O voto capcioso de Cristovam Buarque – Por Agostinho Ramalho Marques Neto

28/08/2016

Ontem (27/08/2016) assisti, estarrecido, à manifestação do senador Cristovam Buarque no processo de impeachment contra a presidenta Dilma Rousseff, que ora chega a seus momentos decisivos no Senado Federal.

Durante o depoimento do jurista Ricardo Lodi, arrolado como informante pela defesa da presidenta, o senador, com ar de homem bom e probo, preocupado apenas com a prevalência da boa justiça, dirigiu ao depoente, “apenas para dirimir uma última dúvida” que ainda lhe habitava o espírito, a pergunta sobre se, na opinião daquele jurista, houvera algum deslize no que tange aos aspectos jurídico-formais, isto é, à observância dos ritos processuais, durante o transcorrer do julgamento.

Diante da resposta de Ricardo Lodi de que, quanto a esse particular, não via maiores descumprimentos dos procedimentos legais em magnitude tal que pudesse conduzir à nulidade do processo, o senador Buarque, como se, enfim, houvesse obtido o último elemento que lhe faltava para chegar à plena convicção, asseverou, proferindo ao mesmo tempo um voto antecipado, que agora tinha a certeza de que, em seu voto, acolheria a tese de aceitação do pedido de impeachment. E deu a entender, manhosamente, que o depoente é que acabara de lhe fornecer esse último e decisivo elo. Para o senador, o cumprimento dos trâmites e ritos processuais bastaria para concluir pela culpabilidade da acusada.

Quanto ao mérito da matéria efetivamente sob julgamento, ou seja, se a presidenta havia de fato praticado algum crime de responsabilidade tipificado na legislação pertinente, Buarque limitou-se a dizer que, em face de haver argumentos que lhe pareciam consistentes tanto a favor quanto contra a tese do impeachment, e agora de posse da certeza da correção formal do processo, embora dúvidas ainda lhe restassem quanto ao mérito, desconsideraria o princípio do in dubio pro reo e acolheria o princípio, a seu ver mais adequado ao caso, do in dubio pro societate.

Ora, a estrita observância dos ritos processuais, conquanto seja condição necessária, está longe de ser suficiente para fundamentar uma decisão definitiva no campo jurídico. A justiça e a lisura ética que são de se esperar de um julgamento jurídico não se satisfazem, de modo algum, com o simples cumprimento de condições formais. Ritos religiosos eram estritamente observados durante a prática de sacrifícios humanos em sociedades antigas. Ritos processuais foram cumpridos tanto nos tribunais da Inquisição medieval quanto nos processos da Alemanha nazista comandada por Hitler e da União Soviética comunista sob o comando de Stálin. Também foram observados na prática da censura e nos processos de cassação de mandatos de parlamentares democraticamente eleitos e de aniquilação dos direitos humanos (não somente direitos de liberdade como também de integridade física e da própria vida) e de garantias de defesa e do exercício da cidadania, durante a recente ditadura civil-militar no Brasil, assim como em outros países latino-americanos. Ritos processuais podem ser rigorosamente observados até mesmo na prática de torturas, como instituído, por exemplo, nos Estados Unidos, sobretudo a partir da promulgação do Patriot Act pelo então presidente George W. Bush como resposta aos atentados em Nova York em setembro de 2001. A “regulamentação” dessa prática chegou ao requinte de estabelecer, por exemplo, critérios sobre como suspeitos de terrorismo deviam ser submetidos a afogamentos simulados e a outras práticas de tortura, com o fim – suposto como “legítimo” e, nessa condição, apto a justificar os meios empregados para alcançá-lo – de obter confissões e delações.

O mero cumprimento dos requisitos formais de um processo, desconsiderando-se a matéria que constitui seu conteúdo, revela-se uma prática vazia, capaz de conduzir a aberrações como as que acima arrolei. Mas, aparentemente, tudo seria feito dentro da legalidade... Quanto ao conteúdo – e, afinal de contas, é ou não é por algum conteúdo delitivo que Dilma está sendo julgada? –, continua sem a necessária demonstração cabal que ela efetivamente tenha cometido crime de responsabilidade (resta, inclusive, por determinar de modo inequívoco qual teria sido esse crime), e também que o tenha praticado dolosamente e por ação, já que em casos como esse a legislação não prevê expressamente a prática meramente culposa ou por omissão. Não cabe no caso, sem sombra de dúvida, a aplicação da discutível teoria do domínio do fato.

O princípio do in dubio pro reo é um modo de enunciação do princípio da presunção de inocência, reconhecidamente um marco civilizatório na história humana. Ele não pode ser convertido perversamente no seu contrário, num princípio de presunção de culpa, por mais nobres que sejam as justificativas invocadas, como o combate à corrupção e a uma alegada impunidade. O que esse princípio protege não é apenas a pessoa dos réus, mas as pessoas de todos os cidadãos, ao colocar o ônus da prova sob a responsabilidade de quem acusa. O princípio ético subjacente a esse princípio jurídico é o de que é menos ruim, em caso de impossibilidade da apresentação de prova definitiva, a impunidade de um culpado, do que a punição de um inocente. Se dúvidas há quanto ao mérito do pedido de impeachment – que é o que Cristovam Buarque confessa que ocorre consigo, e com certeza também ocorre com muitos, se não com a maioria dos que têm procurado formar opinião sobre o caso –, então o único princípio que pode ser legitimamente aplicado é o do in dubio pro reo. O princípio do in dubio pro societate, de cuja aplicação o senador capciosamente arroga-se o direito, cabe exclusivamente à própria sociedade e, num sistema democrático presidencialista como o nosso, somente a maioria dos cidadãos, em eleições livres e diretas, tem legitimidade política, jurídica e ética para exercer. Qualquer outra solução, com base, por exemplo, no tão alegado “conjunto da obra”, quer dizer, no argumento de que ela fez um governo desastroso, por mais que admitamos que realmente o fez – e eu me incluo entre os que o admitem –, não passa de um golpe!


 

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