O trabalho e a saúde mental entre os Tempos Modernos de Chaplin e os Tempos Hipermodernos de Lipovetsky ou da loucura pelo trabalho à loucura do trabalho: aproximações com Dejours

28/09/2015

Por Guilherme Wunsch - 28/09/2015

Indubitavelmente, o trabalho possui um papel de elevada importância na vida das pessoas, mormente quando se considera ser ele um dos elementos formadores da identidade e um dos significantes de inserção social. No entanto, cada vez mais são recorrentes os casos em que os trabalhadores adoecem pela quantidade de trabalho ou até mesmo pelas deficiências de um meio ambiente de trabalho saudável, que ensejam o desenvolvimento de um cenário de estresse ocupacional.

Pensar a adequação do ambiente laboral é indagar a forma como devem conviver, em harmonia, a necessidade profissional, que envolve as expectativas que circundam a realização profissional, e a satisfação pessoal, a auto-estima, o reconhecimento enquanto sujeito que se insere em uma sociedade que, cada vez mais, valoriza o consumo como um de seus baluartes, de onde a busca pela satisfação pessoal confunde-se com a ideia de que se deve consumir primeiro pelo simples prazer individualista e narcisista, muito mais do que para competir com o outro, dentro de um modelo que Lipovetsky chamará de hiperconsumo.

Quando se intenta relacionar tais questões não foge à memória a clássica obra de Chaplin, Tempos Modernos. Nesse filme, interpreta o seu famoso personagem Carlitos, um trabalhador industrial que, todos os dias, realizava o mesmo trabalho, junto com outros operários, em um contexto de exploração pelos proprietários, que, no afã lucrativo, exigiam uma produção em série em um curto espaço de tempo. A cena mais representativa do filme é a de Carlitos apertando parafusos em um ritmo frenético, até ser tragado pela máquina de produção. Ao ter que realizar sempre o mesmo trabalho, sem pausas dignas para descanso e alimentação, o personagem tem um colapso nervoso, repetindo, descontroladamente, os movimentos exercidos na fábrica. Inquietante é traduzir isso como o homem engolido pela máquina. Simbólico. Contemporâneo.

O modelo fordista desenhado no filme já cedeu lugar à tecnologia da informatização nos ambientes de trabalho. E Chaplin enfatizará um aspecto que talvez pouco se dê conta na película, que é justamente essa alienação que o trabalho provoca no homem, com reflexos em sua vida na sociedade, hoje dominada pela técnica. Aqui, consegue-se uma primeira aproximação com o pensamento de Cristophe Dejours, para quem a psicopatologia tradicional baseia-se na fisiopatologia das doenças que afetam o corpo, que se enquadra como a primeira vitima do sistema de produção, assim como o aparelho psíquico.[1]

O conhecido texto de Dejours indaga a forma como os trabalhadores resistem aos ataques à sua estrutura psíquica, que são provocados pelo trabalho. Aparece, portanto, um dos fios condutores da obra, que se constitui na ilação entre o trabalho e saúde mental, especialmente quando se coloca na figura do trabalho um dos elementos de transformação da sociedade. A própria história do Direito do Trabalho demonstra que as relações de trabalho se nortearam no paradigma de forças entre trabalhadores, chefes e o Estado, de onde resulta uma condição de sujeito assujeitado do trabalhador.

Como refere Sebastião Geraldo de Oliveira, o trabalho está se tornando cada vez mais denso, tenso e intenso. A mudança, a aceleração, apesar de ter promovido uma revolução na produtividade, está repercutindo negativamente na saúde física e mental dos trabalhadores. Como consequência, também gera redução da produtividade, demandas judiciais e desembolsos com indenizações.[2] Trata-se de um problema que não pode ser deixado de lado. Entre a necessidade do lazer, repouso e convívio familiar e social e a produtividade, acaba que o resultado profissional fala mais alto. Para além do corpo do trabalhador, é preciso observá-lo em seus aspectos físicos, mentais e sociais.

A ausência de proteção à saúde mental do trabalhador no ambiente de trabalho é uma conseqüência desse processo autômato e, por vezes, não humano, que caracteriza a realidade das relações de trabalho. Trata-se de um paradoxo, em buscar a realização pessoal pelo trabalho, quando ele não traz a satisfação desejada, quando invade a vida do sujeito, a sua personalidade, o seu desenvolvimento.

Abreu, Stoll, e outros autores, definem que, em suas sociedades, os indivíduos tentam atingir metas definidas, níveis de prestígio e padrões de comportamento que o grupo cultural impõe e espera de seus integrantes, de maneira que uma frustração na realização desses aspectos pode desencadear o estresse.[3] Os autores consideram que a saúde pode ser lesada não apenas pela presença de fatores agressivos, mas também pela ausência de fatores ambientais, como a falta de suficiente atividade muscular, falta de comunicação com outras pessoas, falta de diversificação em tarefas de trabalho que causam monotonia, falta de responsabilidade individual ou de desafios intelectuais. O prolongamento de situações de estresse pode repercutir num quadro patológico, originando distúrbios transitórios ou mesmo doenças graves, como o estresse ocupacional.

Eis, assim, um retorno ao título do texto, a sociedade hipermoderna é a sociedade da hipervalorização das sensações, do hipernarcisismo, em que os indivíduos hipermodernos são, ao mesmo tempo, mais informados e mais desestruturados, mais adultos e mais instáveis, mais abertos e mais influenciáveis, mais críticos e mais superficiais, mais céticos e menos profundos, como reflete Lipovetsky.[4] O consumo, preenche o vazio do presente e do futuro, serve como uma cura, uma saída da rotina, do cotidiano repetitivo que assola a sociedade, estressada, também doente pelo trabalho.

Há um mister de se ressignificar o trabalho e o lugar do sujeito trabalhador, nesse ambiente que proporcione a sua realização pessoal. Como nos versos de Renato Russo: não é muito o que lhe peço, eu quero um trabalho honesto. Trata-se de buscar quem guarnece as chaves dos portões das fábricas.


Notas e Referências:

[1] DEJOURS, Christophe. A Loucura do Trabalho: estudo de psicopatologia do trabalho. São Paulo: Cortez Oboré, 1992.

[2] OLIVEIRA, Sebastião Geraldo de. Proteção jurídica à saúde do trabalhador. 6.ed. São Paulo: LTr, 2011. p.212.

[3] ABREU, Klayne Leite de et al. Estresse ocupacional e Síndrome de Burnout no exercício profissional da psicologia. Psicol. cienc. prof. [online]. 2002, vol.22, n.2, pp. 22-29. ISSN 1414-9893.  Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S1414-98932002000200004. Acesso em: 19 de setembro de 2015.

[4] LIPOVETSKY, Gilles. SEBASTIEN, Charles. Os tempos hipermodernos. Tradução: Mario Vilela. Barcarolla, 2004.

ABREU, Klayne Leite de et al. Estresse ocupacional e Síndrome de Burnout no exercício profissional da psicologia. Psicol. cienc. prof. [online]. 2002, vol.22, n.2, pp. 22-29. ISSN 1414-9893.  Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S1414-98932002000200004. Acesso em: 19 de setembro de 2015.

DEJOURS, Christophe. A Loucura do Trabalho: estudo de psicopatologia do trabalho. São Paulo: Cortez Oboré, 1992.

LIPOVETSKY, Gilles. SEBASTIEN, Charles. Os tempos hipermodernos. Tradução: Mario Vilela. Barcarolla, 2004.

OLIVEIRA, Sebastião Geraldo de. Proteção jurídica à saúde do trabalhador. 6.ed. São Paulo: LTr, 2011. p.212.


Guilherme WunschGuilherme Wunsch é formado pelo Centro Universitário Metodista IPA, de Porto Alegre, Mestre em Direito pela Unisinos e Doutorando em Direito pela Unisinos. Durante 5 anos (2010-2015) fui assessor jurídico da Procuradoria-Geral do Município de Canoas. Atualmente, sou advogado do Programa de Práticas Sociojurídicas – PRASJUR, da Unisinos, em São Leopoldo/RS; professor da UNISINOS; professor da UNIRITTER e professor convidado dos cursos de especialização da FADERGS, FACOS, FACENSA E IDC.


Imagem Ilustrativa do Post: Charlie Chaplin  // Foto de: Insomnia Cured Here  // Sem alterações Disponível em:  https://www.flickr.com/photos/tom-margie/1536271214 Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode


O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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