Por João Pedro Barreto e Lucas Holmes - 25/05/2015
O uso de algemas na instrução criminal tanto no âmbito administrativo como no judicial nos evidencia a capacidade da atuação do Jus Puniendi conexo às suas instituições punitivas para restringir a liberdade dos seus cidadãos. Podemos dizer que a algema é o início da rotulação e fabricação de estigmas no processo penal, que irão marcar e delinear um perfil ‘’criminoso’’ de acordo com o grau de periculosidade que lhe será dado conforme os ditames classificatórios pré-julgados e pré-estabelecidos em consonância com o seletivismo social.
A abusividade do uso de algemas é um fato bastante corriqueiro e presente no dia-a-dia, seja nos casos em flagrante delito ou dentro das próprias fortalezas do Poder Judiciário, que de acordo com a Constituição de 1988 seria o garantidor e precursor dos direitos e garantias fundamentais, não tolerando se quer uma obstrução da preservação da dignidade humana.
Dentro dessa premissa entende a melhor doutrina no sentido:
´´ Uma das formas de se preservar o princípio da dignidade da pessoa humana é através da garantia da proibição de excessos, que impõe limites à perspectiva utilitarista do processo penal. Dito de outra forma: toda atividade estatal está adstrita ao princípio da legalidade e aos limites da racionalidade (afinal, o Estado, na correta visão hegeliana, é a reserva da razão. Dentre as manifestações mais corriqueiras de excesso no Processo Penal está o uso abusivo de algemas. A algema, o uso de grilhões, além de limitar a livre movimentação do indivíduo, possui forte carga estigmatizaste e deve ser reservada, como toda medida de exceção e de limitação à liberdade, para situações em que se faça concretamente necessária. Por vezes, e como exceção, o uso de algemas faz-se necessário para evitar lesões a outros bens jurídicos protegidos pelo ordenamento. Porém, medidas de exceção não podem ser tidas como normais na condução de pessoas´´. [1]
Não é exagero trazer para o debate crítico, que o utensílio das algemas no cerimonial do Judiciário nos evidencia a espetacularização do processo, ou seja, ratifica o resquício do sistema inquisitivo no saber físico-penal, pelo simples fato dessa insaciável busca pela verdade real, que muitos membros do poder Judiciário e do Parquet tendem a buscar, cabendo ressaltar que durante a Inquisição o acusado era tratado como objeto, tendo a obrigação de dizer a verdade, podendo ser torturado para tanto, utilizava-se da premissa de que ´´ os fins justificam os meios´´, era lícita e válida a tortura para obter a confissão dos réus, a chamada rainha das provas.
Nesse sentido entende Rubens Casara:
´´A partir da constatação das atuais condições de produção, Guy Debord percebeu que toda a vida das sociedades “se apresenta como uma imensa acumulação de espetáculos.
O problema é que o processo penal, instrumento de racionalização do poder penal, para atender à finalidade de entreter, acaba por sofrer uma mutação. No processo penal voltado para o espetáculo não há espaço para garantir direitos fundamentais. O espetáculo, como percebeu Debord, “não deseja chegar a nada que não seja ele mesmo” (DEBORD, p. 17). A dimensão de garantia, inerente ao processo penal no Estado Democrático de Direito (marcado por limites ao exercício do poder), desaparece para ceder lugar à dimensão de entretenimento´´. [2]
Ocorre que nos dias atuais o réu não é obrigado a dizer a verdade, por ser sujeito processual, não podendo ser torturado, pois caso se permitisse isso teríamos uma prova ilícita, o que violaria o disposto no Art.157 do Código de Processo Penal:
´´São inadmissíveis, devendo ser desentranhadas, as provas ilícitas, assim entendidas as obtidas em violação a normas constitucionais ou legais´´.
Dessa forma, sob o víeis de um Estado Democrático de Direito o que acaba por acontecer é que Magistrados buscando prevenir os interesses públicos envolvidos, acabam por proporcionar um Direito Penal Vingativo, nos dizeres de Cezar Roberto Bittencourt, colocando o processado como o inimigo da sociedade, ao passo que é uma luta injusta, pois este precisa ser reeducado para não voltar a cometer delitos.
Ora, mas seguindo esse ideal, nos remetemos à antiga lição ensinada por Cesare Beccaria, segunda a qual, ´´para todos os delitos devem ser cominadas sanções, mas que sejam cominadas penas humanitárias, penas proporcionais´´[3]. Nesse mesmo sentido Foucault aduz que a prisão é a falência do sistema prisional, ao passo que a prisão não atinge a sua finalidade máxima que é a recuperação do indivíduo condenado, seguindo para tanto o caminho contrário, de forma que gera a reincidência do condenado. No mesmo sentido, pensa Cezar Roberto Bittencourt[4].
Podemos aduzir que o Juiz ao ordenar o emprego de algemas em sede de AIJ, torna o utensílio da algema uma tortura psicológica e física, ao passo que priva a sua liberdade de locomoção e viola a presunção de inocência consagrada na nossa Constituição Federal (presume-se que todos somos inocentes até que se prove em contrário, ou melhor, após o trânsito em julgado da Sentença Penal Condenatória).
Na Lei de Execução Penal (Lei nº 7210/84), no Art. 199, está previsto que o emprego de algemas será disciplinado por Decreto Federal, fato que nunca ocorreu até hoje! O desbravamento do tema veio a ganhar forte repercussão no ano de 2008, no auge da Operação Satiagraha, que foi uma operação da Polícia Federal que buscou desmascarar quadrilhas que realizavam desvio de verbas públicas e lavagem de dinheiro no exterior. O resultado da operação ocasionou a prisão de empresários e banqueiros, mas não foi apenas isso, pela primeira vez, foi constatado que o crime do ´´colarinho branco´´ fez com que pessoas fossem algemadas. Fato este que proporcionou intriga e fomentação do debate sobre o uso abusivo das algemas perante o Supremo Tribunal Federal.
Diante disto, o cenário estava propício para que fosse criada e editada a Súmula Vinculante nº11, havendo os seguintes precedentes sobre o tema: HC 89429, Relatora Ministra Cármen Lúcia, Primeira Turma, julgamento em 22.8.2006, DJ de 2.2.2007), Rcl 16178 AgR, Relator Ministro Gilmar Mendes, Segunda Turma, julgamento em 28.10.2014, DJe de 12.11.2014), Rcl 8712, Relatora Ministra Cármen Lúcia, Tribunal Pleno, julgamento em 20.10.2011, DJe de 17.11.2011), Rcl 9468 AgR, Relator Ministro Ricardo Lewandowski, Tribunal Pleno, julgamento em 24.3.2011, DJe de 11.4.2011) e Rcl 8409, Relator Ministro Gilmar Mendes, Decisão Monocrática, julgamento em 29.11.2010, DJede 3.12.2010) . Pode-se observar que há precedentes na Jurisprudência desde o RHC 56465 de 1978, cabendo ressaltar que a súmula foi publicada no dia 22/08/2008 e a Operação Satiagraha ocorreu no dia 08/07/2008. Tal Súmula apresenta a seguinte redação:
‘’Só é lícito o uso de algemas em casos de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado.’’
A discussão foi tão grande que juízes federais (insatisfeitos com a súmula, não por causa do constrangimento ilegal, mas sim pela ampliação na anulação de futuros processos e operações) apelidaram a súmula de ´´Cacciola-Dantas´´, em alusão ao nome dos acusados que foram algemados.
Seguindo esse raciocínio O direito na sua essência pueril, conforme Paulo Rangel evidencia ‘’é eletista, é excludente, é seletivo e por isso, não tem ética de alteridade’’[5]. Com esta afirmativa, podemos compreender como o utensílio das algemas veio a ser regulamentada no ordenamento jurídico brasileiro.
Assim sendo, nos dizeres de Agamben: ´´vivemos em um verdadeiro Estado de Exceção, pois o mesmo só deveria ser decretado em caso de urgência e emergência, sendo conferido somente em situações excepcionais, quais sejam: promover o interesse público e segurança pública´´[6]. Nesse mesmo sentido devemos pensar o uso de algemas, este deixou de ser aplicado em casos excepcionais, para tornar-se a regra.
Notas e Referências
[1] CASARA, Rubens; MELCHIOR, Antonio Pedro in Teoria do Processo Penal Brasileiro- v.1, Editora: Lumen Juris, 2013, p.466.
[2] CASARA, Rubens. In artigo sobre Processo Penal do espetáculo (http://justificando.com/2015/02/14/ processo-penal-espetaculo/).
[3] BECCARIA, Cesare, in Dos Delitos e das penas.
[4] BITTENCOURT, Cezar Roberto, in Falência da pena de prisão, cit, p.51.
[5] RANGEL, Paulo. Tribunal do Júri. Editora: Atlas, 2015.
[6] AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção.
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