Por Charles M. Machado – 15/07/2016
No dia em que se completava 227 anos da Queda da Bastilha, um ataque com um caminhão na cidade de Nice, no sul da França, deixou até o momento, cerca de 84 mortos, e mais de uma centena de feridos, quando a multidão comemorava o feriado da Tomada da Bastilha, maior festa nacional.
Com toda crueldade possível, o motorista do caminhão percorreu 2 quilômetros atropelando pessoas, entre elas centenas de crianças que inocentemente comemoravam a importante data, dezenas dessas crianças ainda estão desaparecidas.
A queda da Bastilha foi o evento decisivo para o início da Revolução Francesa de 1789. A Bastilha era uma velha fortaleza construída em 1370, utilizada pelo regime monárquico como prisão de criminosos comuns. Sob a regência do Cardeal Richelieu, porém, o prédio foi transformado em prisão de intelectuais e nobres, especialmente os opositores à ordem estabelecida, seja em relação à monarquia, sua política ou mesmo à religião católica, oficial no período monárquico.
Em 14 de julho de 1789, a fortaleza foi invadida pelo povo de Paris, sendo portanto a data de referência para as comemorações da Revolução Francesa. Mais do que uma ação armada o gesto tinha relevância política, pois tratava-se da ocupação simbólica de um dos expoentes máximos do absolutismo. E na vida o gesto vale muito mais do que a intenção.
É importante esse resgate histórico, pois na época, o sistema legislativo francês dividia-se em três grupos, os chamados três Estados: o primeiro compreendia os representantes da nobreza; já o segundo representava o clero católico; finalmente, o terceiro, representava a população em geral. Os dois primeiros grupos votavam quase sempre em conjunto deixando o terceiro Estado isolado e marginalizado, tornando qualquer proposta de mudança da situação pela via política bastante difícil.
Diante dessa situação de falta de representatividade política, somada à dilapidação dos cofres públicos promovida pela junção da nobreza com o clero, e dos problemas econômicos enfrentados pelo país na época (devido à participação francesa na guerra de independência dos Estados Unidos somada às colheitas deficitárias ocorridas naqueles últimos anos), a situação torna-se insustentável, o que lançou o povo contra o governo de modo dramático, tomando o controle do país à força.
Essa tomada de posição das classes mais humildes, tomando o poder das classes burguesas, culminou com a mais importante das conquistas, realizada em 25 de agosto do mesmo ano, que aprovou a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Tal documento de inspiração iluminista marcou o declínio dos traços do sistema feudal então vigentes no país, defendendo direitos considerados atualmente básicos e fundamentais, como direito à liberdade, igualdade perante a lei, inviolabilidade da propriedade privada e resistência a qualquer tipo de opressão. O encerramento de séculos de um regime absolutista, onde quem tinha a vontade suprema era o monarca, acabou por culminar no nascimento da moderna França, o que por si só, já justifica o amor que os Franceses tem por essa data.
As ideias trazidas pelo humanismo e mais tarde pelo iluminismo, viriam a mudar a sua perspectiva acerca de um governo eficiente. Com esses novos conceitos, o povo deixaria de ser obrigado a servir aos interesses do governante, surgindo, ao contrário, um governo que passaria a servir aos interesses dos cidadãos, garantindo os seus direitos e deveres.
Quando um ato terrorista ocorre nessa data comemorativa, acaba por dar simbologia a dois mundos. De um lado os que defendem os Estados democráticos e que respeitam os Direitos Humanos. De outro, oportunistas que usam da fé para promover seus interesses, sendo que muita gente ganha com isso, da industria armamentista as empresas particulares de segurança.
O texto da Declaração que no próximo mês comemora 227 anos, continua atual e é contrário a tudo que pregam os diversos braços políticos de ação terrorista, seja ETA, IRA ou o EI.
Por uma coincidência a leitura do texto torna-se obrigatória:
“Art.1.º Os homens nascem e são livres e iguais em direitos. As distinções sociais só podem fundamentar-se na utilidade comum.”
O primeiro artigo da declaração é a base de formação de todo Estado organizado, de toda reunião de homens, que deve sempre ser untada com os valores da democracia e da liberdade.
“Art. 2.º A finalidade de toda associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem. Esses direitos são a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão.”
Os movimentos políticos, independente de seus fundamentos, deve sempre ser guiados pelo respeito aos Direitos Humanos, não cabendo nenhum ato terrorista que justifique a sua defesa ou propagação, nenhuma ideia deve ser paga pelo preço de uma vida.
“Art. 3.º O princípio de toda a soberania reside, essencialmente, na nação. Nenhum corpo, nenhum indivíduo pode exercer autoridade que dela não emane expressamente.”
A Constituição de um Estado (nação) reside na obtenção da soberania, mas essa formação, só pode ocorrer através da democracia, e não da força das armas e da imposição do medo, não existe ditadura boazinha, pois o medo é o alimento do silêncio, que edifica o quintal das injustiças.
“Art. 4.º A liberdade consiste em poder fazer tudo que não prejudique o próximo: assim, o exercício dos direitos naturais de cada homem não tem por limites senão aqueles que asseguram aos outros membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos. Estes limites apenas podem ser determinados pela lei.”
O debate das ideias ocorre sempre, com respeito as diferenças e não com o prejuízo das liberdades do próximo. Assegurar a manifestação das diferenças é participar da construção de um Estado Plural e diversificado, como toda sociedade. A eleição de um Estado é sempre a construção da convivência comum de nossas diferenças, e a lei é a ferramenta dessa garantia.
“Art. 5.º A lei proíbe senão as ações nocivas à sociedade. Tudo que não é vedado pela lei não pode ser obstado e ninguém pode ser constrangido a fazer o que ela não ordene.”
Nos dias atuais, a tomada de poder com a instalação do Estado do medo, como ocorre em muitos países onde esses grupos tem se proliferado, é inadmissível. O Estado de Direito, que não seja democrático, nada mais é do que um embuste jurídico, que perpetua as injustiças e cala a vontade com o medo.
“Art. 6.º A lei é a expressão da vontade geral. Todos os cidadãos têm o direito de concorrer, pessoalmente ou através de mandatários, para a sua formação. Ela deve ser a mesma para todos, seja para proteger, seja para punir. Todos os cidadãos são iguais a seus olhos e igualmente admissíveis a todas as dignidades, lugares e empregos públicos, segundo a sua capacidade e sem outra distinção que não seja a das suas virtudes e dos seus talentos.”
Os movimentos que utilizam da força desprezam a vontade das ruas, e o fazem com a usurpação e a força das balas de fuzis. A vontade geral, através da democracia, onde cada pessoa é um voto, não pode ser substituída pela pregação onde a fé pretende construir sociedades feudais que nos remetem a tempos impossíveis de se viver. As diferenças entre as pessoas é o que constrói a sociedade. E a harmonização das diferenças é que torna rica a vida em sociedade.
“Art. 7.º Ninguém pode ser acusado, preso ou detido senão nos casos determinados pela lei e de acordo com as formas por esta prescritas. Os que solicitam, expedem, executam ou mandam executar ordens arbitrárias devem ser punidos; mas qualquer cidadão convocado ou detido em virtude da lei deve obedecer imediatamente, caso contrário torna-se culpado de resistência.”
A Lei é, e sempre será, o ponto de partida que regra as diferenças. Mas apenas a norma construída com a transparência e a temperança das vontades sociais. O estado de Direito existe também para punir os que sendo conhecedores das normas, entendem estar acima delas.
“Art. 8.º A lei apenas deve estabelecer penas estrita e evidentemente necessárias e ninguém pode ser punido senão por força de uma lei estabelecida e promulgada antes do delito e legalmente aplicada.”
A dosimetria da pena deve ser considerada de acordo com a ofensa social, sem isso constrói-se a ditadura do Direito. Sua aplicação deve estar nas mãos de quem sabe sopesar os valores que regem o coletivo social.
“Art. 9.º Todo acusado é considerado inocente até ser declarado culpado e, se julgar indispensável prendê-lo, todo o rigor desnecessário à guarda da sua pessoa deverá ser severamente reprimido pela lei.”
A inocência é a regra de partida, e o conjunto probatório a peça acusatória, sem ela o Direito acaba por construir uma nova ditadura. As evidências não bastam, pois sem a certeza a injustiça toma terreno e usamos a norma para construir tudo, menos justiça.
“Art. 10.º Ninguém pode ser molestado por suas opiniões , incluindo opiniões religiosas, desde que sua manifestação não perturbe a ordem pública estabelecida pela lei.
Art. 11.º A livre comunicação das ideias e das opiniões é um dos mais preciosos direitos do homem; todo cidadão pode, portanto, falar, escrever, imprimir livremente, respondendo, todavia, pelos abusos desta liberdade nos termos previstos na lei.”
Toda ditadura é e sempre será construída com o aterramento das diferenças. É preciso silêncio para ditadura florescer, por isso assegurar a voz das diferenças, mais do que construir uma sociedade rica pela pluralidade é a peça fundamental de um mundo mais justo e igual.
Diferenças fazem parte da construção do coletivo, e combater o pré-conceito, seja de raça, cor ou credo, é o ponto de partida para edificação de uma sociedade fraterna.
A resposta à violência não é mais violência. A resposta à violência é mais justiça. Apesar da declaração da ONU ter um alcance maior, por ter sido elaborada no âmbito de uma organização que agrega boa parte das nações do mundo, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão permanece ainda como documento válido para os dias atuais, por pensar o ser humano acima do poder particular em qualquer esfera.
Ação de ontem é mais uma, que apenas na França já matou cerca de 200 pessoas nos últimos 18 meses. Desde 2004, esse tipo de ação tem sido crescente. No ano passado, foram mais de 16 mil, com mais de 43 mil mortos no mundo. Cidadãos comuns foram o principal alvo nos últimos 45 anos, e a explosão de bombas a ação mais usada. Iraque, Paquistão e Índia registram o maior número de ataques e de vítimas. Mas como ficou claro nos últimos atentados nenhum país está livre dessas bárbaras ações.
O terror é apenas uma face, dessa irracionalidade no trato e defesa das causas, onde os extremos produzem resultados nefastos.
No nosso entendimento é evidente que essas reiteradas ações que correm o mundo, semeando o medo e a desconfiança, e colhendo a raiva e o preconceito, logo aumentam os casos de intolerância religiosa, discriminações e racismo, ofendendo dessa maneira o princípio da isonomia, que encontra-se resguardado na nossa Constituição Federal. Além de restringir a liberdade religiosa, onde deve-se considerar que o Brasil é um Estado Laico, o qual prega valores e ensinamentos que possuem como característica principal a liberdade religiosa das pessoas e que isso deve ser respeitado por todos, independentemente de crença, objetivando assim, o respeito às diferenças.
A mesma Constituição Federal ao inserir a atuação brasileira no contexto internacional preconiza:
“Art. 4º A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios:
I – independência nacional;
II – prevalência dos direitos humanos; (grifo nosso)
Aqui abrimos um parênteses para destacar que toda e qualquer relação brasileira com os demais Estados, pressupõe o respeito a proteção dos direitos humanos, o que muitas vezes coloca nossa diplomacia em choque com alguns países.
III – autodeterminação dos povos;
A autodeterminação, e a soberania vai ao encontro do respeito ao Estado de Direito interno dessas nações. O integrar-se ao universo jurídico pressupõe o respeito ao Estado de Direito de outras nações, onde nem sempre o diferente é errado.
IV – não-intervenção;
V – igualdade entre os Estados;
VI – defesa da paz;
VII – solução pacífica dos conflitos;
VIII – repúdio ao terrorismo e ao racismo;
Todo e qualquer ato de barbárie deve ser combatido, seja qual for o nome da causa, pois os fins não justificam os meios.
Todos os acontecimentos dão um claro exemplo de que a barbárie, não escolhe lado, ela não escolhe pele ou religião, ela sempre surge no silêncio das pessoas de bem, que ficam inerte diante do avanço ideológico do atraso, onde os crimes de ódio encontram um terreno fértil.
Quando a diferença alimenta a intolerância e a barbárie ganha terreno, elas ocorrem em um massacre na favela, ou num estupro coletivo.
O ódio encontra um campo fértil na ignorância e na soberba dos que não respeitam as diferenças, é ele que nos leva e desperta os mais primitivos desejos que chamamos de ira. Ela não encontra justificativa e jamais deverá ser resposta a nenhum ato.
Charles M. Machado é Professor nos Cursos de Extensão da ESPM, Escola Superior de Propaganda e Marketing, em Direito das Marcas e Direito do Intangível, é advogado formado pela UFSC, Universidade Federal de Santa Catarina, consultor jurídico no Brasil e no Exterior, nas áreas de Direito Tributário e Mercado de Capitais. Foi professor nos Cursos de Pós Graduação e Extensão no IBET, nas disciplinas de Tributação Internacional e Imposto de Renda. Pós Graduado em Direito Tributário Internacional pela Universidade de Salamanca na Espanha, Membro da Academia Brasileira de Direito Tributário e Membro da Associação Paulista de Estudos Tributários, onde também já foi palestrante. Autor de Diversas Obras de Direito. Email:charles@charlesmachado.adv.com.br
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