridades administrativas, a qual por lei seja cometida a mesma função”.
Embora não seja função das demais autoridades (administrativas) investigar a prática de crime, não raras vezes, quando da abertura de algum tipo de procedimento administrativo, o responsável se depara com indícios da prática de crime, devendo, por dever de ofício, levar o fato a conhecimento das autoridades.
Neste caso, o objetivo do procedimento administrativo nunca foi apurar um ilícito penal, mas sim um fato antijurídico de ordem administrativa (por exemplo, uma falta disciplinar), sendo certo que, no curso deste procedimento, elementos indiciários de crime podem ser descobertos, de modo incidental, levando à dedução de uma ação penal, sem necessidade de instauração de um inquérito policial.
Outra hipótese: imagine uma Comissão Parlamentar de Inquérito[2], cujo escopo principal é averiguar determinado fato político de interesse público, mas que pode, eventualmente, fornecer elementos da prática de alguma infração penal.
Ora, havendo indícios suficientes da prática de crime, talvez não se mostre necessária a instauração de outra investigação para se apurar o mesmo fato, pois que, em uma análise preliminar, já houve a adequada apuração do fato, permitindo-se a dedução de uma acusação formal.
Há outros inúmeros exemplos de procedimentos que podem levar à dedução de uma acusação criminal sem que tivesse sido necessária a instauração de um inquérito policial, como ocorre, até com certa frequência, em âmbito tributário, na qual, para a própria constituição do débito tributário, é instaurado um procedimento administrativo fiscal.
Muito embora o foco desta apuração esteja relacionado à existência ou não de tributo a recolher, perante o Fisco, não é incomum constatar a ocorrência de eventual crime, podendo ser proposta uma ação penal, sem a necessidade da instauração de um inquérito policial.
Em todos os casos citados, o inquérito policial acaba sendo dispensável, seja porque o fato acabou sendo apurado em outro procedimento, seja porque não foi necessário colher maiores elementos da prática de crime.
Também nos crimes de menor potencial ofensivo, aqueles em que a pena máxima, para os crimes, não ultrapassa dois anos, ou nas contravenções penais, (art. 61, da Lei 9.099/95[3]), não há, via de regra, a instauração de inquérito policial.
Neste caso, ocorre a lavratura de um ato denominado como “Termo Circunstanciado” (artigo 69, da lei), uma espécie de boletim de ocorrência mais elaborado, passando-se à designação de audiência preliminar, para a proposta de um acordo, designado transação penal. Somente na hipótese de não ser possível o acordo, nos termos da Lei dos Juizados Especiais Criminais, é que haverá a eventual dedução de uma acusação criminal.
Outrossim, não será instaurado inquérito policial quando se apurarem crimes praticados por membro do Ministério Público ou de membro do próprio Poder Judiciário, sendo tudo investigado em procedimento instaurado perante a instituição a que pertence o membro do Ministério Público ou o magistrado (sendo este investigado perante um inquérito chamado judicial).
Também é possível investigação levada a efeito pelo próprio Ministério Público, em procedimento presidido por este órgão.
No passado, os poderes investigatórios do Ministério Público já foram mais discutidos, sendo que, recentemente, passou-se a admitir amplamente tal forma de investigação, eis a conclusão de que se o Ministério Público pode acusar, obviamente também deve ter o direito de investigar (até para poder exercer a sua função acusatória), na esteira do entendimento esposado pelo Supremo Tribunal Federal, com relação aos poderes implícitos de investigação do Ministério Público, sobretudo naqueles casos em que a investigação pela autoridade policial restaria comprometida (pense-se na apuração de crime envolvendo a própria polícia)
“A controvérsia a respeito da legitimidade constitucional do poder de investigação do Ministério Público está pacificada no âmbito desta Corte. Em 14/5/2015, o Plenário, ao concluir o julgamento do RE 593.727/MG, fixou a seguinte tese: “o Ministério Público dispõe de competência para promover, por autoridade própria, e por prazo razoável, investigações de natureza penal, desde que respeitados os direitos e garantias que assistem a qualquer indiciado ou a qualquer pessoa sob investigação do Estado, observadas, sempre, por seus agentes, as hipóteses de reserva constitucional de jurisdição e, também, as prerrogativas profissionais de que se acham investidos, em nosso País, os Advogados (Lei 8.906/94, artigo 7º, notadamente os incisos I, II, III, XI, XIII, XIV e XIX), sem prejuízo da possibilidade sempre presente no Estado democrático de Direito do permanente controle jurisdicional dos atos, necessariamente documentados (Súmula Vinculante 14), praticados pelos membros dessa instituição”. 5. Agravo regimental a que se nega provimento” (STF, ARE 1118544 AgR, Relator(a): Min. ALEXANDRE DE MORAES, Primeira Turma, julgado em 29/06/2018, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-157 DIVULG 03-08-2018 PUBLIC 06-08-2018)
Há alguns anos, a jurisprudência tendia a se encaminhar para não se admitir a possibilidade de investigações realizadas de modo direto pelo Ministério Público, considerando inválido esse tipo de procedimento (a respeito, confira-se: STF, RHC 81.326/DF, Ministro Relator Nelson Jobim, 2.ª T., j. 06.05.2003, v.u).
Recentemente, contudo, os Tribunais Superiores têm entendido que é possível esse tipo de investigação, especialmente nos casos em que não seja recomendável que a apuração se efetive apenas e tão-somente na polícia (por exemplo, quando houver a suspeita da prática de crimes cometidos pela própria polícia, não sendo conveniente que a própria investigue).
Nesse sentido, essa já tinha sido a linha de entendimento adotada pelo Supremo Tribunal Federal, ao admitir que o Ministério Público proceda a diligências de cunho investigatório: STF 93930/RJ, Ministro Relator Gilmar Mendes, 2.ª T., j. 07.12.2010, v.u. O assunto, recentemente, teve, aliás, reconhecida sua repercussão geral: STF, RG no RE 593.727/MG, Ministro Relator Cezar Peluso, Pleno, j. 27.08.2009.
No Superior Tribunal de Justiça, entende-se que é admissível a existência de atos investigatórios realizados pelo próprio Ministério Público: STJ, RHC 37.798/MG, Ministro Relator Marco Aurélio Bellizze, 5.ª T., j. 25.06.2013, v.u; STJ, Ag.Rg. no REsp 897.070/MG, Ministra Relatora Assusete Magalhães, 6. T., j. 16.04.2013, v.u; STJ, HC 57.118/RJ, Ministra Relatora Maria Thereza de Assis Moura, 6.ª T., j. 1º.10.2009, v.u. (a Ministra Maria Thereza de Assis Moura, contudo, apesar de votar com a Turma, ressalva entendimento pessoal de ser contrária ao poder investigatório do Parquet); STJ, APN 345/AP, Ministro Relator Gilson Dipp, Corte Especial, j. 20.04.2005, v.u.
Pontua-se, em geral, que o inquérito se destina à opinio delicti do Ministério Público e que os elementos indiciários da prática de delito podem se originar de outros procedimentos distintos do inquérito policial, o que denotaria que a investigação não seria atribuição exclusiva da polícia; além disso, acrescenta-se que nada impede que o Parquet acompanhe diligências investigatórias (como, a propósito, consta do at. 26, IV, da Lei 8.625/93), requisite diligências, sendo que a sua presença, ao invés de atrapalhar as investigações, implicaria uma desejável e profícua cooperação à atividade da polícia.
Alega-se que a própria Constituição outorga possibilidade de investigação pelo Ministério Público (artigo 129, inciso VIII e inciso IX, da Constituição da República), sendo que, ainda que assim não se pudesse entender, ela estaria dentro das funções institucionais do Parquet.
Ada Pellegrini Grinover, na doutrina, entendia que seria possível sim o ordenamento instituir funções investigativas ao Ministério Público, desde que o fizesse por lei complementar: contudo, a Autora ressalvava que, apesar de possível, não seria recomendável, ante a falta de estrutura do Ministério Público para assumir o controle da investigação, o que implicaria uma “insustentável seleção de casos”[4].
Na doutrina, muitos autores, na esteira do Professor Maurício Zanoide de Moraes, entre outros Autores de grande prestígio na doutrina[5] mostram-se reticentes ao poder investigatório que se quer conferir ao Ministério Público, tratando-se, contudo, de posicionamento bastante ponderado, mas que não é corroborada na jurisprudência, já que se tem conferido, de certa forma, até um amplo poder investigatório ao Ministério Público.
A importância de todas essas formas de investigação é que elas podem servir de arrimo para a propositura de uma eventual acusação formal perante o Poder Judiciário.
Por isso, para a averiguação de um ilícito penal, nem sempre será necessária a instauração de um inquérito policial, já que, diante das peças encaminhadas por alguém (seja pela vítima, seja mesmo por terceiros ou até por autoridades em relação às quais coube apuração do fato, em sede administrativa), o agente competente para acusar – que na maioria dos casos é o Ministério Público - poderá, desde logo, oferecer a sua acusação formal, também denominada por denúncia.
A esse respeito, dispõe o artigo 27, do Código de Processo Penal, que “qualquer pessoa do povo poderá provocar a iniciativa do Ministério Público, nos casos em que caiba a ação pública, fornecendo-lhe por escrito, informações sobre o fato e autoria e indicando o tempo, o lugar e os elementos de convicção”.
Evidentemente, feitas estas observações, o estudo, a partir deste momento, será focado no Inquérito Policial.
3. Inquérito Policial: Procedimento administrativo em sua forma, cuja finalidade é a apuração do fato em toda sua integralidade
Por se tratar de procedimento mais informal – melhor dizendo, ele é formal, mas não tão formal como um processo penal - a averiguação se dá em um veículo não engessado como seria o processo, havendo uma maior liberdade por parte de quem investiga para apurar todos os fatos e circunstâncias para elucidação do ocorrido. E assim deve ser, pois, a rigor, neste momento, no início das investigações, os fatos ainda estão muito nebulosos, não estando certa qual será a linha de investigação a ser tomada, conferindo-se essa maior informalidade, tendo em vista escopo quanto a uma maior agilidade ao procedimento.
A investigação preliminar, quando existente (como dito, nem sempre haverá necessidade de instauração de um inquérito policial formal, sendo o IP dispensável), é conduzida em meio a um procedimento de cunho administrativo, mais informal. Com isso, nosso sistema não adotou o modelo Misto Francês de investigação, em que se dispensaria a investigação preliminar, permitindo-se até mesmo ao juiz a investigação do fato delituoso, em um procedimento secreto.
A doutrina mais tradicional, ao tratar do inquérito policial, sempre discorreu que o seu escopo seria apenas centrado na apuração de elementos de autoria e de materialidade, com o fim de trazer subsídios à “opinio delicti” do acusador, seja público (Ministério Público) ou privado (ofendido), também chamado de Querelante.
Por esta visão, ter-se-ia uma concepção essencialmente acusatória do IP.
Ele seria base quase que exclusivamente para a acusação.
Contudo, sob esse prisma, esquece-se de mencionar, como bem enfatiza a Professora Marta Saad, que o inquérito policial igualmente é base para o pedido de arquivamento, sendo o seu escopo investigar o fato, em sua integralidade, seja para trazer elementos contra, seja para trazer elementos a favor.
Olhando para um viés protetivo da investigação preliminar, na medida em que o inquérito visa, sobretudo, impedir uma acusação apressada e infundada, não tem sentido lê-lo, tão-somente, pelo seu caráter incriminador, não obstante ele vise obter elementos indiciários da prática de um crime. Muito embora o seu foco seja colher indícios da prática de crime, havendo elementos a sustentar a tese de que não houve crime, a tutelar a inocência, também isso deverá ser registrado e apurado, pois o que se apura é o fato tal como ocorreu na realidade, não interessando a ninguém acusar e punir um inocente.
4. Procedimento administrativo, mas com finalidade judicial
A doutrina é, praticamente, pacífica ao discorrer que o inquérito policial tem natureza administrativa, ou seja, ele é um procedimento administrativo, anotando-se, contudo, a opinião de Antonio Scarance Fernandes, de que ele não seria, propriamente, um procedimento administrativo, pois não há uma progressão concatenada e preordenada de atos, já que a investigação pode seguir várias linhas de apuração, não havendo como se delimitar um determinado caminho a ser trilhado.
Trata-se de posição minoritária, pois a doutrina majoritária entende que se trata de procedimento administrativo.
Sérgio Marcos de Moraes Pitombo ensina que o inquérito é sim procedimento administrativo, não podendo, contudo, ser reduzido somente a isso, pois, se ele é administrativo em sua origem, é judicial quanto à finalidade: o inquérito visa fornecer elementos a fim de que se possa propor a ação penal e iniciar um processo crime, seja a acusação de titularidade do órgão público, seja de titularidade do ofendido. Neste sentido, aponta, portanto, para uma natureza complexa do inquérito policial, pois se este abrange, em seu bojo, uma série de atos administrativos, há, de forma contingente, a tomada de atos judiciais.
Observando-se que, no curso da investigação policial, o inquérito é acompanhado por um juiz, a quem cumpre autorizar medidas que digam respeito à restrição de direitos e garantias fundamentais (quebra do sigilo de dados, busca e apreensão, interceptação telefônica, etc), também qualificadas como medidas de reserva de jurisdição, pois demandam autorização judicial para sua validade.
O inquérito é administrativo na forma, mas sua finalidade é judiciária; ele tem a função de reunir e preservar os indícios do delito, para avaliação da Justiça, bem como de preservar a liberdade e a (presunção de) inocência do investigado.
Neste sentido, uma visão bastante correta e pormenorizada é também a de Aury Lopes Júnior, que vislumbra a natureza jurídica do inquérito em uma concepção global, holística, não se restringindo a uma análise meramente formal, como querem os doutrinadores mais tradicionais, ao classificarem como mero procedimento administrativo.
Uma vez instaurado, não poderá ser arquivado pela Autoridade Policial, conforme estabelece o artigo 17 do Código de Processo Penal[6].
Não existe, pelo menos, em teoria, a possibilidade de uma Autoridade Policial “engavetar” a investigação, uma vez tendo sido formalmente instaurada, por meio do inquérito policial.
Até pode ser possível que a Autoridade arquive, por si própria, um “Boletim de Ocorrência” registrado, mas não se deve confundir Boletim de Ocorrência (uma notitia criminis, trazida por alguém) com a instauração de uma investigação formal, que não poderá jamais ser arquivada pelo Delegado de Polícia.
Quem arquiva investigação formal, leia-se, inquérito policial, é o Juiz - a quem cumpre supervisionar o procedimento investigatório, no Fórum ou na Justiça. É bem verdade que, com a Lei Anticrime (a Lei de número 13.964/2019), que alterou dispositivos em diversos diplomas legislativos, entre eles o próprio Código de Processo Penal, o arquivamento deveria se dar, desde a sua entrada em vigor, por ato do Ministério Público.
Contudo, por força da concessão de uma liminar, suspendendo alguns dispositivos da Lei Anticrime, liminar concedida por um Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Ministro Luiz Fux, esta disposição quanto ao arquivamento do IP, pelo Ministério Público, está suspensa, até que o Tribunal volte a se debruçar sobre o assunto. Estas e outras alterações legislativas, operadas pela Lei Anticrime, entre as quais o Juiz de Garantias, veremos mais adiante.
5. Características do inquérito Policial
5.1. Inquisitoriedade e sigilo no inquérito
Tradicionalmente, há uma leitura de que o inquérito seria, por natureza, um procedimento essencialmente sigiloso, dado o seu viés investigativo (ou inquisitivo), havendo pouco (ou nenhum) espaço para a defesa do investigado.
Haveria, assim, duas notas marcantes ao inquérito policial: de um lado (a) a sua própria inquisitividade e (b) o caráter sigiloso.
Alega-se o exposto sob o argumento de que, no inquérito policial, não haveria acusação, não existindo maior interesse, por parte do investigado, de participar da averiguação, não havendo razão para vigorar uma publicidade ampla, como ocorre em sede de ação penal, quando tem uma acusação formal deduzida.
De fato, analisando-se a Constituição Federal, na parte em que garante a observância do direito do contraditório e da ampla defesa, discorre-se, no artigo 5, LV, “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”. Aparentemente, ao utilizar os termos “litigantes” e “acusados em geral”, parece que a CF não contemplou a observância, em sua integralidade, destes princípios, no inquérito policial, em que nem há litigantes nem acusados.
Em certo sentido, no início das apurações, por os fatos estarem muito nebulosos ou obscuros, estando a autoridade investigativa, praticamente, no escuro, pode ser interessante, do ponto de vista persecutório penal, que os métodos investigatórios se realizem sem chamar tanta atenção, o que pode ser importante para surpreender o autor do crime, “no pulo”, evitando, por exemplo, a destruição de provas.
Para garantir o sigilo, faz-se uso do artigo 20, do Código de Processo Penal, ao dispor que “a autoridade assegurará no inquérito o sigilo necessário à elucidação do fato ou exigido pelo interesse da sociedade”.
Esse dispositivo tinha total harmonia com o tipo de Estado da época, lembrando que o Código de Processo Penal foi editado quando vigia um período autoritário, ditatorial, na época de Getúlio Vargas, em 1941, sendo promulgada durante a Constituição de 1937.
Hoje, com os influxos da Constituição Cidadã de 1988, em pleno Estado Democrático de Direito, considerando os traumas causados, mais recentemente, pela experiência histórica da Ditadura Militar das décadas de 60-80, o sigilo tem sido visto com muitas reservas, já que procedimentos sigilosos, seja em um passado remoto (nos assim chamados procedimentos inquisitórios, quer do direito romano ou do direito canônico), seja em um período recente da história, deram azo a todo tipo de arbitrariedades. Neste mesmo sentido, também a marca da sua pretensa inquisitoriedade tem sido bastante questionada.
Embora seja certo que o inquérito policial é marcado por seu caráter inquisitório (ou pelo que a doutrina chama por inquisitividade), tal característica não implica flertar com arbitrariedade, não podendo o caráter inquisitivo ser lido como sinônimo de autoritário.
O suspeito, investigado ou indiciado, ao longo de toda investigação, não pode ser tratado como objeto da investigação, como antigamente se entendia, mas deve ser tratado como sujeito de direitos, tendo direitos fundamentais que devem ser respeitados.
Do exposto, não obstante se possa argumentar que o inquérito seja inquisitório, tal marca não pode ser confundida com arbitrariedade.
Embora não haja espaço para incidência do princípio do contraditório e da ampla defesa, em toda sua integralidade, no inquérito, pois não teria sentido, em uma investigação preliminar, levada a cabo perante a Autoridade Policial, interpretar-se que, para qualquer ato praticado, deveria ser intimada, por exemplo, a parte afetada, o que retardaria a investigação, não é possível afirmar que, por exemplo, não haja espaço para o exercício da defesa.
Obviamente, não há necessidade de se garantir uma ampla defesa, nos termos preconizados pela Constituição Federal[7], como se verifica na fase do processo criminal (defesa exercida em sua amplitude), pois sequer há necessidade de acompanhamento da investigação por meio de um defensor, no que tange ao patrocínio dos interesses do suspeito, investigado ou indiciado, com exceção de se tratar de policial, acusado do uso da força letal praticado no exercício profissional, conforme recente e criticável alteração legal, implementada pela Lei Anticrime, com a inserção do artigo 14-A, ao Código de Processo Penal[8].
Contudo, em querendo, nada impede que o suspeito, investigado ou indiciado nomeie um advogado para exercer a defesa, podendo oferecer manifestação, requerendo diligências, a serem apreciadas pelo Delegado de Polícia[9], sendo, portanto, cabível o direito de defesa no inquérito policial.
Se o inquérito policial não pode referendar arbitrariedade, sendo que inquisitoriedade não pode ser lida como uma característica autoritária, ainda mais hoje em dia, também o sigilo absoluto, na esteira do que se entendia na época em que foi promulgado o Código de Processo Penal, não se justifica hoje.
O sigilo até pode ser decretado no inquérito, mas isso não significa que haja um sigilo absoluto, oponível em relação ao investigado e ao seu advogado, sobretudo ao que foi produzido contra si,
Assim, especialmente com o Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil (Lei Federal n. 8.906/94)(art. 7º, incisos XIII e XIV[10]), ao se garantir o acesso do advogado aos autos do inquérito, o sigilo foi mitigado.
Até houve discussão jurisprudencial recentemente a respeito da abrangência do sigilo no inquérito[11], sobretudo em decorrência da negativa de acesso aos autos do inquérito pelo Juízo da 6.ª Vara Criminal Federal de São Paulo[12], mas o assunto acabou sendo superado pela jurisprudência, principalmente ante a edição da súmula vinculante n. 14, pelo Supremo Tribunal Federal[13].
O entendimento já pacificado é que o investigado, por meio de seu advogado, tem direito a ter acesso aos autos de inquérito policial, mas aos atos que já foram produzidos e já documentados no procedimento.
Por exemplo, havendo, até aquele momento, a oitiva de testemunhas, o investigado poderá ter acesso ao teor dos depoimentos, pois os atos já foram produzidos, sendo o conteúdo registrado no feito.
O que não se admite é que o investigado tenha acesso e ciência das linhas de investigação a serem efetivadas no futuro, pela autoridade, ou que estejam em curso, especialmente das que, por natureza, sejam sigilosas para o sucesso da apuração, como ocorre em uma busca e apreensão ou em uma intercepção telefônica.
Não tem sentido informar, antecipadamente, a um investigado que será alvo - em um futuro próximo -, de busca e apreensão em sua casa, de modo a possibilitar que sejam retirados os objetos incriminadores que se queiram apreender.
Não tem lógica permitir que o alvo investigado saiba que suas conversas telefônicas estejam sendo interceptadas, pois, neste caso, não irá revelar a suposta prática delitiva que se pretende desvendar.
Então, quanto a esses atos, que devem ser produzidos na clandestinidade, para o sucesso da própria investigação, o sigilo vigora (e deve prevalecer). Quando o ato tiver sido praticado, com a sua documentação, nos autos da investigação, e desde que não se sustente mais o sigilo, para sucesso da diligência, o suspeito, investigado, indiciado tem direito a ter acesso ao que foi documentado, por meio de advogado.
Quanto aos demais atos, não é possível ou admissível que o inquérito policial seja inteiramente sigiloso, pois, em querendo, é dado ao suspeito ter acesso aos autos e até possa contribuir com as investigações.
Imagine-se que a pessoa seja mesmo inocente (e, em um número incontável de casos, há instauração de inquérito e processo contra inocente): neste caso, poderá fornecer todos os elementos que repute importantes, os quais podem desfazer algum mal entendido, contribuindo para uma investigação eficiente e justa, evitando-se uma acusação indevida.
Por isso, não é razoável ver o investigado como uma espécie de “persona non grata”, ou um ser que deve ser afastado, em todo momento, da investigação, sobretudo porque, a rigor, vigora a presunção de inocência, sendo que, caso se entendesse por referendar um sigilo absoluto, de modo a impossibilitar o acesso do investigado, isso acenaria, na verdade, para uma espécie de presunção de culpa, o que não se coaduna com nosso sistema.
Caso o inquérito policial fosse inteiramente sigiloso – e assim permanecesse até o seu término, o investigado não saberia qual a razão de terem sido tomadas medidas em face de si, e – justamente por não ter acesso à investigação – ele não poderia, por exemplo, fazer uso da ação constitucional de habeas corpus (artigo 5º, inciso (LXVIII), ou mesmo de qualquer outro remédio assegurado na Magna Carta.
Ora, é justamente na fase de investigação que podem ocorrer os mais diversos constrangimentos ilegais, como a decretação ilegal, ou abusiva, de várias medidas de coação, listando-se, entre elas, a título meramente exemplificativo: (i) a decretação de prisão, seja na modalidade preventiva ou temporária; (ii) a quebra indevida dos sigilos bancário e fiscal; (iii) o sequestro de bens; (iv) a interceptação das comunicações telefônicas; (v) a determinação do indiciamento e, por fim, (vi) a dedução abusiva de uma ação penal (a acusação formal), sem qualquer justa causa para tanto.
Ademais, o caráter sigiloso do inquérito, se interpretado em termos absolutos, vai contra o próprio dispositivo do Código de Processo Penal, que, em seu artigo 14, permite que ofendido e o investigado[14] requeiram diligências que entenderem devidas, as quais serão realizadas, ou não, a critério da autoridade policial.
O argumento de que não haveria interesse de o suspeito ou indiciado intervir no inquérito, por não haver uma acusação formulada ainda, não é correto, pois embora seja procedente a afirmação de que não haja imputação (formal), há, efetivamente, a grande possibilidade de o suspeito ser acusado da prática de uma infração penal ou mesmo sofrer alguma medida restritiva de algum direito ou garantia fundamental, listando-se as diversas possibilidades de violação da intimidade.
Ora, a finalidade principal da instauração de um inquérito é que se investiguem fatos penalmente relevantes, ao se vislumbrarem indícios mínimos de crime, sendo que, se essa é a sua função, parece óbvio que, já em seu início, havendo a figura de algum suspeito, há um intento acusatório (ainda que o seja em caráter latente).
Importante, neste contexto, lembrar dos ensinamentos de Antonio Scarance Fernandes, acerca dos juízos progressivos de imputação, sendo que, no inquérito, muito embora não haja uma acusação formalizada, há sim um esboço de imputação, uma pretensão ou esboço acusatório, havendo a descrição de um fato, ainda que debilmente, no momento da instauração do inquérito, e, quando for possível, a sua atribuição a alguém, no momento oportuno.
Muitas vezes, essa atribuição já ocorre desde o início da instauração, quando já se aponta um possível autor.
De forma que, se há uma imputação, muito embora seja de ordem embrionária - que poderá, ou não, se concretizar, por meio do exercício da ação penal -, seria impróprio e inadequado sustentar que o investigado não tem qualquer interesse no procedimento em curso, sendo inadmissível que seja tratado como mero objeto de investigação.
Pelo exposto, parece justificada a possibilidade do exercício do direito de defesa, no inquérito, muito embora não seja adequado falar no exercício de defesa, na amplitude preconizada pela Constituição Federal.
Alterações legais mais recentes, inclusive, têm previsto, expressamente, a prerrogativa de o advogado intervir durante o interrogatório policial, podendo fazer uso da palavra para correções e apontamentos, o que demonstra que o legislador infraconstitucional tem privilegiado o direito de defesa, conforme prevê o artigo 7.º, inciso XXI, da Lei 8906/94[15], embora não possa ser exercido na amplitude prevista para o momento do processo criminal, se houver ação penal.
Questão mais complicada refere-se à admissão do princípio do contraditório, o qual implica a obrigatoriedade de ciência de todos os atos praticados, com possibilidade de reação, o que implicaria a necessidade de intimar o investigado, passo a passo, do que seria produzido, como ocorre em um processo.
Parece impraticável, pois o inquérito se trata de uma investigação preliminar, não servindo para isso.
Até para que haja o exercício de defesa, no inquérito, é necessário haver alguma informação prévia dos atos praticados, o que constitui o primeiro momento do contraditório, possibilitando alguma reação.
Contudo, não se trata de informação que tenha que ser garantida, por meio de intimação obrigatória de cada ato praticado, como ocorre em um processo, mas apenas oportunizada, em querendo o investigado ter acesso ao feito, por meio de advogado, pois o sigilo não pode ser oponível a ele e seu defensor, quando o ato já tiver sido praticado e documentado no inquérito (o sigilo interno é vedado no IP), podendo haver apenas aposição de sigilo para terceiros (ou também chamado de sigilo externo).
Nesse sentido, aduz Aury Lopes Júnior que se pode falar em contraditório, no inquérito, em sentido parcial, mitigado, apenas no que tange ao direito à informação. Não se trata, propriamente, do direito à intimação dos atos realizados, mas de um direito a que se garanta acesso ao procedimento, aos atos concretizados, sendo um direito exercitável conforme o interesse do investigado.
Então, esse contraditório, ainda que seja mitigado, reside no direito a que não se negue acesso aos autos da investigação, não se podendo recusá-lo sob a escusa do sigilo. Por isso, a doutrina, em sua maioria, está de acordo que o inquérito policial não admite contraditório pleno, é dizer, efetivo, pela sua própria característica e finalidade, em que não é necessária (nem recomendável) a prévia ciência e obrigatória presença das partes, para todos os atos.
Nem poderia haver um contraditório pleno no inquérito, pois, se houvesse, não haveria razão da investigação preliminar existir, a qual, pelo próprio nome, deve ser anterior a um eventual processo jurisdicional.
5.2. Demais características do Inquérito Policial
Quanto às demais características do inquérito, aponta-se o fato de ele ser:
- realizado pela Polícia Judiciária (oficialidade)
- escrito
- dispensável (dispensabilidade, já vista anteriormente)
Quanto a ser realizado pela Polícia Judiciária, isso já foi abordado, na medida em que tal atribuição é conferida pelo artigo 144, da Constituição Federal.
Polícia Judiciária é polícia investigativa, isto é, polícia civil ou federal.
O termo polícia “judiciária” refere-se não ao fato de a polícia pertencer ao Poder Judiciário, pois as polícias não fazem parte do Judiciário, integrando o Poder Executivo, mas sim diz respeito à sua finalidade, que é investigativa, judicial (finalidade judiciária), para fornecer elementos para a investigação judicial, em caso de oferecimento da ação penal.
A polícia Judiciária, ou investigativa, seja civil (atribuição estadual), seja federal (crimes federais) não pode ser confundida com a polícia ostensiva, que é a policia militar, cuja função é garantir a ordem pública, prevenindo a prática de crimes, mediante a coerção, fiscalização e o patrulhamento.
Quanto a ser escrito, efetivamente todos os atos realizados devem ser reduzidos a termo, conforme prevê o artigo 9, CPP[16]. Ainda que hoje seja possível a gravação dos atos, em meio audiovisual, é necessário, de qualquer modo, o registro do ato, sendo que nem sempre esses atos deverão ser datilografados e reduzidos a escrito. Então, pode-se dizer que a regra de que todo o inquérito será inteiramente escrito restou mitigada, haja vista a utilização de novos instrumentos tecnológicos.
Quanto à dispensabilidade do inquérito, como já visto, nem sempre será imprescindível a sua instauração, pois há outros meios de investigação que já trazem consigo elementos mais que suficientes para a propositura da ação penal.
6. Início do Inquérito Policial
O inquérito policial é instaurado mediante portaria, um ato administrativo baixado pela Autoridade Policial, podendo ser iniciado (A) de ofício, ou (B) por meio de provocação, (B1) quer do ofendido, por meio de simples notitia criminis ou de requerimento formal, (B2) quer por informação de terceiros.
Caso haja a lavratura de prisão em flagrante delito, é obrigatória a instauração de inquérito, sendo esta outra modalidade de instauração de inquérito policial.
Então temos início do inquérito por:
- ato de ofício da autoridade policial
- prisão em flagrante delito
- provocação do ofendido (notitia criminis ou requerimento formal)
- provocação de terceiros (seja do povo ou de autoridades)
Trata-se das hipóteses elencadas no artigo 5.º, do CPP.
Quanto à prisão em flagrante delito, cujo estudo se dará em outra oportunidade, em período mais adiantado do curso de processo penal, não se entrará em minúcias a respeito do assunto, devendo a autoridade instaurar a investigação, automaticamente, por dever de ofício (isto é, dever decorrente da sua função). O mesmo vale quanto à instauração de ofício do inquérito pela autoridade, pois basta que esta saiba, por qualquer razão, da ocorrência de um delito, devendo investigá-lo, por dever de ofício, caso verifique indícios mínimos (sob pena de estar sujeito à lei de abuso de autoridade, Lei 13.869/2019[17]), se o crime for apurável mediante ação penal pública incondicionada (que não requeira qualquer autorização da vítima).
7. Requisição por ordem do Juiz ou do Ministério Público
Muito se questiona se o juiz pode ordenar a abertura de inquérito, sobretudo se o feito, de onde surgiram as suspeitas de crime, pudesse ser distribuído a ele, para análise da viabilidade de uma eventual futura ação penal.
Não há qualquer tipo de óbice, se ele não for vítima do fato, observando-se que este mesmo juiz, que requisitou a abertura da investigação, não poderá supervisionar o mesmo inquérito.
O Ministério Público, por ter o controle externo da atividade policial (art. 129, CF), também pode requisitar seja instaurado o inquérito policial.
Discute-se se a autoridade policial, nesses casos (em que haveria requisição do Ministério Público ou do magistrado), estaria obrigada a instaurar o inquérito.
A maioria da doutrina entende que sim, até pela interpretação gramatical que se confere à palavra requisição (que remete à ideia de uma ordem).
Seja como for, essa mesma obrigatoriedade fica expressa pela interpretação do artigo 13, inciso II, do próprio Código de Processo Penal, incumbindo à autoridade policial realizar as diligências requisitadas pelo juiz e pelo Ministério Público.
Se a ordem for manifestamente ilegal, em tese o delegado poderia se recusar a instaurar o inquérito, sob pena de incorrer em abuso de autoridade, conforme redação dada pela nova Lei a respeito desta matéria (Lei 13.869/2019)
Na prática, contudo, é muito difícil isso ocorrer, cumprindo o Delegado a requisição do juiz ou do MP.
8. Provocação ou requerimento formal do ofendido
Em prol da movimentação da persecução penal, o mais comum é que o próprio ofendido impulsione a màquina estatal, seja mediante comunicação à polícia (ao ir até a autoridade policial e registrar a ocorrência) ou mediante um pedido formal.
Neste último caso, é comum que a petição seja apresentada por um advogado, mas o fato é que não há obrigatoriedade para o requerimento formal, sendo comum as pessoas registrarem boletim de ocorrência, que também serve como uma “notitia criminis”. Seja como for, o requerimento formal, redigido por meio de um advogado, tem um peso maior, sendo difícil a Autoridade Policial recusar a instauração do IP, neste caso, quando o pedido está bem feito e fundamentado.
Nesta hipótese, de requerimento formal do ofendido, o art. 5º, § 1º, do CPP, dispõe, em suas alíneas, que o fato deve ser narrado, com todas as suas circunstâncias, devendo haver, caso seja possível, a individualização do indiciado ou, ao menos, de seus sinais característicos, apontando-se as razões da convicção ou da presunção de que as pessoas mencionadas sejam autoras da infração. Se houver e for possível, devem ser arroladas testemunhas.
A autoridade policial, que, de acordo com a Lei 12.830/2013, é o Delegado de Polícia, pode indeferir a abertura de inquérito, segundo preceitua o artigo 5.º, do CPP, cabendo recurso ao Chefe de Polícia, que, para alguns, pode se referir ao Delegado Geral de Polícia e, para outros, ao Secretário de Segurança Pública.
O melhor caminho, de todo modo, é, diante da negativa da Autoridade Policial, ir direto ao Ministério Público, pois, caso o Promotor de Justiça se convença pela necessidade de abertura da investigação, poderá requisitar a instauração do inquérito policial, tendo a Autoridade Policial o dever de instaurá-lo.
Evidentemente, uma investigação aberta a contragosto da Autoridade policial com atribuição para levá-la adiante não é o melhor cenário, mas, ainda assim, é melhor do que nada.
Caso a Autoridade Policial atue de forma suspeita, isso é, se conduza de forma parcial, ao não dar o devido andamento ao caso, a questão pode ser levada à Corregedoria da Polícia, em âmbito administrativo, já que a suspeição do Delegado não pode ser suscitada pela parte que se sentir prejudicada, cabendo à Autoridade reconhecê-la. Trata-se de um absurdo, evidentemente, mas, até hoje, se convenciona que a parte não pode arguir a suspeição (parcialidade) do Delegado de Polícia, cabendo a este se afastar do caso, de ofício, ou seja, reconhece-se suspeito, por iniciativa própria, caso tenha algum interesse na apuração.
É o que dispõe o artigo 107, do CPP, ao dispor: “Não se poderá opor suspeição às autoridades policiais nos atos do inquérito, mas deverão elas declarar-se suspeitas, quando ocorrer motivo legal”.
Administrativamente, contudo, o Delegado pode responder por falta funcional, ficando sujeito à sindicância.
9. Provocação por qualquer pessoa do povo
No art. 5º, § 3º, dispõe-se que qualquer pessoa que tiver conhecimento da existência da infração penal (desde que seja acusação da alçada do Ministério Público, de iniciativa pública), poderá, verbalmente ou por escrito, comunicá-la à autoridade, sendo que esta, uma vez verificada a procedência das informações, isto é, ao apurar que há indícios ou viabilidade da ocorrência do fato, mandará instaurar o inquérito.
Trata-se da hipótese de “delatio criminis”.
Fora das hipóteses legais, em que existe um dever de comunicar um crime (art. 66, da Lei de Contravenções Penais) não existe uma obrigação para o homem comum do povo de entrar em contato com a polícia para apontar que um crime ocorreu ou de que sabe da existência de algum delito.
Não existe a obrigação de delatar para o particular, salvo se se encontra em algumas das hipóteses do artigo 66[18], da LCP, e quando não houver dever de preservação de sigilo, como na relação entre médico e paciente.
10. Condição especial para início da persecução penal
Embora o crime diga respeito à violação da ordem pública e a sua investigação prescinda, na maioria dos casos, de autorização ou interesse dos envolvidos, há, em certas hipóteses, necessidade de permissão da vítima, ou de quem a represente.
Pois bem, nessas hipóteses, em que a acusação for de iniciativa da vítima, ou, quando for de iniciativa pública, isto é, do Ministério Público, mas estiver condicionada à representação da vítima (ou, em ambos os casos, de quem a represente), quer dizer, a uma autorização do ofendido, o inquérito policial não poderá ser instaurado sem a sua autorização (art. 5º, § 4 e 5º, CPP).
A necessidade de representação é reforçada no art. 39, § 3.º, do CPP.
Quando a persecução ficar restrita à iniciativa da vítima, sendo que a acusação só por ela deverá ser proposta, classificamos essa ação penal como ação penal privada, ou melhor, de iniciativa privada.
Quando a ação for da espera da atuação do Ministério Público, mas necessitar de uma autorização do ofendido, denominamos esta ação penal de ação penal pública condicionada à representação, porque necessita da autorização da vítima, sem a qual não poderá ter início, nem mesmo o inquérito policial.
Caso se trate de procedimento dos Juizados Especiais Criminais, da Lei 9099/95, isto é, quando estiver em apuração um crime de menor potencial ofensivo, em vez de ser instaurado um inquérito policial, será lavrado um Termo Circunstanciado (uma modalidade de apuração mais expedita, célere, que dispensa maiores investigações policiais), que poderá ocorrer sem essa autorização.
Cabe destacar que, posteriormente, para a continuidade do procedimento, é necessária a ratificação posterior, uma vez observado prazo previsto em lei, que se chama decadencial, de 6 meses da data em que se conhece o autor do crime. Esta é a interpretação dada pela Lei dos Juizados Especiais, pois o artigo 69, da Lei, fala que a autoridade lavrará o Termo Circunstanciado, sendo prevista a possibilidade de representação em audiência preliminar.
Por fim, importa tecer a seguinte observação: até pela natureza das infrações de iniciativa da vítima, não é comum haver a instauração de inquérito policial para apuração de crimes de iniciativa privada da vítima.
De todo modo, nada impede que haja instauração da investigação policial em ação penal privada, sendo o procedimento do inquérito idêntico ao referente às ações penais públicas, mesmo porque, teoricamente, a diferença reside apenas na iniciativa da acusação formal, sendo ambos os procedimentos inspirados em inequívoco interesse público.
Deve-se anotar que, nos casos de ação penal privada, ao fim das investigações, o inquérito policial deverá ficar à disposição da vítima, aguardando o oferecimento da acusação, nos termos do artigo 19, do CPP[19].
11. O questionamento quanto à possibilidade de denúncia anônima
Nos casos em que o inquérito pode se iniciar por provocação de qualquer pessoa do povo, nem sempre haverá identificação do autor da denúncia, colocando-se o questionamento quanto à denúncia anônima.
Não há proibição expressa, no Código de Processo Penal, que a notícia do crime seja feita de um modo apócrifo, pois, ao dizer que qualquer pessoa pode trazer a notícia quanto à prática de um crime, não se requer identificação dessa pessoa. Muito embora em sede de direito administrativo haja a proscrição de denúncia anônima, não se entende que, em âmbito policial, haja uma proibição absoluta, sendo a denúncia anônima perfeitamente possível, desde que sejam observados determinados requisitos, como apontaremos, para a abertura das investigações.
Também não incide, no caso, a proibição constitucional de vedação quanto ao anonimato, como consta do art. 5.º, inc. IV, da CF, pois esta proibição diz respeito às obras intelectuais.
Os tribunais têm admitido que o inquérito se inicie tendo por base “denúncia” anônima, desde que, antes, a autoridade proceda a diligências prévias para constatar a plausibilidade da acusação. Nem poderia ser diferente, pois, caso contrário, não seria possível a existência de disque-denúncia.
Por exemplo, vindo uma carta apócrifa de que houve um homicídio, sendo apontado o local onde se encontra o corpo da vítima, antes de se instaurar o inquérito, a autoridade deverá diligenciar ao local, de modo que, sendo constatada a existência do corpo, haverá indícios da prática de crime, sendo plenamente possível a instauração do inquérito, que se dará de forma regular.
Caso sejam feitas apurações preliminares, para checar a plausibilidade da denúncia anônima, não haverá qualquer vício à instauração do inquérito. Haverá invalidade e vício à investigação se este procedimento preliminar não for observado no caso de uma denúncia anônima.
12. Atos investigatórios praticados no inquérito policial
12.1. A investigação quanto aos elementos de materialidade e indícios de autoria.
O inquérito não tem um procedimento regrado, pois não se sabem os passos a serem dados para a elucidação de um fato que pode, ou não, se mostrar delituoso. De certo modo, embora toda investigação deva começar alicerçada em elementos e indícios de crime mínimos (senão não haveria razão para se instaurar um inquérito), a dinâmica como se desenrolará a investigação é sempre nebulosa e a forma como precisará ser desenvolvida é um mistério, sendo que os meios e os procedimentos investigatórios serão tomados conforme a necessidade concreta.
O seu objetivo é justamente indagar a respeito da existência do fato, bem como da ilicitude de um evento a respeito do qual pairem suspeitas da existência de um ilícito penal.
Visa-se colher elementos de materialidade e indícios de autoria, com vistas à dedução de uma acusação penal, sem se descuidar do respeito aos direitos e das garantias fundamentais, lembrando-se que uma das principais razões da existência da investigação preliminar é, justamente, evitar acusações injustas e apressadas.
A materialidade do delito diz respeito aos elementos que apontam ser o fato investigado criminoso. Por exemplo, achando-se um corpo, e estando a pessoa com ferimentos de facadas, é provável que tenha sido vítima de um homicídio, podendo-se falar em elementos de materialidade.
O segundo passo (ou, em muitos casos, concomitante) é apurar a autoria, a fim de se descobrir quem foi o autor do delito, para responsabilização.
O primeiro ponto é se indagar a respeito da materialidade e, posteriormente, a respeito da autoria.
Esse é o caminho natural na investigação do delito.
Para tanto, o artigo 6.º, do CPP, por meio de todos os seus incisos, dá algumas diretrizes da conduta da autoridade, para preservação dos indícios do eventual crime, acerca da necessidade da equipe investigatória se dirigir ao local dos fatos, devendo providenciar, sobretudo nos casos em que um delito acabou de ocorrer, que não se alterem o estado e a conservação das coisas, até a chegada dos peritos, para a realização do exame de corpo de delito ou quaisquer outras perícias que se façam necessárias (inciso VII).
Embora o art. 6.º, inc. I, CPP, fale em peritos, com a reforma de 2008, não é necessário que a perícia seja feita por dois peritos oficiais, bastando apenas um.
A preservação do local dos fatos é tão importante, que alterar o local do crime pode configurar crime de fraude processual[20], havendo previsão específica no artigo 312, do Código de Trânsito Brasileiro.
Aqui é interessante abrir um parêntese, pois se as provas pertencerem ao investigado, uma vez escudado sob o princípio de que ninguém poderia produzir prova contra si mesmo, há uma corrente teórica que preconiza que haveria o “direito” de ele destruir as suas provas, como computadores, arquivos digitais, etc. Na prática, contudo, essas condutas têm dado causa à decretação de prisões preventivas. É bastante discutível se, uma vez tendo ocorrido o crime na sua casa, o infrator poderia destruir os vestígios, limpando o local, oportunidade em que não haveria que se falar na incidência do crime de fraude processual. O acusado, seja como for, não teria o direito a destruir provas que não pertencem a ele.
No inquérito, pode haver apreensão de todos os objetos que tiverem relação com o fato, devendo ser colhidas todas as provas necessárias para o esclarecimento dos fatos (art. 6, inc. III).
Sempre que possível, é curial – para não dizer obrigatório - ouvir o ofendido (art. 6º, inc. IV), quem sofreu a ação da conduta (quando possível, evidentemente), bem como as eventuais testemunhas que possam esclarecer os fatos, sendo possível proceder ao reconhecimento de coisas e pessoas, bem como a acareações, como determina o art. 6º, inc. VI.
Admissível também a reprodução simulada dos fatos, também chamada pelo nome de reconstituição do delito, como bem determina o art. 7º, do CPP, desde que, obviamente, não se contrarie a moralidade e a ordem pública.
Com efeito, seria de mau gosto, por violar a dignidade da vítima, fazê-la proceder à reconstituição da dinâmica, por exemplo, um estupro. O imputado, diante do direito ao silêncio, não é obrigado a participar do ato, tendo em vista o princípio constitucional do “nemo tenetur se detegere”.
Por fim, constatada a materialidade do delito e havendo indícios de autoria, deve ser ouvido o suspeito, o apontado responsável pela conduta investigada, como dispõe o artigo 6º, § V, que estatui que a autoridade deverá ouvir o indiciado, sendo o termo assinado por duas testemunhas que tenham ouvido a sua leitura.
É claro que, na maioria dos casos, isso tudo não ocorre em um mesmo ato, ou de forma sequencial, como estes atos estão previstos no CPP, a não ser em casos de flagrante delito, em que o procedimento específico para a regular lavratura do auto de prisão em flagrante deverá ser minuciosamente observado, de acordo com os artigos 301 e ss, do CPP.
13. O indiciamento
Para ser interrogado, o suspeito tem que ser, antes de tudo, indiciado e ser informado dessa sua condição.
O indiciamento nada mais é que a certificação, pela autoridade policial, quanto à formação da sua opinião de que determinada pessoa ou suspeito é sim o provável autor do fato que até então se apurava.
É, em sentido vulgar, a formalização, do ponto de vista da autoridade policial, de que a acusação, caso seja formulada pela parte com atribuição para tanto, frise-se mais uma vez, no entendimento da autoridade policial, deveria recair sobre aquela pessoa. O indiciamento pode significar um bom norteamento para o órgão acusador, quando do oferecimento da acusação formal. Por isso este ato é tão importante, tendo carga vexatória para o investigado.
Para tanto, um primeiro pressuposto, para o indiciamento, é que a materialidade do delito esteja comprovada, devendo a autoridade expor isso no seu despacho de indiciamento. Depois, é necessário explicar, ainda que de maneira sucinta, os indícios que apontem que o fato tenha sido, provavelmente, cometido por esta ou aquela pessoa, sob o qual pairavam ilações. O indiciamento, dada a gravidade das consequências que gera, deve ser, necessariamente, motivado.
O ato de indiciar, contudo, em um passado não muito distante, era feito de um modo um tanto quanto arbitrário, sem qualquer fundamentação da autoridade.
Aliás, o indiciamento nunca esteve previsto de modo claro na lei, falando o Código de Processo Penal apenas em ouvir o indiciado, sem sequer explicar em que isso consistiria.
Até 2013, não havia sequer menção ao indiciamento como ato e quais seriam os seus requisitos e pressupostos; foi apenas com a Lei 12.830/2013 que os requisitos vieram a ser disciplinados, na esteira do que já dispunha a Portaria n. 18 da Delegacia Geral de Polícia de São Paulo, de 1998, em âmbito administrativo, sendo necessária fundamentação idônea para tanto.
14. O interrogatório policial: identificação e oitiva do investigado
Após o indiciamento haverá o interrogatório policial, o qual é formado por dois momentos: a qualificação e o interrogatório propriamente dito.
Na qualificação, o suspeito, se for o caso, poderá ser identificado por meio de processo datiloscópico (art. 6.º, inc. VIII), fazendo-se juntar sua folha de antecedentes.
Nada obstante, não será identificado criminalmente (seja por meio datiloscópico ou por foto) se já tiver identificação civil, conforme determina a Constituição (art. 5.º,LVIII) não havendo alguma das hipóteses na Lei 12.037/2009[21].
Será averiguada sua via pregressa, do ponto de vista individual, familiar e social, condição econômica, atitude e estado de ânimo antes e depois do crime (leia-se, do fato, em homenagem à presunção de inocência) e quaisquer outros elementos para apreciação de seu temperamento e caráter.
Trata-se de dispositivo que traz dados importantes, sobretudo o referente à análise da condição financeira, para fins de arbitramento de fiança, quando for o caso. Ele pode trazer informações quanto ao estado de espírito do imputado, para fins de individualização de eventual futura pena (caso venha mesmo a ser condenado), muito embora seja um dado de cunho muito subjetivo da autoridade, sendo pouco utilizado na prática[22].
Sobre essa primeira parte do interrogatório, não é possível o acusado silenciar ou mesmo mentir acerca de sua qualificação, sob pena de até mesmo cometer o delito de falsa identidade. Não se confere ao direito de defesa uma amplitude tão elástica a ponto de se permitir que se incrimine terceira pessoa, sob alegação de falas identidade. Nesse sentido, o STJ:
“RECURSO ESPECIAL. CRIME DE FALSA IDENTIDADE. ART. 307 DO CÓDIGO PENAL. CONDUTA PRATICADA PERANTE A AUTORIDADE POLICIAL. AUTODEFESA. INEXISTÊNCIA. TIPICIDADE. PROVIMENTO DO RECLAMO. 1. A orientação atual do STJ, sedimentada pela Terceira Seção nos autos de recurso especial representativo de controvérsia, é a de considerar típica a conduta de atribuir-se falsa identidade, perante a autoridade policial, ainda que para frustrar a eventual responsabilização penal, não estando ao abrigo do princípio da autodefesa. 2. Sendo incontroverso nos autos que o recorrido indicou nome falso ao ser preso em flagrante por crime diverso, inafastável é a conclusão pela consumação do delito do art. 307 do CP. 3. Recurso especial a que se da provimento para restabelecer a condenação pelo crime de falsa identidade”[23]
Nesse sentido, embora o interrogado não esteja sujeito ao perjúrio, conforme ocorre nos Estados Unidos (o interrogado não é obrigado a falar, mas, se o fizer, não pode, jamais, mentir, sob pena de incorrer em novo crime), aqui ele até pode mentir, mas desde que a mentira não atinja terceiros inocentes, sob pena de praticar eventual denunciação caluniosa. Assim, ele não poderá se passar por outra pessoa, sob pena de, eventualmente, cometer o crime de falsa identidade. Se a mentira não envolver um terceiro inocente, não há consequências jurídicas.
Quanto ao interrogatório policial, é garantido o direito ao silencio. A respeito do tema, indicamos obra magistral de Maria Elizabeth Queijo,que bem afirma que, por ser um direito, o seu uso não pode implicar qualquer censura ao investigado, caso contrário seria uma armadilha.
Embora não haja um direito à mentira em nosso sistema jurídico, é certo que, se o imputado mentir, haverá um ato moralmente reprovável, mas será um irrelevante do ponto de vista jurídico, tendo em vista à concepção que se tem acerca do direito ao silêncio entre nós.
Nesse momento, serão observadas as regras do interrogatório judicial, no que houver compatibilidade com a atividade policial, não sendo obrigatório o acompanhamento de um advogado durante o ato (observe-se: este acompanhamento pode ser possível e deve ser permitido, pela autoridade, se o interrogado tiver advogado e quiser ser assistido por ele), não havendo possibilidade, entretanto, que o advogado intervenha, fazendo reperguntas[24].
Para que o interrogatório seja válido, importante que seja informado à pessoa que ela está sendo ouvida nessa condição, de indiciada, pois, caso contrário, a sua regularidade poderá ser discutida, já que não se advertiu ao indiciado quanto ao seu direito de permanecer em silêncio.
Caso o ato seja acompanhado por advogado, será difícil se reconhecer algum vício ao ato, pois o advogado acaba, ainda que implicitamente, convalidando o que foi praticado.
Ao final do interrogatório, o termo deverá ser lido ao interrogado, na presença de outras duas pessoas, devendo ser o termo assinado por estas. A lei previu referida formalidade, da assinatura de duas testemunhas, a fim de conferir autenticidade ao ato, evitando que depois se alegue que uma eventual confissão foi obtida mediante tortura, o que, aliás, pode, infelizmente, ocorrer na prática, tendo em vista que algumas autoridades acham que podem tudo, até cometer crimes sob o pretexto de combatê-lo.
Na prática, o cumprimento dessa formalidade não afasta eventual cogitação da prática de abuso de autoridade empregado em detrimento do interrogado.
Bastante questionável a utilização de condução coercitiva ao investigado, para ser ouvido. Poder-se-ia argumentar que, diante do direito ao silêncio, seria verdadeiro despropósito obrigar alguém a comparecer perante a autoridade policial apenas para falar que ficará em silêncio.
Por outro lado, tendo em vista ótica diversa, seria possível argumentar pela admissibilidade da condução compulsória, pois, para a qualificação e para a identificação do sujeito, não valeria o direito ao silêncio. Meditando sobre o assunto, após analisar melhor a questão, é aconselhável que se evite a utilização de condução coercitiva, na esteira do que julgou o Supremo Tribunal Federal (ADPF 395).
Inquestionavelmente, ao se conduzir coercitivamente alguém, há uma situação de sujeição do investigado à apuração e à autoridade.
Argumenta-se que, até para evitar uma medida constritiva mais grave (uma prisão, por se entender que há o risco de fuga), pode ser importante para a autoridade que o investigado compareça, ainda que compulsoriamente, conforme prática adotada pela Operação Lava Jato, respeitado, obviamente, o direito ao silêncio e todos os demais direitos inerentes à sua dignidade.
Como dito, meditando melhor sobre o assunto, passamos a entender que a condução coercitiva constitui ato arbitrário, de inequívoco abuso de poder, se não justificada a medida para a identificação do sujeito.
15. Atribuição da autoridade policial para investigar e análise dos vícios no inquérito policial e sua repercussão para (in)validade do futuro processo
Na fase investigativa, tratando-se de um procedimento mais informal (caso se compare com a persecução em sede de processo judicial), para a colheita de dados que sustentarão um eventual e futuro processo crime, não há que se falar em competência da autoridade policial, já que ainda não há o exercício da jurisdição.
A colheita de elementos indiciários por uma autoridade policial sem atribuição para tanto, quando outra seria a competente, segundo as normas vigentes, não traz consequências maiores em termos de invalidade do ato.
Os atos produzidos, com vício de atribuição, podem ser aproveitados, não sendo possível cogitar de qualquer mácula.
Como dispõe o artigo 22, do Código de Processo Penal, nas grandes comarcas (por exemplo: São Paulo), em que há mais de uma circunscrição policial, a autoridade policial poderá ordenar diligências na área de outra circunscrição sem ter que expedir, para tanto, carta precatória[25] ou eventual requisição.
Igualmente, caso ocorra um fato em sua presença, ainda que a autoridade esteja na sede de outra circunscrição, poderá (e deverá) atuar.
O vício de atribuição entre autoridades policiais (ainda que de esferas diversas, como a polícia federal ou polícia estadual civil) não é um dado tão relevante a ponto de invalidar as diligências executadas.
A atribuição entre as diversas autoridades policiais pode mudar de acordo com o local, (a) seja com base na matéria objeto de apreciação da investigação, (b) seja com base no lugar da suposta infração penal ou (c) até mesmo conforme os agentes que foram envolvidos na controvérsia penal.
De todo modo, como regra, vício de atribuição para a investigação não implica mácula aos atos investigatórios praticados.
Eventualmente, o que pode, eventualmente, invalidar a persecução penal é a hipótese em que algum ato de investigação demande autorização judicial, sendo certo que se a medida foi decretada pelo juiz estadual, mas depois se verificar que a competência era do juiz federal (e o vício era fácil de ser verificado), não é possível considerar válido este ato, havendo vício de competência.
Apenas em casos excepcionais, quando a competência da autoridade judicial for duvidosa, havendo, aparentemente, competência do juiz para decretar a medida investigatória, não se reconhecerá a nulidade, ainda que depois se conclua que não havia competência para tanto.
Quanto aos demais vícios do inquérito policial, existe um verdadeiro mantra de que não maculariam a ação penal.
Como o inquérito é um procedimento administrativo informal, haveria um consenso de que a eventual prática irregular de algum ato, na investigação preliminar, pelo delegado de polícia, ou investigador, não contaminaria eventual ação penal.
Isso não é uma verdade absoluta, pois, como dito, seja por eventual invalidade da competência do juiz (que supervisiona a investigação, remotamente) para autorizar alguma medida de obtenção de prova, seja por eventual outra invalidade (pense-se na obtenção de uma prova ilícita, por quebra ilegal de sigilo de dados, ou uma confissão obtida mediante tortura), pode ser que, à míngua de demais elementos, se conclua que os únicos elementos que alicerçaram a ação penal, isto é, a acusação formal, seriam inválidos, imprestáveis ou ilícitos, sendo certo que, neste caso, haveria contaminação de toda a ação penal, pois não existiria nenhum elemento apto a lhe dar arrimo.
Pense-se em um inquérito instaurado mediante denúncia anônima, como já falamos anteriormente. Como dito, se, antes de se instaurar a investigação formal, não se procedeu à realização de alguma diligência preliminar, para confirmar a plausibilidade da denúncia anônima, a abertura da investigação será indevida, sendo toda inválida. E tal invalidade, por óbvio, se contaminará à ação, como ficou decidido na Operação Castelo de Areia.
16. Valor probatório dos elementos obtidos em sede de Inquérito
A fase do inquérito serve para apurar se há elementos que legitimem, ou não, uma acusação, não podendo ser usados em eventual sentença condenatória, já que os elementos do inquérito não foram submetidos à prova e à discussão judicial, em contraditório.
No inquérito, salvo hipótese de provas urgentes, antecipadas[26] e irrepetíveis[27], todos os demais elementos devem ser considerados apenas para fins de análise da legitimidade da acusação ser futuramente ofertada (para análise de sua justa causa), jamais devendo embasar eventual condenação, sobretudo se esta estiver pautada, exclusivamente, nos elementos colhidos no inquérito, não colhidos perante o juízo. É o que diz o artigo 155, do CPP, conforme redação dada pela reforma legal de 2008, que alterou diversos dispositivos no Código:
Art. 155. O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas. (Redação dada pela Lei nº 11.690, de 2008)
A reforma do Código de Processo Penal, ocorrida em 2008, todavia, permitiu, em parte, a valoração de elementos colhidos no inquérito (quando estes forem corroborados pela prova judicial produzida), possibilitando a prolação de condenação com base em alguns atos produzidos na investigação preliminar, desde que convergentes com demais as provas do processo.
Criticável a opção do legislador. Ora, se a prova do processo fosse suficiente para condenar, convenha-se que não se precisaria fazer remissão aos atos produzidos no inquérito. Ao ser necessário recorrer ao que foi produzido no curso do inquérito, o que está implícito, de certo modo, é que as provas produzidas em contraditório não foram suficientes para sustentar a sentença de condenação, sendo que a absolvição seria medida de rigor.
Ao se permitir a sustentação da sentença condenatória em elementos do inquérito, para dar embasamento à condenação, estar-se-ia burlando a presunção de inocência, do in dubio pro reo, ao permitir condenação em elementos estranhos ao processo, colhidos à margem do princípio do contraditório, que só pode ser observado no curso do processo penal acusatório.
Tal dispositivo, se interpretado literalmente, não se coadunaria com a nossa Constituição da República de 1988.
A única interpretação razoável é aquela dada por Antonio Scarance Fernandes, no sentido de que tais elementos informativos, a fim de autorizarem uma condenação, devem ser reputados somente como sendo as provas cautelares, isto é, não repetíveis, produzidas no inquérito.
Do exposto, o inquérito só deve embasar e sustentar o oferecimento, ou não, da acusação e o seu recebimento pelo juízo.
Ressalvadas as hipóteses de elementos de prova que não sejam repetíveis, todos os demais deveriam ser removidos do processo criminal, não sendo, contudo, esta a opção adotada por nosso Código de Processo Penal, já que o inquérito policial acompanha os autos do processo. Quando é oferecida a acusação formal, e ainda que o juiz decida abrir o processo, os autos do inquérito policial continuam apensados aos autos da ação penal condenatória, podendo o juiz conferir tudo que foi praticado no curso da investigação preliminar.
Até se pretendeu, com a sanção da Lei Anticrime (Lei n. 13964/2019), separar os autos do inquérito aos autos da ação penal, conferindo-se a possibilidade de as partes, em querendo, terem acesso à investigação preliminar e juntarem ao processo o que entenderem conveniente.
“Art. 3-C - A competência do juiz das garantias abrange todas as infrações penais, exceto as de menor potencial ofensivo, e cessa com o recebimento da denúncia ou queixa na forma do art. 399 deste Código. § 1º Recebida a denúncia ou queixa, as questões pendentes serão decididas pelo juiz da instrução e julgamento. § 2º As decisões proferidas pelo juiz das garantias não vinculam o juiz da instrução e julgamento, que, após o recebimento da denúncia ou queixa, deverá reexaminar a necessidade das medidas cautelares em curso, no prazo máximo de 10 (dez) dias. § 3º Os autos que compõem as matérias de competência do juiz das garantias ficarão acautelados na secretaria desse juízo, à disposição do Ministério Público e da defesa, e não serão apensados aos autos do processo enviados ao juiz da instrução e julgamento, ressalvados os documentos relativos às provas irrepetíveis, medidas de obtenção de provas ou de antecipação de provas, que deverão ser remetidos para apensamento em apartado. § 4º Fica assegurado às partes o amplo acesso aos autos acautelados na secretaria do juízo das garantias.’
Apesar de olharmos com bons olhos esta alteração, ela encontra-se, temporariamente, suspensa, por força da concessão da liminar concedida pelo Ministro Luiz Fux, do Supremo Tribunal Federal, ao deferir tutela de urgência na ação direta de inconstitucionalidade (ADI 6299/DF) movida contra a Lei, suspendendo a eficácia deste dispositivo. Até o momento, trata-se de decisão precária, que, para se tornar definitiva, precisa ser referendada pelo STF, no julgamento pelos demais Ministros, que ainda precisa ser marcado, não havendo prazo para tanto.
17. Prazo de duração do inquérito policial
17.1. Prazo do inquérito com acusado solto
O inquérito, a princípio, tem prazo para ser concluído.
Contudo, considerando que o prazo pode ser prorrogado, caso o investigado esteja solto, prorrogação que pode se dar quantas vezes forem necessárias, não há um prazo definitivo, peremptório, para a sua conclusão.
Esse prazo, no procedimento previsto no Código de Processo Penal, é de 30 (trinta) dias, estando o investigado solto, podendo haver tantas prorrogações quantas se entenderem necessárias para a elucidação dos fatos, até a ocorrência da prescrição do poder punitivo estatal.
Esse prazo pode ser diferente em outras legislações, como ocorre nos procedimentos da Lei de Drogas (Lei 11.343/2006[28]).
Ao término desse prazo, necessariamente, o inquérito tem que ser remetido ao Fórum (na praxe forense, fala-se que o inquérito foi aforado, recebendo numeração própria, para controle da Justiça), tenha ou não o inquérito sido finalizado.
Conforme determina o artigo 10, § 3.º, do CPP, se não for possível finalizar as apurações (e, na prática, dificilmente o é), quando o fato for de difícil elucidação, poderá ser requerido ao juízo a devolução dos autos para mais diligências.
Nesses casos, a tendência do juiz é autorizar a concessão de prazo, uma vez ouvido o Ministério Público (nos casos de ação penal de iniciativa pública).
Pela sistemática no Código de Processo Penal, caberia ao juiz conceder a dilação de prazo, dispositivo criticado por muitos, por se entender que haveria intromissão indevida do juiz, cabendo a investigação ser conduzida apenas entre o Ministério Público e Polícia, devendo o juiz intervir apenas quando fosse necessária alguma medida de reserva de jurisdição.
Hoje em dia – e desde há algum tempo - na prática, na maioria dos Fóruns, uma vez aforado o inquérito, e havendo sucessivos pedidos de dilação de prazo, o inquérito não mais é remetido ao juiz, tramitando, diretamente, entre a polícia e o Ministério Público.
Há uma Resolução da Justiça Federal nesse sentido. Apesar de ser uma medida que visa “desburocratizar” a Justiça, estava em desencontro com a letra da lei. É verdade que, com o projeto Anticrime, não mais haveria esta intermediação entre polícia e o juiz. Tudo agora passaria pelo Ministério Público.
Contudo, felizmente (a nosso sentir, com todo respeito a entendimento em contrário), esta previsão foi suspensa com a liminar concedida pelo Ministro Luiz Fux, do STF. Nunca vimos qualquer problema na intervenção judicial no bojo do inquérito. Ao contrário, quando o juiz é afastado do inquérito, os promotores e procuradores acham que tudo podem fazer, conforme seu “bom senso justiceiro”, sendo, não raro, bastante críticos dos outros, mas, muitas vezes, com o devido respeito, não façam o devido juízo crítico.
Não se infira de nossa asserção qualquer ataque ao MP, pois se trata de uma instituição, sem dúvida alguma, nobre e necessária, assim como o é a magistratura, a defensoria, a advocacia, em prol da defesa do Estado Democrático, mas há críticas que devem ser ditas sem melindres, sem rodeios, sem titubeações, para mostrar que ninguém está acima da Lei e que coerência é tudo, sobretudo um dado a ser cobrado de quem pretende levantar, geralmente, o dedo para acusar os outros disso ou daquilo e cobrar a observância da lei (dos outros).
Não há razão para se afastar a figura do juiz do inquérito policial, que deve atuar como protetor da ordem legal, evitando abusos, devendo fazer observar o ordenamento, atuando como verdadeiro juiz de garantias, que, mais que um nome bonito, como quis dar a Lei Anticrime, deve ser implementado na prática.
Os prazos, em casos de investigados soltos, contam-se conforme a sistemática processual: excluiu-se o dia do início, incluindo-se o dia final, não se contando sábados, domingos e feriados, quer no início, quer no final do prazo, postergando-se o prazo no dia útil subseqüente.
Na hipótese de o Ministério Público ser favorável às diligências solicitadas, ou requisitar outras, o juiz não poderia ir contra, caso contrário acarretaria tumulto procedimental, impugnável pela via de um recurso chamado Correição Parcial.
Contudo, nem sempre se poderia falar em tumulto, pois, em alguns casos, cabe consignar que os inquéritos policiais tramitam por anos e anos, sendo solicitadas diligências desnecessárias.
Se o juiz não puder fazer nada a respeito, seja para alertar a vítima para a inércia estatal (impedindo a ocorrência de uma indevida prescrição), seja para resguardar a persecução penal em prazo razoável, haveria uma hipótese de violação a um direito fundamental sem que, em contrapartida, fosse possível controle judicial.
Ora, impedir, em todo e qualquer caso, que o juiz se pronuncie a respeito da morosidade e desnecessidade de novas diligências, é coibir a fiscalização da Justiça, fazendo-se letra morta do artigo 16, do Código de Processo Penal, que dispõe que “o Ministério Público não poderá requerer a devolução do inquérito à autoridade policial, senão para novas diligências, imprescindíveis ao oferecimento da denúncia”. Em casos excepcionais, pensamos que o juiz poderia se manifestar, indo contra a diligência, até para fazer valer a regra de que, na inércia do Ministério Público, o ofendido poderá propor ação penal subsidiária, que é uma acusação proposta pela vítima. Contudo, importante alertar que se trata de pensamento isolado de nossa parte, não encontrando eco na esmagadora parte da doutrina.
A rigor, segundo entendimento majoritário, o juiz não poderia se intrometer no pedido ou no parecer do MP quanto à continuidade de diligência.
Quando muito, poderia consultar o Chefe da instituição, em analogia à redação do antigo artigo 28, CPP, que determinava a remessa do inquérito ao Procurador Geral da Justiça em caso de não concordar com o pedido de arquivamento, conforme possibilidade, salvo engano, ventilada por Victor Eduardo Rios Gonçalves, em seus escritos.
Há também a possibilidade de a autoridade policial entender por encerrar a apuração, mas o Ministério Público entender por requisitar diligências, emitindo o que se convenciona chamar por “cota”, ao que fica vinculado o delegado, de acordo com o artigo 13, inciso II, do Código de Processo Penal.
Em hipótese alguma, como já foi frisado, uma vez instaurado o inquérito, a autoridade policial poderá arquivá-lo, sendo o artigo 17, do Código de Processo Penal, sendo bastante claro ao dispor que “a autoridade policial não poderá mandar arquivar autos de inquérito policial”.
17.2. Prazo do inquérito com investigado preso
Já no caso de investigado preso, de acordo com o artigo 10, do CPP, o inquérito deverá ser concluído em 10 dias, esteja o sujeito preso em flagrante delito ou por prisão preventiva.
Em alguns procedimentos, este prazo muda, como nos procedimentos da Justiça Federal, cujo prazo é de 30 (trinta) dias (15 dias prorrogável por mais 15[29]), ou na Lei de Drogas, cujo prazo é de 30 (trinta) dias, prorrogável por igual período[30].
Caso não observados esses prazos, em caso de prisão preventiva ou flagrante, deverá haver o reconhecimento da ilegalidade da prisão, por excesso de prazo; em sendo necessário mais tempo para finalizar as investigações, isso é sinal de que não há os pressupostos tanto para a prisão preventiva quanto para a prisão em flagrante (que se alicerçam justamente na constatação da materialidade e dos indícios de autoria). A matéria sobre as modalidades de prisão será vista mais adiante, no curso, não sendo necessário se preocupar com seu estudo aprofundado, devendo-se ficar claro que a prisão processual, que requer requisitos de cautelaridade (a pessoa está destruindo provas, ameaçando testemunhas, perigando fugir, etc) não se confunde com prisão pena, alicerçada em sentença condenatória transitada em julgado.
Diferente é a situação da prisão temporária (prevista na Lei 7960/89), em relação à qual já há prazo, cujo objetivo é amealhar indícios de materialidade e autoria. No caso de decretação de prisão temporária, o seu prazo máximo (incluída uma única possibilidade de prorrogação) coincide com o prazo conferido para o encerramento do inquérito policial, de 10 dias.
Contudo, caso se trate de investigação por crimes hediondos, assim definidos na Lei 8072/90, desde que previstos no rol em possível a decretação da temporária, o prazo de prisão muda, sendo de até 30 (trinta) dias, prorrogável uma vez por mais 30 (trinta). Não há motivo para desespero, procurando-se estudar a fundo a matéria prisão. Isso será estudado a seu tempo, geralmente nos programas de direito processual II, das faculdades de direito, sendo apenas importante, neste momento, saber da existência desta prisão.
No caso de prisão, o cômputo ou contagem dos prazos, para encerramento das investigações, se dará com base no Direito Penal Material, segundo interpretação que nos parece mais favorável, por ser mais benéfico ao investigado, conforme o artigo 10, do Código Penal, em que o dia do começo do prazo entra no cômputo e se exclui o dia do final do prazo. Em se tratando de restrição ao direito à liberdade, ainda que se trate de prisão processual, deve viger a lógica de Direito Penal, sendo a contagem do prazo verificada conforme esta matéria.
Nas hipóteses de prisão preventiva e de prisão temporária, se não forem encerradas as investigações, as prisões devem ser relaxadas, eis que se tornaram ilegais, continuando a investigação com o investigado solto; na hipótese da prisão temporária, não há necessidade de se encerrarem as investigações nesse prazo, já que, aqui, se buscam elementos indiciários. A prisão é decretada justamente para se poder investigar (famosa prisão para averiguações).
Uma vez expirado o prazo da temporária, totalmente possível que as investigações continuem, com o acusado solto.
Caso seja decretada, em seguida, a prisão preventiva, aí então as investigações deverão se encerrar em 10 dias, sob pena de relaxamento da prisão.
18. Encerramento das investigações
Ao final, a autoridade policial fará um relatório objetivo de tudo que foi apurado, conforme artigo 10, § 1.º, enviando os autos ao juiz competente. A finalização do inquérito, portanto, se dá com o relatório da Autoridade Policial.
A rigor, tecnicamente, seria incabível que a autoridade pudesse fazer juízos de valor, avaliações subjetivos, restringindo-se a apontar apenas o que foi apurado e os atos praticados durante o inquérito, de forma clara e objetiva.
Seja como for, na prática, no relatório da autoridade policial, é muito difícil evitar juízos subjetivos, ou algum tipo de subjetivismo na apreciação dos fatos, o que pode até ser necessário, em alguns casos, para apontar a responsabilização ou até mesmo a ausência de culpa. Eventual vício do relatório da Autoridade Policial não causa nulidade ao feito, pois, importante frisar, o relatório policial não vincula em nada a opinião do acusador.
19. Opções ao acusador quando do encerramento das investigações
Encerradas as investigações pela polícia, os autos são enviados ao Ministério Público ou ficam à disposição do acusador privado, aguardando alguma providência da vítima, nos crimes de ação penal privada, como dispõe o artigo 19, do Código de Processo Penal; no caso de ação pública, de rigor que os autos sejam remetidos ao Ministério Público, começando a fluir o prazo para o oferecimento de eventual denúncia a partir do registro da entrada do feito no órgão.
No caso de investigado preso, o Ministério Público deve denunciar em 5 dias. No caso de investigado solto, deve denunciar em 5 dias. A observância deste prazo tem especial importância no primeiro caso, pois a morosidade do MP acarretará a ilegalidade da prisão, com seu relaxamento. Além, é claro, de iniciar o prazo para oferecimento de ação penal privada subsidiária. No segundo caso, de investigado solta, a única consequência é esta, com a abertura de prazo para ação penal privada subsidiária.
Com relação à atitude do acusador, há algumas possibilidades, conforme se trate de ação penal a cargo do órgão público ou privado.
No caso do acusador privado, uma vez encerradas as investigações, ele tem a opção de oferecer queixa ou não.
No caso de ação penal pública, em que a parte legítima é o Ministério Público:
(a) podem ser solicitadas mais diligências para apurar alguma circunstância que demande maior esclarecimento;
(b) pode-se pedir o arquivamento, quando não houver elementos indiciários a apontar a prática de crime ou faltar requisito para a acusação;
(c) oferece-se, desde logo, a acusação, havendo indícios e condições jurídicas para tanto, sendo que, caso o acusador público se mantenha inerte, no prazo legal, é possível o oferecimento de ação penal privada subsidiária
Eventualmente, há uma quarta hipótese, vislumbrada pelo Professor André Estefam, consistente em o promotor entender que o juízo em que atua é incompetente para analisar o caso, requerendo a distribuição do inquérito a outro juízo.
Trata-se a última possibilidade de hipótese excepcional, que será melhor estudada ao se analisar a matéria de competência.
20. Requisição de novas diligências
No primeiro caso, entendendo faltar alguma providência investigatória, pode-se requerer a produção de outras provas.
Nesse caso, havendo requisição do Ministério Público, por meio de cota, os autos retornam à polícia para realização das diligências requeridas. Não pode a autoridade policial se recusar a cumprir a requisição, a não ser que se mostre totalmente despropositada, a referendar até ilegalidade, o que é difícil ocorrer.
No caso de serem requisitadas mais diligências e o juiz entender totalmente sem fundamento, por já ser possível o oferecimento de acusação, parte da doutrina se inclina pela possibilidade de aplicação, por analogia, do teor do antigo artigo 28, do CPP, com a redação antes da incidência da Lei Anticrime, que dispõe que a palavra final caberá ao Chefe da instituição do Ministério Público.
Não existe esta previsão na lei, mas nada impede que se aplique esse controle. Como dissemos, entendemos que o juiz poderia até indeferir o pedido de diligências, sendo este (nosso) posicionamento absolutamente minoritário.
21. Pedido de arquivamento da investigação
No segundo caso, não se vislumbrando que o caso comporte oferecimento de acusação, seja porque o fato não se reveste de ilicitude ou porque não há provas a indicar que há elementos de materialidade e indícios de autoria (o que se convenciona por chamar de justa causa, conforme veremos ao estudar ação penal), o acusador deve pedir o arquivamento[31].
O inquérito só pode ser arquivado por meio de decisão judicial.
Portanto, quem sempre arquivou inquérito, em nosso sistema, é o juiz.
A Lei Anticrime, por reputar que esta decisão seria inadequada, cedendo a apelo de parte da doutrina, que entende pela retirada da intervenção do juiz, a não ser quando estritamente necessária, passou a disciplinar que o inquérito passaria a ser arquivado pelo Ministério Público.
Lamentável esta opção, pois entendemos que a decisão de arquivamento não deveria prescindir de decisão judicial, mesmo porque, em alguns casos, a decisão de arquivamento fará coisa julgada, dependendo do teor da decisão. E para que possa ocorrer este feito, a análise deve partir de um juiz.
Felizmente, foi concedida liminar para suspender esta inovação legislativa, conforme já mencionado, a liminar concedida pelo Ministro Luiz Fux, no STF, a qual depende de apreciação do Colegiado (isto é, dos demais Ministros), para ser referendada. Neste sentido, ainda vale a sistemática sempre tradicional entre nós, de que o inquérito deve ser arquivado pelo juiz.
O magistrado pode concordar com o arquivamento, ordenando que os autos sejam arquivados. Caso o arquivamento se dê pelo fundamento da falta de provas para oferecimento da acusação, dispõe o artigo, 18, do CPP, que, não obstante arquivado, nada impede que a autoridade proceda a novas diligências, pois, conforme a letra da lei, “depois de ordenado o arquivamento do inquérito pela autoridade judiciária, por falta de base para a denúncia, a autoridade policial poderá proceder a novas pesquisas, se de outras provas tiver notícia”.
Contudo, só haverá o desarquivamento do inquérito se houver novas provas, de modo a justificar a reabertura das investigações. É o que prevê a súmula 524, do STF: "arquivado o inquérito policial, por despacho do juiz, a requerimento do promotor de justiça, não pode a ação penal ser iniciada, sem novas provas"
Na hipótese de o arquivamento do inquérito se pautar em outro fundamento, como na hipótese de atipicidade dos fatos (o evento não é delituoso) ou na extinção da (suposta) punibilidade, a decisão constituirá uma sentença (propriamente de mérito), sendo impossível a reabertura do caso, já que foi feita coisa julgada material.
Cabe anotar que em vez de arquivar o procedimento, o juiz pode discordar do pedido de arquivamento feito pelo Ministério Público[32].
Como a dedução da ação penal pública é obrigatória, uma vez presentes os requisitos legais que legitimam a acusação, o juiz pode e deve fazer uma fiscalização quanto à observância da regra da obrigatoriedade do exercício da ação penal, inclusive submetendo o requerimento de arquivamento (quando o juiz entender incabível), feito por um membro ministerial de 1ª instância, ao Chefe da instituição.
É o que vigorava na sistemática antiga, alterada pela Lei Anticrime, em que não mais existiria esta intervenção judicial neste momento.
Contudo, em virtude da concessão de liminar, no STF, para suspender o novo dispositivo que previu que o arquivamento caberia ao Ministério Público, mister reconhecer que a solução antiga do artigo 28, do CPP, continua em vigor.
Nesse caso, como o magistrado não pode acusar, sob pena de perder sua imparcialidade, ferindo, por consequência, o princípio acusatório, deverá enviar o caso para ao órgão máximo do Ministério Público, para que avalie se foi certo, ou não, o pedido de arquivamento do Ministério Público em primeiro grau, conforme previsto no artigo 28, do Código de Processo Penal.
Nos procedimentos de competência originária, em que a investigação já é dirigida pelo próprio Chefe do Ministério, ou por Procuradores atuando sob sua delegação, havendo pedido de arquivamento do inquérito, não terá aplicação o artigo 28, do Código de Processo Penal, pois o pedido já está sendo feito pelo órgão máximo, ainda que o faça outro Procurador representando o Procurador Geral de Justiça.
Há críticas a essa forma de controle, pois se argumenta que o juiz perderia a sua imparcialidade. A observação não procede, pois o que o magistrado faz é um juízo quanto à viabilidade do processamento da ação penal, não fazendo um juízo de mérito definitivo quanto à procedência de uma eventual acusação.
Vingasse a observação de que o magistrado estaria perdendo a sua imparcialidade, a rigor, qualquer recebimento da acusação deveria levar ao mesmo raciocínio, já que o magistrado, querendo ou não, faz uma análise preliminar quanto à viabilidade da legitimidade da ação penal.
Uma vez remetidos os autos ao órgão máximo do Parquet, a Procuradoria de Justiça pode entender que a caso deve ser mesmo arquivado, diante do que o juiz nada pode fazer, mesmo porque, em regra, inexiste recurso da decisão de arquivamento de inquérito policial[33]; contudo, em uma segunda hipótese, uma vez sendo feita a remessa ao Procurador, este pode entender que é caso de oferecimento de denúncia.
Caso o Procurador da Justiça, na esfera estadual, considere improcedentes as asserções do membro ministerial em primeiro grau, ao pedir o arquivamento do caso, poderá (i) ele mesmo oferecer denúncia ou (ii) designar outro promotor de justiça para oferecê-la. Jamais poderá obrigar o promotor que pediu o arquivamento a acusar, sob pena de violar a independência funcional do membro, mesmo porque, do ponto de vista prático, a medida em si nem teria sentido, pois se o promotor já havia pedido o arquivamento do inquérito, uma vez obrigado a seguir com o caso, muito provavelmente, depois, pediria a absolvição. Do ponto de vista pragmático, necessário o olhar de outro profissional.
O promotor designado para oferecer a denúncia não pode se recusar a fazê-lo, pois atua como “longa manus” do Procurador-Geral da Justiça. Posteriormente, fica a seu critério a condução da ação penal promovida, tendo certa liberdade para opinar pela condenação ou absolvição.
22. Oferecimento de acusação e Acordo de não persecução Penal
Vislumbrando que há elementos a indicar que houve, em tese, a prática de um crime, é dever do acusador público oferecer acusação, cuja peça se chama denúncia (art. 24, CPP). Tal obrigação decorre do princípio da legalidade, ou obrigatoriedade da ação penal.
Na ação penal privada, a acusação se chama queixa-crime, ficando a cargo da vítima oferecer ou não a acusação, já que vige o princípio da oportunidade e da disponibilidade, o que não ocorre com a ação penal pública, em que vigora a obrigatoriedade da ação penal.
Na ação penal de iniciativa do órgão público, portanto, caso não seja oferecida a acusação no prazo legal, nem se manifeste o Ministério Público a respeito de eventual arquivamento, o que acarreta a inércia estatal, abre-se a possibilidade de ser oferecida, pela vítima, ação penal privada subsidiária da pública, conforme poderá ser visto melhor, quando do estudo da ação penal.
Uma novidade prevista na recente Lei Anticrime foi a possibilidade de a acusação empreender um acordo com o investigado, o que antes não havia, com exceção das hipóteses dos crimes da Lei 9099/95 (crimes de menor potencial ofensivo), em que já cabia a transação penal e a suspensão condicional do processo.
Cabe esclarecer que nosso sistema penal não tem a tradição de permitir o acordo nesta seara. Diferente dos sistemas de Common Law, em que o acordo é largamente empregado, sendo que apenas por volta de 5% dos casos são julgados mediante processo (lá, perante o Júri, conforme filmes americanos), aqui nunca se houve esta tradição.
Foi permitida a justiça negociada, pela primeira vez, pela Constituição Federal de 1988 (art. 98, I), nos crimes de menor potencial ofensivo, acordo concretizado com a previsão da Lei 9.099/95, sendo possibilitada a transação penal (art. 76, da referida lei) e o sursis processual (art. 89, desta Lei). Enfim, tratava-se de hipóteses bem pontuais, em que há o que se chama por discricionariedade regrada, tendo que o Ministério observar todos os critérios oferecidos em lei, para implementação da transação penal e suspensão condicional do processo.
Recentemente, a possibilidade de incursões na seara de acordo penal foi incrementada com a Lei de Organização Criminosa (Lei 12.850/2013), com a propagação dos acordos de colaboração premiada, ou do que também se denomina por delação premiada (já havia leis anteriores prevendo este instituto, mas o fato é que só começou a ser largamente aplicado com a Operação Lava Jato, em decorrência da Lei 12.850/2013), previstos em âmbito processual.
Importante advertir que são mecanismos novos, cuja aplicabilidade e interpretação ainda precisam ser ponderadas pelos Tribunais, acerca do que pode ou não ser feito, bem como aperfeiçoado mediante Lei, sendo que também a Lei Anticrime fez uma série de modificações à Colaboração Premiada, tal como prevista na Lei 12.850/2013.
Com a aprovação da previsão do acordo de não persecução, para os crimes cuja pena mínima seja inferior a 4 anos, praticados sem violência ou grave ameaça, o legislador parece ter ultrapassado a linha e permitido, em larga escala, a previsão de acordos em nosso ordenamento, alterando toda a nossa sistemática.
A previsão encontra-se no artigo 28-A, sendo prevista uma série de requisitos para a sua implementação. Como se trata de uma novidade muito recente, não é possível saber como os tribunais irão aplicar a lei, sendo necessário aguardar como a lei será efetivada em nosso sistema.
Não nos agrada a permissão de uma forma tão ampla de consenso, pois, de um lado, pode referendar injustiças, seja propiciando abusos (para os vulneráveis, o acordo é imposto), seja propiciando impunidade (imagine grandes esquemas de corrupção, em que se permita um acordo de não persecução penal).
A Lei é bastante confusa, pois, para homologação do acordo, seria necessária admissão de culpa, sendo que, uma vez cumprido, haveria extinção da punibilidade. Melhor que tivesse seguido a sistemática da 9099/95, em que não seria imposta admissão de culpa, mesmo porque, para fins práticos, não surtirá efeitos, pois será extinta a punibilidade, o que nos parece impedir a inscrição de registros ou considerar o acordo de não persecução penal como antecedente ou reincidência.
23. Sobre o Juiz de Garantias
A recente alteração legislativa empreendida no final de 2019 acarretou diversas mudanças em nosso modelo de Justiça Penal.
Como toda reforma legislativa, sobretudo do tamanho da que foi empreendido pela Lei n. 13.964/2019, só o tempo dirá como será aplicada e interpretada pelos tribunais e se, de fato, aperfeiçoará o nosso sistema criminal, como menciona, de forma um tanto quanto presunçosa, o próprio texto legal.
As mudanças foram muitas, em especial quanto à adoção de um modelo de justiça negociada muito mais amplo que o admitido em sede de Juizados Especiais Criminais (Lei 9.099/95), não obstante, antecipa-se, pensamos se tratar esta opção legislativa de um erro, pois a justiça negocial já não vinha dando certo antes, com os crimes de menor potencial ofensivo, que se dirá agora, em que se impõe que o acordo implique até mesmo admissão de culpa.
Este assunto, contudo, será objeto de outro artigo, assim como tantas outras mudanças empreendidas pela Lei apelidada como Anticrime, que alterou não só o Código Penal, mas também o Código de Processo Penal e a Lei de Execução Penal, além de diversas leis extravagantes.
Mudança bastante comentada refere-se ao juiz de garantias.
Em síntese, a lógica do juiz de garantias nada mais constitui que a concretização da ideia (que não é nova entre nós) em se reservar a investigação preliminar ao acompanhamento de um juiz diverso do que irá acompanhar um eventual futuro processo penal, na hipótese de dedução da ação penal.
Isso porque, em nosso sistema, o mesmo juiz que acompanha a investigação policial, deferindo, quando for o caso, medidas cautelares de urgência e de obtenção de prova (por exemplo, autoriza a quebra do sigilo de dados, uma interceptação telefônica, uma busca e apreensão), também recebe a acusação e acompanha o processo deduzido, sentenciando o feito.
A adoção do juiz de garantias, implicando a necessidade de haver dois magistrados acompanhando o feito penal, evitaria, na ótica dos entusiastas da novidade legal, o inconveniente ou o risco de o mesmo magistrado, apenas pelo fato de ter acompanhado a investigação preliminar, ficar “contaminado” com a atividade que teria desempenhado em sede de inquérito policial.
Não nos parece, hoje, com um novo entendimento sobre a questão[34], seja um temor fundado, observando-se que o nosso juiz, na fase de investigação preliminar, não tem um protagonismo como o existente, por exemplo, nos modelos de juizado de instrução, nos ordenamentos jurídicos alienígenas, em que vigoraria a lógica do juiz de garantias (para fazer frente, justamente, a este protagonismo investigatório, que não se aplica a nós).
Em primeiro lugar, é e sempre foi muito controversa a afirmação de que o juiz que tenha acompanhado a investigação preliminar ficaria impedido para julgar a causa.
Basta uma rápida consulta à jurisprudência de qualquer tribunal nacional para verificar que o fato de o juiz autorizar medidas cautelares não significa que tenha ficado parcial a favor da tese da acusação, assim como fato de indeferir pedidos dos órgãos da persecução não significa que tenha abraçado a causa da defesa, tornando-se parcial a esta. Mesmo porque, ao deferir a produção de determinado meio de prova, o juiz nada mais estará exerendo que a sua função, em prol da necessária investigação dos fatos, para o seu correto acertamento.
Outrossim, o fato de se autorizar uma medida probatória (meio de obtenção de prova) não implica, necessariamente, o comprometimento do magistrado com qualquer tese, seja a favor ou contra quem quer que seja, pois o resultado probatório pode ser favorável a qualquer das partes.
Argumenta-se: mas o juiz, ao autorizar alguma medida, visaria chegar a algum lugar. De fato, o magistrado tem por objetivo chegar a algum lugar, consistente em apurar o fato, seja trabalhando com a hipótese de a acusação ser procedente, seja improcedente.
Quem levanta a objeção esquece que esta também é a sua função apurar os fatos, na medida em que juiz tem o dever de verificar como o fato aconteceu na realidade e, obviamente, para tanto, precisa autorizar meios de investigação probatória.
O juiz, sobretudo em matéria criminal, não pode ser uma samambaia, ou uma ameba, tampouco se manter inerte e/ou apático.
Obviamente, não pode ser proativo, tendencioso ou parcial, caso contrário não seria juiz, mas isso não implica que tenha quer ser uma múmia.
Esta discussão, é claro, passa por uma outra, bem mais profunda, que está relacionada aos modelos ou sistemas processuais penais, seja com relação à atividade probatória do magistrado, seja com relação à gestão da prova.
O debate atual em relação à atividade do juiz tem razões históricas e liga-se aos sistemas processuais continentais, haja vista a existência de três corpos distintos, quais sejam, inquisitório, acusatório e o que se chama por misto[35], que não devem ser confundidos com os modelos de investigação do sistema de Common Law, no direito angloamericano, divididos em adversarial e inquisitorial, sem uma necessária coincidência ou correspondência com o nosso.
Isso precisa ficar claro, pois há muita confusão entre um e outro modelo, confundindo as pessoas o sistema inquisitorial continental (em que o juiz não é imparcial) com o inquisitorial system, do modelo angloamericano.
Nos sistemas continentais, de fato, houve períodos em que o processo se iniciava por meio de uma acusação feita diretamente pelo juiz, cabendo a ele tanto o julgamento da causa como o papel, inclusive, de defender o acusado.
Trata-se do sistema inquisitório. O seu surgimento é situado junto com a Monarquia e ao Império romano, sendo que a lógica desse sistema alcançou sua maior expressão na investigação levada a cabo pela Inquisição. Aqui o próprio juiz acusava e instaurava o procedimento, concentrando em suas mãos a gestão da prova, o que, frise-se, não tem relação alguma com a atividade desenhada por nosso juiz, modernamente, que não pode (ou melhor, não poderia, haja vista o aberrante inquérito das fake news no STF) instaurar investigação de ofício.
Isso, mais uma vez, deve ficar claro, pois há quem afirme que vivíamos em um modelo de sistema inquisitório, afirmação completamente equivocada.
Com o passar do tempo, haja vista uma lenta e gradual conscientização de direitos do homem, percebeu-se que esse modelo de sistema inquisitorial, de vertente continental, não seria o mais justo e correto, exatamente porque não poderia o juiz exercer adequadamente, ao mesmo tempo, o papel de acusador, defensor e julgador. O magistrado, ao acusar, estaria comprometido já desde o início com a tese acusatória, por si formulada. Não haveria qualquer isenção por parte do juiz ao julgar alguém a quem, originariamente, imputou um fato delituoso. Verificava-se que o juiz, comumente, buscava tão-somente provar a acusação formulada por si[36].
Já no sistema denominado acusatório, ao se separarem as funções, verificava-se que o julgador não se encontrava comprometido com qualquer tese. Estaria assim melhor assegurada a imparcialidade do juiz, pressuposto de qualquer processo justo. Não há, evidentemente, coincidência subjetiva entre órgão acusador e julgador[37]. O sistema acusatório representa um modelo de preservação da forma processual, principalmente pela desvinculação da atividade persecutória pelo juiz[38].
Como uma espécie de meio termo a esses dois sistemas, haveria a criação do sistema misto, sendo exemplo mais significativo o sistema francês, surgido no período napoleônico, no Code d’ Instruction Criminalle de 1808. A investigação seria toda dirigida pelo juiz, em uma lógica mais ligada ao sistema inquisitorial (sistemas dos juizados de instrução, que não foram adotados por nós), sendo que, na ação penal propriamente dita, quando houvesse acusação formal, haveria o norteamento do processo de acordo com uma lógica mais acusatória, com as partes atuando[39].
Ao lado desses grandes sistemas continentais (acusatório, inquisitório e misto), existem os sistemas adversarial e inquisitorial, mais ligados à tradição dos países de cultura anglo-americana.
O processo, nos países de cultura de Common Law, é visto como uma verdadeira luta ou contenda entre as partes, ficando inteiramente ao seu encargo “a responsabilidade pelo impulso da marcha processual, dentre a qual estaria incluída a produção e a apresentação da prova”[40].
O sistema adversarial e inquisitorial, seja o norte-americano, ou o inglês, nesse sentido, não têm relação com a conceituação existente nos países de cultura continental, que se faz em sistema inquisitorial e acusatório, havendo, quando muito, apenas confusão terminológica.
Com efeito, nos países de cultura anglo-americana, as funções de julgar, defender e acusar são separadas e muito bem definidas.
Na verdade, estes sistemas, tanto o adversarial, quanto o inquisitorial, já têm como pressuposto a separação de funções no processo, diferenciando-se apenas no que concerne à possibilidade de o juiz ostentar algum tipo de iniciativa ou atividade probatória, paralelamente à das partes, presente este dado no sistema inquisitorial, inexistindo no sistema adversarial.
Ultimamente, há uma tendência de aproximação entre todos estes sistemas[41], sendo possível pensar em um sistema acusatório, conforme pensado no modelo continental (com separação entre atividade acusatória e judicante), mas com contornos do modelo inquisitorial angloamericano (isto é, com possibilidade de atividade instrutória por parte do juiz, como ocorre entre nós) ou mesmo adversarial (em que não haveria qualquer possibilidade instrutória ao magistrado)
Deve-se ter em mente, como bem descreve Diogo Rudge Malan, que “tanto o processo adversarial quanto o não adversarial têm por instrumento a descoberta da verdade. Eles diferem não quanto a esse instrumental, e sim quanto ao mecanismo de descoberta da verdade visto como mais adequado, justo e socialmente legítimo”[42].
No ponto, deve ficar claro que inquisitivos (no sentido de indagativos, não devendo o termo ser lido com qualquer conotação autoritária) mostram-se todos os procedimentos penais, sejam acusatórios ou inquisitórios[43].
Sendo o fundamento do processo a busca da verdade atingível, sendo esta o verdadeiro fator de legitimação do próprio garantismo penal, na esteira da teoria de Luigi Ferrajoli, a persecução deve ser, obviamente, indagativa, isto é, investigatória, inquisitiva, o que não deve nem pode ser interpretado ou confundido como a possibilidade de arbítrio, próprio do sistema inquisitorial.
Do exposto acima, pode-se verificar que, no sistema inquisitório, há um protagonismo do juiz no que concerne às tarefas processuais, tendo amplos e irrestritos poderes para iniciar procedimentos e/ou produzir provas contra ou a favor ao acusado. Trata-se de sistema em que não há diálogo, atuando o magistrado, na maioria das vezes, para confirmar uma suspeita ou acusação formulada por si.
Não era o sistema instituído antes da própria promulgação do juiz de garantias, sendo que, especialmente com a Constituição de 1988, nossos juízes não poderiam ser catalogados como inquisitoriais, atuando conforme uma lógica dentro do modelo acusatório, sendo esta temperada com a admissibilidade de atividade instrutória, no curso do processo penal, supletiva à atividade das partes.
A adoção do juiz de garantias é uma possibilidade legislativa válida, não se mostrando, por si só, inconstitucional, do ponto de vista material[44], como sustentam alguns, mas talvez não fosse necessária, sobretudo porque o fato de um juiz acompanhar ou supervisionar o inquérito, mormente em nosso modelo legal – que, frise-se, não tem paralelo com o juizado de instrução, vigente no modelo europeu - não o tornaria um inquisidor no curso da ação penal.
Criou-se uma modalidade de impedimento para o juiz que não existia antes, nem, com o devido respeito, se justificaria.
Isso, aliado ao curto prazo de vacatio legis da reforma para implementação do juiz de garantias, pode levar à decretação de uma série de invalidades, que, não raro, irão privilegiar alguns poucos privilegiados em detrimentos de outros[45] (na maioria dos casos, sempre se pode argumentar que não houve comprovação do prejuízo ou que o caso anulado tem peculiaridades não presentes nos demais).
Felizmente, o dispositivo do Juiz de Garantias foi suspenso, a tempo, seja pelo Ministro Toffoli, seja pelo Ministro Fux, na ação constitucional já mencionada neste texto, sendo que sua implementação deverá aguardar apreciação pelo Colegiado do STF, em tempo definido pela Corte, o que nos dá tempo, para fazer as necessárias acomodações do sistema, caso se entenda por manter este instituto.
Obviamente, há situações de comprometimento da imparcialidade do juiz, em que ele passa a atuar não mais como magistrado, mas como parte e, geralmente, acusatória; entretanto, nestes casos, haveria sempre a possibilidade de oposição de suspeição, sendo que só o caso concreto poderia confirmar se haveria este vício.
Seja como for, nos casos mais aberrantes, não se precisaria da aprovação de um juiz de garantias, por exemplo, para chegar à conclusão de que o inquérito das fake news, instaurado no STF, de ofício, para apurar fatos incertos, contra manifestação da própria Procuradora Geral da República à época de sua instauração, constituiu uma verdadeira aberração jurídica, sendo o seu prosseguimento mantido à margem de qualquer legalidade ou constitucionalidade.
Notas e Referências
[1] Trata-se de artigo (mais informal) desenvolvido para alunos, em sede de graduação, um tanto quanto extenso, embora sem tantas formalidades de um artigo acadêmico (muito embora o rigor técnico tenha sido rigorosamente observado). Para evitar repetições indevidas, ou muito alongadas, não são feitas tantas remissões por meio de notas de rodapé, sendo, de todo modo, sempre conferido o devido crédito, ao longo do texto, aos Autores e Professores cujo pensamento tenha sido mencionado neste texto.
[2] De acordo com a CF: Art. 58. O Congresso Nacional e suas Casas terão comissões permanentes e temporárias, constituídas na forma e com as atribuições previstas no respectivo regimento ou no ato de que resultar sua criação (...) § 3º As comissões parlamentares de inquérito, que terão poderes de investigação próprios das autoridades judiciais, além de outros previstos nos regimentos das respectivas Casas, serão criadas pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal, em conjunto ou separadamente, mediante requerimento de um terço de seus membros, para a apuração de fato determinado e por prazo certo, sendo suas conclusões, se for o caso, encaminhadas ao Ministério Público, para que promova a responsabilidade civil ou criminal dos infratores.
[3] Art. 61. Consideram-se infrações penais de menor potencial ofensivo, para os efeitos desta Lei, as contravenções penais e os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a 2 (dois) anos, cumulada ou não com multa (Redação dada pela Lei nº 11.313, de 2006)
[4] GRINOVER, Ada Pellegrini. “Investigações pelo ministério público”. Boletim do IBCCrim, São Paulo, ano 12, n.145, dez. 2004, p. 05.
[5] BITENCOURT, Cezar Roberto. “A inconstitucionalidade dos poderes investigatórios do Ministério Público”. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, ano 15, n. 66, mai.-jun./2007; SILVA, José Afonso da. “Em face da Constituição Federal de 1988, o Ministério Público pode realizar e/ou presidir investigação criminal, diretamente?” (Parecer). Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, ano 12, n. 49, jul.-ago/2004; TUCCI, Rogério Lauria. Ministério Público e investigação criminal. São Paulo: RT, 2004; ZANOIDE DE MORAES, Maurício. “Esgrimando com o Professor Sérgio Marcos de Moraes Pitombo: dos inexistentes poderes investigatórios do Ministério Público. Revista do Advogado, São Paulo, ano XXIV, n. 78, 2004
[6] Art. 17, CPP. A autoridade policial não poderá mandar arquivar autos de inquérito.
[7] A Constituição garante a ampla defesa, chegando a falar em plenitude de defesa, no que diz respeito ao Tribunal do Júri, que tem competência para apurar os crimes dolosos contra a vida.
[8] A alteração é criticável, não porque se questione o direito de defesa, destas autoridades, de forma alguma, mas porque se propicia um tratamento nada isonômico, com relação aos demais investigados, pois, para as pessoas comuns, na se prevê a obrigatoriedade de um defensor técnico durante o curso do inquérito. Confiram-se os termos da lei, neste ponto: Art. 14-A, CPP. Nos casos em que servidores vinculados às instituições dispostas no art. 144 da Constituição Federal figurarem como investigados em inquéritos policiais, inquéritos policiais militares e demais procedimentos extrajudiciais, cujo objeto for a investigação de fatos relacionados ao uso da força letal praticados no exercício profissional, de forma consumada ou tentada, incluindo as situações dispostas no art. 23 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), o indiciado poderá constituir defensor. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
§1º Para os casos previstos no caput deste artigo, o investigado deverá ser citado da instauração do procedimento investigatório, podendo constituir defensor no prazo de até 48 (quarenta e oito) horas a contar do recebimento da citação. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
§2º Esgotado o prazo disposto no § 1º deste artigo com ausência de nomeação de defensor pelo investigado, a autoridade responsável pela investigação deverá intimar a instituição a que estava vinculado o investigado à época da ocorrência dos fatos, para que essa, no prazo de 48 (quarenta e oito) horas, indique defensor para a representação do investigado. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
§3º (VETADO). (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
§4º (VETADO). (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
§5º (VETADO). (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
§6º As disposições constantes deste artigo se aplicam aos servidores militares vinculados às instituições dispostas no art. 142 da Constituição Federal,desde que os fatos investigados digam respeito a missões para a Garantia da Lei e da Ordem. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
[9] Art. 14. O ofendido, ou seu representante legal, e o indiciado poderão requerer qualquer diligência, que será realizada, ou não, a juízo da autoridade.
[10] Art. 7º São direitos do advogado: (...)
XIII - examinar, em qualquer órgão dos Poderes Judiciário e Legislativo, ou da Administração Pública em geral, autos de processos findos ou em andamento, mesmo sem procuração, quando não estiverem sujeitos a sigilo ou segredo de justiça, assegurada a obtenção de cópias, com possibilidade de tomar apontamentos; (Redação dada pela Lei nº 13.793, de 2019)
XIV - examinar, em qualquer instituição responsável por conduzir investigação, mesmo sem procuração, autos de flagrante e de investigações de qualquer natureza, findos ou em andamento, ainda que conclusos à autoridade, podendo copiar peças e tomar apontamentos, em meio físico ou digital; (Redação dada pela Lei nº 13.245, de 2016)
[11] “RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA. PROCESSUAL PENAL. INQUÉRITO POLICIAL – PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO DE NATUREZA INVESTIGATÓRIA. VISTA DOS AUTOS POR ADVOGADO CONSTITUÍDO. NEGATIVA. SIGILO. ART. 20 DO CPP. REGRA PREVALECENTE. CONSIDERAÇÃO ACERCA DO CASO EM CONCRETO. PROTEÇÃO À SOCIEDADE, AO ESTADO E AO SUCESSO DAS INVESTIGAÇÕES. A despeito da nova ordem constitucional que assegura os direitos democráticos, como o acesso às informações e meios que assegurem a defesa do cidadão, a regra disposta no art. 20 do CPP não foi revogada. O inquérito policial é procedimento administrativo de natureza investigatória e, considerando-se a especificidade do caso, no qual devem ser resguardadas a proteção à sociedade, ao Estado e principalmente ao sucesso de investigação de tamanho porte, aos impetrantes, na qualidade de advogados constituídos pelo interessado, foi negada vista do respectivo procedimento, sem que com isso haja qualquer violação a direito líquido e certo. Recurso desprovido” (STJ, RMS 14.397/PR, Rel. Ministro JOSÉ ARNALDO DA FONSECA, QUINTA TURMA, julgado em 01/10/2002, DJ 04/11/2002, p. 217)
[12] Era muito comum, nos anos de 2007/2008, o Juízo da 6.ª Vara Criminal Federal de São Paulo indeferir o acesso aos autos do inquérito policial do suspeito, ainda que houvesse pedido do advogado para tanto, sob a alegação de que não havia ainda uma acusação formal, não havendo, ao ver do juízo oficiante, interesse em se ter acesso aos autos da investigação, salvo em caso de indiciamento.
[13] É direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa.
[14] Embora a lei refira-se ao indiciado, a norma comporta interpretação extensiva, dados os influxos do direito de defesa, com a ordem constitucional de 1988 (interpretação sistemática), sendo aplicável ao meramente suspeito.
[15] XXI - assistir a seus clientes investigados durante a apuração de infrações, sob pena de nulidade absoluta do respectivo interrogatório ou depoimento e, subsequentemente, de todos os elementos investigatórios e probatórios dele decorrentes ou derivados, direta ou indiretamente, podendo, inclusive, no curso da respectiva apuração: (Incluído pela Lei nº 13.245, de 2016)
[16] Art. 9o Todas as peças do inquérito policial serão, num só processado, reduzidas a escrito ou datilografadas e, neste caso, rubricadas pela autoridade.
[17] Art. 27. Requisitar instauração ou instaurar procedimento investigatório de infração penal ou administrativa, em desfavor de alguém, à falta de qualquer indício da prática de crime, de ilícito funcional ou de infração administrativa:
Pena - detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.
Parágrafo único. Não há crime quando se tratar de sindicância ou investigação preliminar sumária, devidamente justificada.
[18] Art. 66. Deixar de comunicar à autoridade competente:
I – crime de ação pública, de que teve conhecimento no exercício de função pública, desde que a ação penal não dependa de representação;
II – crime de ação pública, de que teve conhecimento no exercício da medicina ou de outra profissão sanitária, desde que a ação penal não dependa de representação e a comunicação não exponha o cliente a procedimento criminal:
Pena – multa, de trezentos mil réis a três contos de réis.
[19] Art. 19. Nos crimes em que não couber ação pública, os autos do inquérito serão remetidos ao juízo competente, onde aguardarão a iniciativa do ofendido ou de seu representante legal, ou serão entregues ao requerente, se o pedir, mediante traslado.
[20] Art. 347, CP - Inovar artificiosamente, na pendência de processo civil ou administrativo, o estado de lugar, de coisa ou de pessoa, com o fim de induzir a erro o juiz ou o perito:
Pena - detenção, de três meses a dois anos, e multa.
Parágrafo único - Se a inovação se destina a produzir efeito em processo penal, ainda que não iniciado, as penas aplicam-se em dobro.
[21] Não haverá identificação do civilmente identificado, salvo nas hipóteses previstas em lei, segundo a própria Constituição. A Lei de identificação criminal (12.037/2009) prevê o mesmo teor, ressalvando as hipóteses em que haverá identificação criminal, como consta do dispositivo do Art. 3º Embora apresentado documento de identificação, poderá ocorrer identificação criminal quando:
I – o documento apresentar rasura ou tiver indício de falsificação;
II – o documento apresentado for insuficiente para identificar cabalmente o indiciado;
III – o indiciado portar documentos de identidade distintos, com informações conflitantes entre si;
IV – a identificação criminal for essencial às investigações policiais, segundo despacho da autoridade judiciária competente, que decidirá de ofício ou mediante representação da autoridade policial, do Ministério Público ou da defesa;
V – constar de registros policiais o uso de outros nomes ou diferentes qualificações;
VI – o estado de conservação ou a distância temporal ou da localidade da expedição do documento apresentado impossibilite a completa identificação dos caracteres essenciais.
Parágrafo único. As cópias dos documentos apresentados deverão ser juntadas aos autos do inquérito, ou outra forma de investigação, ainda que consideradas insuficientes para identificar o indiciado.
A identificação criminal pode ser feita por processo datiloscópico, por meio fotográfico e por material genético; no que diz respeito à identificação fotográfica, poderá ser excluída dos autos com o arquivamento ou absolvição (lato sensu); quanto ao material genético, poderá ser excluído com a prescrição do crime, ou em outra data fixada por meio de decisão judicial (nesse último caso, segundo o regulamento assinado pela Presidente da República)
[22] Parte da doutrina anota ser impossível uma análise psicológica do sujeito; há estudos que demonstram o quanto essa análise é abstrata e, por isso mesmo, perigosa, sob pena de referendar um direito penal de autor em detrimento do direito penal fato, em que a pessoa é julgada pelo que ela é não pelo que ela fez (o fato em si).
[23] STJ, REsp 1497999/RS, Rel. Ministro JORGE MUSSI, QUINTA TURMA, julgado em 10/03/2015, DJe 17/03/2015
[24] Com o Novo Código Civil, perdeu aplicabilidade o artigo 15, do Código de Processo Penal, que previa a necessidade de se nomear curador ao menor (no caso, menor segundo a antiga Lei Civil – embora maior, responsável pela lei penal - isto é, da pessoa cuja idade estava compreendida entre 18 e 21 anos). Havendo a redução da maioridade civil, por questão de lógica, não é mais necessária a nomeação de curador, pois a pessoa de 18 anos já é inteiramente capaz. Fazendo a lei processual remissão ao conceito de menoridade civil, havendo redução desta, o melhor entendimento é que essa disposição foi revogada tacitamente.
[25] Carta precatória é um instrumento utilizado para a prática de atos sujeitos à competência de uma autoridade na circunscrição ou competência de outra.
[26] É possível, ao longo do inquérito, que se proceda a um incidente de produção antecipada de provas, justamente visando conferir à prova colhida no inquérito valor de prova judicial, para avaliação pelo juiz na sentença, avaliação esta que, a princípio, não seria possível, pois os elementos colhidos no inquérito só serviriam para a dedução de uma ação penal e para a avaliação do juiz se caberia iniciar o processo criminal, isto é, instaurando-o. Imagine uma hipótese em que uma testemunha do crime esteja enferma, enfim, em vias de morrer, ou esteja com idade muito avançada. Pode ser interessante que se colha este depoimento com uma formalidade maior, para garantir que este determinado elemento tenha o valor de uma prova judicial, para que o juiz possa valorar futuramente, em sua sentença. Por que isso? Porque se garante que, se for instaurado o processo, a prova estará garantida, não se correndo o risco de perdê-la, eis o risco de a pessoa morrer quando houvesse a produção judicial da prova. A este procedimento, dá-se o nome de incidente de antecipação de prova, estando previsto no artigo 156, I, CPP: Art. 156. A prova da alegação incumbirá a quem a fizer, sendo, porém, facultado ao juiz de ofício. I – ordenar, mesmo antes de iniciada a ação penal, a produção antecipada de provas consideradas urgentes e relevantes, observando a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida.
[27] Irrepetíveis são aquelas provas que, até pela sua própria natureza, não poderão ser repetidas novamente. A cautelaridade é pressuposto da sua produção. Pense-se em uma prova pericial, de um exame de corpo de delito, que deve ser feito o quanto antes, na fase de inquérito, pela polícia científica, antes que sumam os vestígios de crime. Obviamente, na maioria dos casos, a prova na poderá ser feita novamente, devendo o contraditório efetivar-se, no eventual futuro processo, sobre o que foi produzido na fase de inquérito.
[28] Art. 51. O inquérito policial será concluído no prazo de 30 (trinta) dias, se o indiciado estiver preso, e de 90 (noventa) dias, quando solto. Parágrafo único. Os prazos a que se refere este artigo podem ser duplicados pelo juiz, ouvido o Ministério Público, mediante pedido justificado da autoridade de polícia judiciária.
[29] Lei 5010/66: Art. 66. O prazo para conclusão do inquérito policial será de quinze dias, quando o indiciado estiver prêso, podendo ser prorrogado por mais quinze dias, a pedido, devidamente fundamentado, da autoridade policial e deferido pelo Juiz a que competir o conhecimento do processo. Parágrafo único. Ao requerer a prorrogação do prazo para conclusão do inquérito, a autoridade policial deverá apresentar o prêso ao Juiz.
[30] Art. 51, da Lei 11343/2006.
[31] Também quanto às peças de informação deve haver pedido de arquivamento, segundo antiga redação do artigo 28, do Código de Processo Penal.
[32] No caso da ação penal privada, como se trata de ato que fica sob a esfera de disponibilidade da vítima, ou de quem a represente, caso o ofendido se manifeste pelo arquivamento (na verdade, caso ele decida não acusar), não pode o juiz fazer qualquer juízo de valor.
[33] Havendo pedido de arquivamento do Ministério Público e arquivado o inquérito, não há recurso cabível, pela sistemática antiga. Pela sistemática da Lei Anticrime, haveria recurso da vítima, mas tal dispositivo encontra-se suspenso, por força da liminar concedida pelo Ministro Fux. Seja como for, seja na sistemática antiga (que ainda está vigente, por força da liminar mencionada), pautando-se o fundamento do pedido de arquivamento em um dado que fará coisa julgada, embora a matéria seja polêmica, pode haver interesse da vítima em recorrer, pois se tratará de decisão com força definitiva, sendo cabível apelação ou recurso em sentido estrito (na hipótese de extinção da punibilidade). Ainda que se argumente que o recurso possa não ter efeito prático, pois caberá ao Ministério Público denunciar, ele pode evidenciar a improcedência quanto à declaração de eventual prematura (e indevida) extinção da punibilidade indevida, podendo até convencer o acusador de que, não estando extinta a punibilidade, é possível acusar. Então, se o arquivamento se pautar em extinção da punibilidade, até por haver recurso previsto na lei expresso para combater essa decisão, o arquivamento, porque pautado neste fundamento, será recorrível. Há hipóteses excepcionai em que há previsão de recurso de ofício das decisões de arquivamento do inquérito, como nos casos de crime contra a economia popular ou saúde pública – lei 1521/51. Contudo, é tão sem sentido tal previsão que se o Tribunal der provimento ao recurso não poderá fazer nada, já que a última palavra caberá mesmo ao Chefe da instituição do Ministério Público. Na contravenção do jogo do bicho, havia a previsão de que qualquer do povo poderá recorrer em sentido estrito do arquivamento; contudo, isso foi revogado pela Lei 9.099/95 que disciplinou todo o procedimento nesses casos (persecução nas contravenções e nos crimes de menor potencial ofensivo)
[34] No passado sim, pois tínhamos, anteriormente, uma mentalidade refratária à própria possibilidade de o juiz ter qualquer poder instrutório.
[35] ZILLI, Marcos Alexandre Coelho. A iniciativa instrutória do juiz no processo penal. São Paulo, RT, 2003, p. 35-36.
[36] PEDROSO, Fernando de Almeida. Processo Penal. O direito de defesa: repercussão, amplitude e limites. 3ª ed. São Paulo: RT, 2001, p. 22.
[37] ZILLI, Marcos Alexandre Coelho. A iniciativa instrutória do juiz no processo penal, p. 38.
[38] GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Uma nova teoria das nulidades, p. 110.
[39] “Daí a denominação de sistema misto: existência de uma fase inquisitorial secreta, presidida pelo juiz, sem participação da defesa, e de uma fase pública contraditória, com a intervenção da acusação e defesa” (FERNANDES, Antonio Scarance. A reação defensiva à imputação. São Paulo: RT, 2002, p. 56-57).
[40] ZILLI, Marcos Alexandre Coelho. A iniciativa instrutória do juiz no processo penal, p. 26.
[41] BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Ônus da prova no processo penal. São Paulo: RT, 2003, p. 154. Diogo Rudge Malan cita exemplo de incorporação de institutos jurídicos de uma família do direito pela outra justamente o fato de o Código de Processo Penal italiano, que tomou para si o princípio de gestão das provas pelas partes processuais, sendo que a recíproca também é verdadeira, na medida em que alguns sistemas de Common Law incorporaram aspectos da família romano-germânica, como ocorreu com o Código de Processo Civil de 1999, incrementando os poderes do juiz na condução do processo (MALAN, Diogo Rudge. Direito ao confronto no processo penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 27 e ss.).
[42] MALAN, Diogo Rudge. Direito ao confronto no processo penal, p. 25.
[43] Ricardo Jacobsen Gloeckner critica a distinção feita por Rogério Lauria Tucci entre inquisitório e inquisitividade, diferenciação esta agasalhada por nós. Assim se manifesta o autor: “Lauria Tucci, inclusive, equivocadamente, estabelece uma pseudo diferenciação entre modelo inquisitivo e inquisitividade da atuação dos agentes estatais. Em suas palavras ‘mostra-se uniforme o entendimento universal acerca da distinção entre processo penal inquisitório, originado do Direito Penal Romano e aperfeiçoado segundo o modelo canônico, e a inquisitividade ínsita ao processo penal moderno’. O processualista pretende, como se fosse possível, distinguir a característica do sistema processual (inquisitório) e o substantivo marcado pelas características do próprio conceito. Sistema processual inquisitório representa aquele sistema em que o juiz detém poderes instrutórios. Inquisitividade – poderes instrutórios do juiz – somente pode ser pensado a partir do sistema inquisitório. Impossível um significante querer dizer uma mesma coisa e seu contrário (princípio da não contradição)” (GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Uma nova teoria das nulidades, p. 166).
[44] Muito embora, do ponto de vista formal, a inconstitucionalidade da lei possa e deva sim ser discutida, conforme a apresentação de várias ADINs.
[45] Não temos nada contra a decretação de nulidades, especialmente quando devidas, pois a nulidade serve para proteção de direitos. Contudo, causa estranheza o fato de nulidades serem reconhecidas para alguns poucos indivíduos, até de forma desnecessária, mas não são reconhecidas para inúmeras outras pessoas, embora a situação jurídica seja a mesma.
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