O uso da prova ilícita a favor do réu no processo penal

26/10/2019

A rigor, doutrina e jurisprudência têm admitido a possibilidade de utilização de prova ilícita no processo quando ela for produzida em benefício do réu ("prova ilícita pro reo").

Ocorre que, embora haja previsão constitucional e infraconstitucional acerca da inadmissibilidade, no processo, das provas obtidas por meio ilícitos, como bem destaca Rosane Cima Campiotto, tal regra é relativa, existindo, segundo a autora, exceções, na medida em que há situações onde verifica-se verdadeiro conflito de interesses fundamentais, igualmente tutelados constitucionalmente (também dentre os direitos e garantias individuais, assim como o é o direito protegido pelo citado inciso LVI do artigo 5° da Constituição Federal). Devendo-se, em tais casos, utilizando-se do princípio da proporcionalidade, contrastar os interesses e valores em jogo, permitindo-se, em certas hipóteses, a admissão das provas obtidas por meios ilícitos. (Campiotto, 2004).

Ainda, segundo a autora, citando Ada Pellegrini Grinover, Antonio Scarance Fernandes e Antônio Magalhães Gomes Filho: “A teoria, hoje dominante, da inadmissibilidade processual das provas ilícitas, colhidas com infringência a princípios ou normas constitucionais, vem, porém, atenuada por outra tendência, que visa a corrigir possíveis distorções a que a rigidez da exclusão poderia levar em casos de excepcional gravidade. Trata-se do denominado Verhältnismassigkeitsprinzip, ou seja, de um critério de proporcionalidade, pelo qual os tribunais da então Alemanha Federal, sempre em caráter excepcional e em casos extremamente graves, têm admitido a prova ilícita, baseando-se no princípio do equilíbrio entre valores fundamentais contrastantes.” (Campiotto, 2004, apud Grinover, Fernandes, Gomes Filho, p. 136)

A maior controvérsia doutrinária reside, então, no questionamento acerca de quais hipóteses em que as provas ilícitas poderão ser admitidas no processo penal através da aplicação do princípio da proporcionalidade. De um lado, encontra-se a corrente majoritária que entende ser a prova ilícita admissível apenas quando sua utilização se der em benefício do acusado (proporcionalidade pro reo). De outro lado, parte menos expressiva da doutrina posiciona-se favorável à utilização da prova ilícita também em benefício da sociedade (proporcionalidade pro societate).

Independente do fundamento jurídico, fato é, que parece claro não haver discussão acerca da possibilidade de admissão de uma prova ilícita quando tratar-se de prova apta a absolver ou favorecer o réu.

Há um consenso entre os doutrinadores acerca da possibilidade de se aplicar o princípio da proporcionalidade para permitir a utilização de prova ilícita em benefício do acusado, no processo penal. Nesse caso, verifica-se que, de fato, não há maiores problemas para a mencionada aplicação do princípio, tendo em vista os direitos fundamentais colidentes no caso concreto: de um lado, o direito que indivíduo tem à sua liberdade; de outro, o direito que fora violado ao se produzir a prova. Considera-se que, observados os requisitos de adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito, ao se colocar os valores contrapostos na balança, conclui-se que o direito à liberdade do indivíduo deve prevalecer e, quando existir uma prova ilícita que demonstre a sua inocência, esta conseqüentemente deverá ser admitida no processo. Ademais, entende-se que deve ser afastada a ilicitude da prova quando esta for colhida pelo acusado sob estado de necessidade, ou seja, quando a necessidade de salvar o seu direito à liberdade faz com que o acusado sacrifique o direito que fora violado quando da obtenção da prova.

Outrossim, a teoria de sopesamento de Robert Alexy e a sua ideia de otimização da norma quanto às diversas respostas existentes dentro do ordenamento, possibilita a construção jurisprudencial de exceções quanto à vedação da prova ilícita, e, até mesmo, da exclusão desta ilicitude em vista da legítima defesa das liberdades públicas fundamentais. Isso é aferido com a leitura do MS n. 23.452/RJ:

Não há, no sistema constitucional brasileiro, direitos ou garantias que se revistam de caráter absoluto, mesmo porque razões de relevante interesse público ou exigências derivadas do princípio de convivência das liberdades legitimam, ainda que excepcionalmente, a adoção, por parte dos órgãos estatais, de medidas restritivas das prerrogativas individuais ou coletivas, desde que respeitados os termos estabelecidos pela própria Constituição (STF, MS n. 23.452/RJ, Plenário, Rel. Min. Celso de Mello, DJU 12/05/2000).

Na utilização da prova ilícita pro reo, o valor em ponderação é a dignidade da pessoa humana do réu (núcleo axiológico da Constituição Federal), injustamente acusado de um delito, que corre o risco de pagar com sua liberdade, perdendo alguns anos de sua vida, pela equivocada apreciação dos fatos na atividade jurisdicional. Milita a favor da admissão da prova ilícita pro reo a ponderação da garantia constitucional da ampla defesa e a configuração da situação de estado de necessidade do acusado. Dessa forma, conclui Scarance Fernandes (2005, p. 94) que “é ampla a aceitação de que ele [o princípio da proporcionalidade] seja aplicado aos casos em que a prova da inocência do réu depende de prova produzida de maneira ilícita”.    

Paulo Rangel (2009, p. 426) endossa este entendimento majoritário:

Assim, surge em doutrina a teoria da exclusão da ilicitude, onde a conduta do réu é amparada pelo direito e, portanto, não pode ser chamada de ilícita. O réu, interceptando uma ligação telefônica, sem ordem judicial, com o escopo de demonstrar sua inocência, estaria agindo de acordo com o direito, em verdadeiro estado de necessidade justificante. [...] Dessa forma, é admissível a prova colhida com (aparente) infringência às normas legais, desde que em favor do réu para provar sua inocência, pois absurda seria a condenação de um acusado que, tendo provas de sua inocência, não poderia usá-las só porque (aparentemente) colhidas ao arrepio da lei.

O STF já se pronunciou, em diversos julgados, a favor da licitude da gravação de conversa telefônica, realizada por um dos interlocutores, sem o conhecimento do outro, desde que em determinadas circunstâncias. Em um caso da relatoria do Ministro Moreira Alves, o Tribunal Excelso considerou lícita a gravação e divulgação de conversa telefônica sem o conhecimento de terceiro que pratica o crime, desde que praticada em legítima defesa.

O Superior Tribunal de Justiça também andou nessa direção:

As liberdades públicas não podem ser utilizadas como um verdadeiro escudo protetivo da prática de atividades ilícitas, tampouco como argumento para afastamento ou diminuição da responsabilidade civil ou penal por atos criminosos, sob pena de total consagração ao desrespeito a um verdadeiro Estado de Direito. Dessa forma, aqueles que, ao praticarem atos ilícitos, inobservarem as liberdades públicas de terceiras pessoas e da própria sociedade, desrespeitando a própria dignidade da pessoa humana, não poderão invocar, posteriormente, a ilicitude de determinadas provas para afastar suas responsabilidades civil e criminal perante o Estado [...] (Alexandre de Moraes, in Constituição do Brasil Interpretada e Legislação Constitucional, 2ª Edição, 2003, São Paulo, Editora Atlas, páginas 382/383).

Não há falar em ilicitude da prova que se consubstancia na gravação de conversação telefônica por um dos interlocutores, vítima, sem o conhecimento do outro, agente do crime. Recurso improvido (STJ, HC n. 12.266/SP, 6ª Turma, Rel. Min. Hamilton Carvalhido, DJU 20/10/2003).

Outrossim, a prova obtida com a violação de direitos fundamentais deve ser aceita pelo órgão julgador através da aplicação do princípio da proporcionalidade, desde que se destine a provar a inocência do acusado (adequação), seja a única forma de que este dispõe (necessidade) e se respeite a proporcionalidade do bem lesado com o bem a ser protegido (proporcionalidade estrita). Qualquer que seja a excludente de antijuridicidade (legítima defesa, estado de necessidade, etc.), fato é que, na admissão de provas ilícitas pro reo, há a ponderação de interesses própria da proporcionalidade. Ademais, o princípio da proporcionalidade legitima a conduta violadora de direito substantivo, de maneira que a prova obtida não é ilícita, apesar de formalmente violar uma norma jurídica (ÁVILA, 2007, p. 205).

Enfim, a prova da inocência do réu deve sempre ser aproveitada, em quaisquer circunstâncias. Ora, em um Estado de Direito não há como se conceber a ideia da condenação de alguém que o próprio Estado acredita ser inocente. Seria um paradoxo inexplicável.  

Com a finalidade de facilitar a decisões dos magistrados diante da colisão de princípio e normas, busca-se um instrumento que poderá ser útil, que são divididos em três subprincípios: 1) adequação ou pertinência; 2) necessidade ou exigibilidade; 3) proporcionalidade stricto sensu, sendo a decisão conduzida com a mais alta relevância, preservando direitos ou bens jurídicos que estão em jogo, conforme suas regras, intimidade e valor, facilitando para que o Juiz possa dar uma decisão justa ao caso concreto quando ocorrer conflito entre os direitos que devem conviver harmonicamente em nosso ordenamento jurídico, caso que será solucionado pela aplicação do princípio da proporcionalidade.

Em decorrência, caberia, ao juiz, tão somente, decidir pela existência, ou não, do crime, abstraindo-se, por completo, da forma como lhe chegaram, podendo ser lícita ou ilícita as provas do fato, sustentando-se que, no caso, o ato anterior de captação da prova, embora ilícito, não teria o poder de nulificar ou contaminar os atos posteriores, principalmente de produção da prova que seria lícito em si mesmo. Nestas condições, deveria prevalecer, em qualquer hipótese, o interesse da Justiça, objetivando descobrir a verdade, reputando-se eficaz a prova ilicitamente obtida, sem prejuízo da aplicação de sanções civis, penais ou disciplinares aos responsáveis.

A prova ilícita será admitida, devendo ser aceita quando o bem jurídico alcançado for maior que o direito violado. Apesar de a legislação ao se tratar sobre o assunto de vedar o uso da mesma no processo penal, parte da doutrina e da jurisprudência vem entendendo por aplicar a proporcionalidade atrelada a essa questão, pois a prova ilícita não será usada para condenar o acusado, e sim para dar um condenação justa, sendo assim, o Magistrado possa trazer uma decisão ao caso concreto e uma pena proporcional ao acusado, uma vez que nenhum direito ou garantia constitucional tem caráter absoluto.

 

Notas e Referências 

ÁVILA, Thiago André Pierobom de, Provas ilícitas e proporcionalidade, Rio de Janeiro: Lúmen Júris Editora, 2007.

AVOLIO, Luiz Francisco Torquato, Provas Ilícitas: interceptações telefônicas, ambientais e gravações clandestinas. 3ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003.

Campiotto, R. C. (2004). A excepcionalidade da prova Ilícita no Processo Penal Brasileiro. 231f. São Paulo.

FERNANDES, Antonio Scarance, Processo penal constitucional, 4 ed., São Paulo: RT, 2005.

GOMES FILHO, Antônio Magalhães, O direito à prova no processo penal, São Paulo: RT, 1997.

GRINOVER, Ada Pellegrini, SCARANCE FERNANDES, Antônio, MAGALHÃES GOMES FILHO, Antônio, As nulidades no processo penal, 7ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001.

NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e Execução Penal. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016.

OLIVEIRA, Eugênio Pacelli. Curso de Processo Penal. 18. ed. São Paulo: Lumen Juris,2013.

 

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