Por Tiago Gagliano Pinto Alberto - 20/04/2016
Olá a todos!!!
Osíris, de acordo com os ensinamentos mitológicos e politeístas egípcios, era originariamente um rei que, casado com Ísis, foi enganado por Seth, seu irmão, que o prendeu em uma caixa e o jogou no rio Nilo. Sua esposa o encontrou, já morto, e o retirou do mar mediterrâneo, local para onde o rio o havia levado, mas tão logo Seth descobriu, mandou que encontrassem o corpo e o esquartejassem em quatorze pedaços, escondendo-os em diversas partes do Egito. Ísis, não obstante, novamente o encontrou, mumificando-o e enterrando-o. No mundo dos mortos, Osíris tornou-se, então, o responsável pelo Tribunal das almas. Em uma sala denominada “Sala das Duas Verdades”, as almas tinham que convencê-lo e aos demais quarenta e dois juízes que compunham a Corte, que mereciam ir para o paraíso, local de bonança e fartura.
Para tanto, a alma tinha que afastar a presunção de culpa que contra si recaía. Note-se que a culpa já recaía à alma pelo só fato de que advinha de um mundo inferior, terreno. E a presunção podia ser afastada mediante a justificação da prática de boas condutas em vida, ou seja, de acordo com o Livro dos mortos egípcio, se havia dado de comer ao faminto, de beber ao sedento, abrigo a quem não o tivesse e roupas a quem não as usasse. Uma vez que a justificação fosse levada a cabo, o coração da alma era pesado e só iria ao paraíso aquele que ostentasse peso tão leve quanto uma pluma, porque esses corações, segundo a mitologia, faziam a balança subir e não podiam ser comidos pelos animais que se encontravam na “sala das Duas Verdades” esperando a pesagem.
Esta é a origem mais remota da palavra justificação de que temos notícia. O mito de Osíris e a sua atuação no Tribunal das Almas parece nos ensinar algo faltante nos dias atuais, inclusive e principalmente no campo da justificação de argumentos políticos: a ética argumentativa. Não estou tratando, agora, de justificação no sentido preconizado pela teoria da decisão judicial, ou seja, aplicável no campo estritamente relacionado às decisões, mas sim da justificação política, de argumentos em princípio relacionados aos votos levados a cabo no campo estritamente político.
No último dia 17 de abril, assistimos a um verdadeiro show de argumentos rebarbativos, falaciosos e retóricos na votação do impeachment da Presidente Dilma na Câmara dos Deputados. Para os professores de argumentação foi um prato cheio de exemplos retóricos e argumentação falaciosa. Estivessem aquelas almas sendo julgadas no Tribunal de Osíris, decerto todos os corações teriam sido comidos por animais, porque pouco ou quase nada se aproveitou em termos de justificação que pudesse salvá-las em tão decisivo momento.
Na verdade, o que se viu foi, para além de falsidades ou materialização de estratagemas, também exemplos típicos de aplicação do Trilema de Münchhausen, ou seja, recursos argumentativos à regressão ao infinito, argumentos de autoridade (Deus, família etc), ou petições de princípio (não ocorreu crime de responsabilidade, porque não ocorreram pedaladas fiscais e estas não ocorreram, porque não ocorreu crime de responsabilidade).
Vamos imaginar que os congressistas estivessem no Tribunal de Osíris. Mas, claro, um Tribunal meio tosco, porque não presidido por um Deus justo e capaz de conduzir a população à fartura e bonança sem qualquer tipo de interesse próprio. Então, teríamos corações comidos por justificativas relacionadas à Deus, à família, aos filhos, às esposas etc. Isso para não falar dos comportamentos desviantes mesmo a este tipo de coisas, ou seja, uma espécie de agravamento do ruim: cuspe, ode a torturador reconhecido como tal, acusações mafiosas, entre outras desgraças argumentativas competindo pelo prêmio do dia.
Curioso observar, de toda esta cômica tarde e noite, que se sob o ponto de vista do observador externo os argumentos utilizados pareceram risíveis, contraditórios, quase circenses ou lamentáveis, para os participantes do sistema foram absolutamente legítimos, o que se comprova pelo fato de que utilizados em igual sonância pela quase totalidade dos votantes, com algumas exceções aqui e ali. Esta constatação denota, para além do desconhecimento da real função que devem exercer os parlamentares, que a legitimidade argumentativo-discursiva que se pode e deve esperar de quem representa o povo se encontra em igual ou pior nível ao bate papo de boteco, com todo respeito ao boteco.
E isso sob o aspecto visível, porque nos bastidores, ao contrário do que se revelou a nível superficial, a argumentação com toda certeza foi bem certeira e definida: negociações decerto foram realizadas, ademais de compromissos ambiguamente firmados com um lado e outro no panorama político-partidário e, claro, resgates de débitos passados e alinhamentos para o futuro, seja o atual, seja o posterior a 2018.
Enfim, temos elementos suficientes para, diante do ocorrido, reformular o Tribunal das Almas. Chamarei esse Tribunal de “Corte circense-parlamentária jabuticabesca”. Nesta, as justificativas, acaso existentes, são toscas, falaciosas, voluntariosas, em altos brados, porém sem qualquer conteúdo, rebarbativas, ou retóricas. Estará salvo aquele cujo coração pesar mais, não pelos atos, mas pela capacidade de maior negociação, ambiguidade comportamental, ou descaramento argumentativo. Estes corações, acaso eventualmente comidos por animais que não se importem com o odor fétido que deles emana, alcançarão o paraíso destas almas, a desordem e a prostituição ideológica. O Presidente da Corte, alinhado aos comportamentos levados a cabo pelos demais integrantes da sua orbe e pouco, ou quase nada, importando-se com adjetivações contra si desferidas, prossegue em intento que redefine a própria visão utilitarista em sua feição mais egoística. Assim, teremos o Tribunal bem estruturado, definido e em operação.
Não estou defendendo a permanência da Presidente no poder, ou o seu impeachment. O que friso é a imprestabilidade das justificativas utilizadas para a votação ocorrida, ademais de questionar o seu entorno, capaz de ensejar surpresa até mesmo aos envolvidos[1].
E esta é a representação popular que temos. Não gostou?! Azar, você os elegeu. Pense melhor da próxima vez.
Vamos agora esperar que as justificativas lançada no Senado sejam ao menos mais condizentes com a importância do tema discutido. Teremos, naquela Casa, corações com pesos de plumas?! Não sei, mas tenho desconfianças pouco esperançosas.
Um grande abraço a todos. Compartilhe a paz!
Notas e Referências:
[1] http://www1.folha.uol.com.br/poder/2016/04/1762352-tiririca-esteve-no-hotel-de-lula-antes-de-votar-a-favor-do-impeachment.shtml. Acesso em: 20 abr. de 2016.
Tiago Gagliano é Doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Professor da Escola da Magistratura do Estado do Paraná (EMAP). Professor da Escola da Magistratura Federal em Curitiba (ESMAFE). Coordenador da Pós-graduação em teoria da decisão judicial na Escola da Magistratura do Estado de Tocantins (ESMAT). Membro fundador do Instituto Latino-Americano de Argumentação Jurídica (ILAJJ). Juiz de Direito Titular da 2ª Vara de Fazenda Pública da Comarca de Curitiba.
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