O uso político do sistema de justiça criminal no Brasil

29/03/2016

Por Antonio Pedro Melchior - 29/03/2016

“Não se pode, por meio de uma moldura democrática, subtrair à ditadura o impulso de legitimar seus efeitos.”

Otto Kirchheimer, A reforma  constitucional, 1932.

Este texto tem o propósito de lançar breves esclarecimentos sobre o que se entende por uso político do sistema de justiça criminal. O objetivo é estabelecer, desde o ponto de vista teórico, os traços que identificam esta espécie de praxis repressiva, atravessada pelo desejo de constranger lutas sociais, eliminar pessoas ou partidos.

O uso político do sistema de justiça criminal possui um grande acúmulo histórico no Brasil. Empregado em tempos diversos, por diferentes motivos, nem sempre pelos mesmos atores ou contra os mesmos grupos. [1]

Com o fim declarado da ditadura civil e militar no Brasil, o uso político do sistema de justiça criminal foi novamente gestado em 2013 pelo governo federal e governos estaduais para reprimir os movimentos sociais que lutavam pela mobilidade urbana como direito fundamental (passe livre), contra a militarização da justiça (fim da PM), execuções policiais (jovem negro vivo), remoções forçadas em razão dos grandes eventos no país, dentre outras bandeiras. Em 2016, sobram indicações de que agências e atores de orientação contrária à presidenta Dilma Roussef, direcionam politicamente a persecução penal para atingir figuras emblemáticas e eliminar o partido dos trabalhadores da cena política nacional.

Estas são as hipóteses colocadas. Elas precisam ser testadas e examinadas empiricamente. Esta coluna é uma provocação acadêmica neste sentido. Pelo governo ou contra o governo, o uso político do sistema de justiça criminal fragiliza as instituições republicanas e compromete a democracia no campo penal.

Como premissa, deve ficar registrado que toda pessoa presa pelo Estado é, em última análise, um preso político. Toda criminalização corresponde a uma decisão política sobre o que deve ser considerado desvio e, naturalmente, o desviante. Todo processo penal encerra uma questão política de conteúdo jurídico criminal. Uma distinção entre “preso comum” e “preso político”, portanto, esvaziaria a essência política do sistema de justiça penal.

Entretanto, o uso político do sistema de justiça criminal se qualifica como categoria em razão de determinadas características associadas à persecução. O conceito foi trabalhado por Otto Kirchheimer na obra Political Justice.[2] Geraldo Prado e Juarez Tavares dedicaram-se recentemente ao tema na primeira parte dos estudos sobre o impeachment no direito brasileiro. [3]

O emprego dos procedimentos legais pode ser uma forma de alcançar fins ilegítimos. O uso do processo criminal, por ex., constitui a parte fundamental da estratégia de perseguir opositores ou movimentos de oposição (estando ou não no governo). Por várias razões isto será feito em detrimento da violência, tortura, sequestros e homicídios: necessidade de recorrer à legalidade e aos tribunais (tentativa de legitimação); discricionariedade (alguns grupos ou pessoas não estão, à luz de quem exerce o poder repressivo, na condição de serem suprimidas) ou, simplesmente, mera conveniência (quando se deseja apenas estabilizar posições políticas).

O emprego político do sistema de justiça criminal está marcado pela opção institucional de utilizar o dispositivo processual como forma de obter resultados políticos específicos: imobilizar movimentos sociais e arrefecer a luta constituinte por direitos; destituir governantes eleitos e ocupar o governo; eliminar opositores legítimos.

Tradicionalmente, a justiça política se caracterizaria pela existência de uma acusação por crime político, promovida no interesse do governante e dirigida a atingir os opositores. No contexto brasileiro do séc. XXI, este conceito precisa ser revisitado. O argumento do texto funda-se em três premissas:

(i) O emprego político da persecução penal está desassociado da existência, mesmo em tese, de crimes políticos, assim entendidos como aqueles tipificados na Lei de Segurança Nacional. Esta condição não desqualifica a existência de uma justiça política, porque o que está em questão é, ainda, a finalidade política da repressão mesmo que o crime imputado seja outro (como por ex., corrupção, lavagem de dinheiro, dano ao patrimônio público, organização criminosa, etc.).

(ii) O emprego do processo como dispositivo da repressão política poderá ser utilizado contra grupos ou movimentos que não pretendem ocupar o poder governamental, mas que são vistos como atentatórios aos interesses que lhe dão sustentação política (o stablishment). Este é o caso específico do emprego político do processo contra os movimentos sociais e onde reside os perigos concretos da Lei Antiterror, proposta pelo governo Dilma Roussef e aprovada recentemente no Congresso com apoio da oposição.

(iii) Uma vez que as instituições encarregadas de levar a cabo à persecução (ministério público, polícia e judiciário) gozam de autonomia institucional em relação ao governo, o emprego político do processo penal está em condições de ser manejado pelos grupos opositores contra os próprios mandatários eleitos para ocupar o poder. Aparentemente, esta é uma inversão do ponto de vista da justiça política. A oposição leva o governante (e/ou seus aliados) a julgamento, por meio da atuação integrada das instituições repressivas, que direcionam politicamente a condução e o resultado das suas investigações.

Quando uma persecução penal é politicamente orientada, não se trata mais de construir a solução justa do caso penal, nem de assegurar um julgamento com respeito  às regras. Sigilos e inviolabilidades são concebidos como entraves ao objetivo maior da "segurança das instituições" e da "moralidade pública". A publicidade dos atos, pensada para evitar perseguições secretas, torna-se fundamento para o vazamento judicial de informações sigilosas. A garantia da imparcialidade do juiz (magistrado inerte, independente e árbitro das formas legais), é superada pela idolatria ao juiz protagonista, salvacionista, que investe na produção probatória e exerce a segurança pública "da nação".

No caso mais indiscutível de uso político do sistema de justiça criminal brasileiro no séc. XXI, vinte e três pessoas foram presas preventivamente sob o argumento de que planejavam atos de violência para tumultuar a cobertura da copa do mundo. A apreensão de panfletos (não vai ter copa; marcha da maconha, etc.) e bandeiras (ex., frente independente popular) foi utilizada como indício de participação em organização criminosa. Atualmente, o processo está concluso para sentença. [4]

Mesmo quando se trata de atribuir corretamente responsabilidades, o uso político do processo penal retira a legitimidade dos julgamentos. Esta é a sombra que paira sobre algumas fases da Operação Lava Jato. A divulgação, pelo próprio juiz, no auge da crise política, de conversas telefônicas ilegalmente interceptadas (após o encerramento), entre a presidente da república e Lula, é um exemplo sintomático. Há outros que precisam ser melhor examinados.

A espetacularização envolvida na condução coercitiva decretada por Sergio Moro e o pedido de prisão preventiva em face do ex-presidente, deduzido por três promotores da justiça paulista, parecem contaminados politicamente. As delações - obtidas sob ameaça de prisão cautelar - aparentam ser seletivamente divulgadas (antes da homologação judicial) para atingir grupos políticos específicos. Há demonstrações de que a prisão preventiva de determinados atores políticos (ex. Lula) é mais desejada do que outros (ex. Eduardo Cunha, Aécio Neves, etc). As noticias de que a chamada "Lista da Odebrecht" contendo nomes de pessoas pertencentes a legendas da oposição, não será investigada pela força tarefa da Operação Lava Jato também precisa ser esclarecida.

A legitimidade de parte da operação pode entrar em colapso se não forem excluídas as suspeitas de uso político do sistema de justiça criminal. No caso dos 23 ativistas perseguidos, esta legitimidade já não existe. Em ambos os casos, a grande mídia tem enorme responsabilidade nisso.

Algumas conclusões podem ser lançadas provisoriamente.

1. O uso político do sistema de justiça criminal dilui a fronteira entre jurisdição, guerra e política (Carl Schmitt)[5]. Isto enfraquece a legalidade como princípio básico do processo e cria um ambiente favorável a julgamentos influenciados pela dicotomia "amigos-inimigos".

2. A submissão da lei ao objetivo político que move à persecução, incrementa toda sorte de arbitrariedades judiciais. O julgador transforma-se em ator político e os seus abusos, imunizados por uma espécie de economia moral das ilegalidades (Salah Khaled Jr.) [6]

3. Este contexto processual afeta a confiança na jurisdição como caminho irredutível à solução justa do caso. A finalidade epistêmica do processo penal é comprometida, uma vez que a qualidade das provas são redimensionadas para atender, ainda que inconscientemente, ao desejo político que atravessa os atores judiciais.

4. O uso político do sistema de justiça criminal elimina os fundamentos que identificam o regime democrático no campo penal: limites rígidos ao exercício do poder; maximização das liberdades; racionalização das respostas violentas do Estado.

Esta estrutura corresponde a um programa civilizatório, fundado na luta pelas humanidades contra todas as formas de obscurantismo.[7] Fora deste molde, o processo penal perde legitimidade política e toda justiça fica, assim, entregue aos caprichos do caudilho togado de ocasião.


Notas e Referências: 

[1] Historicamente, os grupos ou movimentos  identificados com o pensamento de esquerda foram, sem dúvida, mais perseguidos.

[2] KIRCHHEIMER, Otto. Political Justice: The Use of Legal Procedure for Political Ends.Princeton University Press, 1961. Cf. KIRCHHEIMER, Otto. Justicia Politica: empleo del procedimento legal para fines políticos. México: UTEHA, 1998.

[3] PRADO, Geraldo. TAVARES, Juarez. O Direito Penal e o Processo Penal no Estado de Direito: Análise de Casos. Santa Catarina: Empório do Direito, 2016.

[4] Autos nº 0229018-26.2013.8.19.0001.

[5] Cf. SCHMITT, Carl. O Conceito do Político. Petrópolis: Vozes, 1992.

[6] Cf. KHALED JR. Salah. A condução coercitiva de Lula e a economia moral de ilegalidades. disponível em http://justificando.com/2016/03/07/a-conducao-coercitiva-de-lula-e-a-economia-moral-de-ilegalidades/. Acesso em 27.03.16.

[7] CARVALHO, Salo. Penas e Garantias. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013, p. 80.


Antonio Pedro MelchiorAntonio Pedro Melchior é Doutorando em Direito na Universidade Federal do Rio de Janeiro; Professor de direito processual penal do IBMEC/RJ; Professor e coordenador adjunto de Direito Processual Penal da EMERJ; Membro do Fórum Permanente de Direito e Psicanálise da EMERJ; Membro do Núcleo de Direito e Psicanálise do Programa de Pós Graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná; Advogado Criminalista.


Imagem Ilustrativa do Post: 2015/365/6 Barriers Here, Barriers There // Foto de: Alan Levine // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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