O Tempo e o Direito - Por Sérgio Ricardo Fernandes de Aquino

21/01/2016

Por Sérgio Ricardo Fernandes de Aquino - 21/01/2016

Tempo: eis uma aporia na qual atormenta e maravilha a humanidade. É a precisa demarcação dessa insistente tentativa de se compreender a nossa condição de sermos humanos e a nossa natureza junto com os demais seres vivos. No entanto, ao dialogar com essa entidade, se verifica, especialmente no século XXI, algumas novas situações desprezadas e desconhecidas pela Modernidade: o crescimento ilimitado – e desmedido – do progresso racional cria, na mesma medida, ameaças transfronteiriças permanente a todos.

A existência -  e insistência - de uma Razão Técnica se justificativa como forma de organização social, ou seja, o progresso técnico-científico é o pressuposto racional para que as relações e das forças produtivas sejam - sempre mais – eficientes, eficazes e efetivas na vida das pessoas. Esse foi o espaço e a oportunidade da Razão Técnica se tornar fonte de legitimidade de novos poderes, especialmente os institucionais. Aqui, essa expressão se rebaixa, pois não é mais fonte de crítica, de esclarecimento, mas de correção, de sinalizar os níveis de “má programação” da sociedade em relação à busca desses (novos) objetivos para um convívio mais adequado entre as pessoas[1].

No entanto, essa racionalidade jamais se concentrou nesses lugares conquistados. Ao contrário, quanto maior a sua necessidade, maior a procura por novos territórios, por novas faces, novos modos de operar o Poder[2]. Veja-se: nenhum Poder se submete a regras fixas, contidas espacialmente num único lugar, povo ou instituição. É um fenômeno, ao relembrar Bauman, líquido, incontível, cuja legitimação não se centra apenas na figura do Estado[3].

Por esse motivo, Guardini[4] traz uma afirmação a qual eu a proponho como indagação: Será que o Homem da Idade Moderna está preparado – em todas as instâncias do saber elaborado – a assumir as consequências do crescimento ilimitado do Poder? Ou será que, novamente, a aparência sedutora da imagem criou uma versão igualmente contrária à famosa frase do Tio Ben sempre dita ao Peter Parker: “Com um grande poder, vem uma grande IRRESPONSABILIDADE”. Novamente, Guardini[5] é incisivo: “[...] A partir de agora e para sempre o homem viverá lado a lado com um perigo cada vez mais forte e crescente e que ameaça toda a sua existência”.  Aos poucos, as “fissuras” histórica começam a aparecer nas proposições dessa Razão Técnica criada pela Idade Moderna.

Para conter os excessos praticados sob o nome do Poder, precisa-se do Direito. É aqui que o Tempo[6] não deve se eternizar, não é uma entidade abstrata, vazia, mas que se transforma, participa na elaboração de sua identidade, pois, nas palavras de Ost, é uma construção social[7]. O binômio Poder-Direito é expressão desse diálogo, desse movimento sereno das “brisas” que surgem naquelas “fissuras” causadas pela pretensão de um progresso técnico-científico o qual não tem consciência – ou não deseja reconhecer – (d)as ameaças que violentam a condição e natureza humana.

As “fissuras” da Idade Moderna trazem diferentes incertezas e ambivalências[8], geram inúmeros desconfortos para as relações sociais acostumadas – e acomodadas – à pretensa segurança criada pelas rotinas domésticas ou laborais. A falta de precisão – matemática, especialmente – a fim de ordenar a vida frustra o sentimento de onipotência e onisciência do humano em impor ao mundo o seu desejo, a sua vontade. Sob igual critério, a dominação – e sua repetição perene sob a figura da estabilidade, ressalte-se – deve se estender, também, para tudo que não esteja nos domínios do “Eu”.

A ausência de um critério definitivo, imutável, certo, absoluto no decorrer do Tempo traduz a necessidade de se compreender as várias metamorfoses humanas como expressão de se identificar aquilo que se torna indispensável para uma vida sadia global, não obstante seja necessário a revisão, o complemento ou, inclusive, a eliminação. Semelhante receio aparece nas instituições as quais devem promover a segurança de todos (e contra todos). O Direito, principalmente no seu aspecto normativo, é um exemplo do que ocorre quando a Razão Técnica se torna fundamento a-histórico da vida de todos os dias. Por exemplo, outra pergunta, sob esse fundamento, aparece: Que Direito é capaz de conter um Poder transfronteiriço? As “fissuras”, aos poucos, aparecem em progressão geométrica.

Nessa linha de pensamento, denomina-se – precariamente – como Pós-Modernidade esse período de transição entre a Modernidade e outro no qual se encontra em estágio embrionário. Muito se debate sobre a sua permanência, insistência ou ausência[9]. Entretanto, me parece que existe muita preocupação no sentido de deslegitimar esse espaço temporal ao se indicar que o seu antecessor – Modernidade – não teria cumprido os seus objetivos propostos, principalmente na América Latina.

Esse debate sobre a necessidade de se estabelecer um critério meta-histórico – para permanência, cumprimento ou renovação, seja da Modernidade ou o futuro (?) (in)desejável – é onfaloscópico[10]. Veja-se, por exemplo, como Bauman traçou os limites da Modernidade pela sua falibilidade histórica. O projeto desse tempo citado não é inacabado, mas inacabável[11]. Por esse motivo, verifica-se a sua erosão, a sua liquidez na medida em que novas necessidades humanas – e não-humanas – reivindicam o seu lugar e sua voz no mundo. Não se trata, portanto, de centrar o foco no Tempo como a solução para os problemas da Humanidade, mas de escutar e sentir aquilo que, silenciosamente, fervilha nas galerias subterrâneas do nosso cotidiano.

A pluralidade de transformações expressas nos novos modos de viver, a velocidade das informações, o esmaecimento da rigidez na estrutura social, política, jurídica, econômica, tecnológica demanda respostas apropriadas do Direito, os quais nem sempre aparecem porque esse não acompanha, na maioria das vezes, o mundo como ser próprio e não a sua (desejável) representação.

Esse hiato entre Direito, visto como técnica, e as manifestações banais, anódinas que ocorrem em diferentes lugares no cotidiano não permite a sua sincronia na preservação daquilo no qual torna audível – e visível – a manifestação estrondosa do silêncio encarnado. Veja-se: Direito e Poder se afastam da História para preservar algo que não se apresenta como critério de organização da vida de todos os dias; aliás, essa aproximação sequer representa uma sensação de humanidade compartilhada.

Por esse motivo, observam-se múltiplas e diferentes “fissuras” nessa procura de mundo perfeito, de uma terra prometida, mas nem sempre vivida ou nunca (re)conhecida. As vozes inaudíveis, silenciadas, muitas vezes, pela indiferença generalizada nos diferentes campos da idéia ou ação manifestam a sua indignação[12], a sua necessidade de estarem junto com todos os outros seres os quais habitam o território terrestre. Habitar, nessa linha de pensamento, nem sempre designa “visibilidade”, mas indica algo que fervilha, se movimenta, todos os dias.

Grita-se, insistentemente, para se criar “fissuras” nos modos de vida, cuja regra de socialidade não é a integração, a concórdia, mas a segregação, a discórdia. Nenhuma expressão de Direito admite a permanência do silêncio como modo de desumanizar e deslegitimar as diferenças culturais e naturais do mundo, mas, ao contrário, precisa reconhecê-las e legitimá-las, desde que oportunizem modos sadios de convivência. Eis um desafio próprio para o século XXI, não obstante ainda se observe a insistência histórica da dominação, a colonização, da eliminação do Outro.

Essas “fissuras” demonstram a tentativa de se reivindicar esse “estar no mundo” daqueles os quais nunca foram “vistos” e, aos poucos, possibilitam que novas “brisas”, mais leves, dinâmicas, tolerantes, se espalhem, ganhem vida. As “brisas” nem sempre podem ser vistas ou explicadas, mas são sentidas, ou seja, estão no mundo com tudo e todos. O silêncio não é mais insuportável por “não-ser”, porém quando se dificulta ou se impede a sua compreensão, a insistência metamórfica humana que inspira a necessária mudança desaparece como o orvalho matutino.

Outros matizes surgem para criarem novas utopias carregadas de esperança[13], de verdades as quais são produzidas pelos diálogos que se manifestam no presente sempre mais vivo[14], tais como a multiculturalidade, as novas tecnologias, os ambientes transnacionais, a necessidade de se constituir novas perspectivas axiológicas dessa unidade de vida a qual está em permanente trânsito nas diferenças plurais. Esse é o desafio do Direito no século XXI como proposta de contenção ao Poder que marginaliza o mundo: ouvir – e reconhecer – as diferentes vozes sentidas nas brisas, as quais insistem, historicamente pelas fissuras nas barreiras do tempo, em simplesmente “ser”, “existir”.

Direito e Pós-Modernidade não são expressões antitéticas como dois ursos que habitam a mesma caverna, incapazes de se comunicarem e conviverem. Ao contrário, o debate não se centra na elaboração de um critério meta-histórico[15] o qual seja capaz de determinar um “marco zero” para livrar a Humanidade de sua maldição: a ambivalência, a finitude, o erro, a incerteza, a insegurança, mas de reconhecer a existência de “fissuras”, as quais favorecem o surgimento de novas “brisas”, mais serenas, diante das tormentas humanas que insistem num crescimento desmedido do progresso técnico-científico incapaz de identificar seus próprios limites como critério de paz para uma civilização com esperanças sensatas.

Quando se oportuniza o espaço para que as vozes se manifestem como seres próprios e, aos poucos, essas deixam as galerias subterrâneas do cotidiano para trazerem boas novas contra as violências impositivas das ideologias, da indiferença pela sua sensação de trânsito, de um ir e vir cartográfico, observa-se a temporalização, a humanização do Direito em cada instante de um tempo não-linear, presenteísta e constitutivo de nossa identidade (unidade) na identificação (pluralidade).

As “fissuras” representam aberturas para que novas “brisas” possibilitem sentir e des-vendar aquilo que permaneceu na clausura do silêncio: a clareza de um Tempo que não é inacabado, mas, continuamente, se transforma nas galerias subterrâneas do cotidiano e à margem dos discursos institucionais. A Pós-Modernidade é um espírito, não um Tempo, na qual demonstra ao Direito as diferentes “brisas” que estão no mundo e oportunizam a sua oxigenação a fim de promover uma orientação responsável no uso do Poder, especialmente no uso do progresso técnico e científico.


Notas e Referências:

[1] É interessante, nesse momento, relembrar as palavras de Habermas quando destaca que as relações de produção “[...] já não funcionam em prol do esclarecimento político como fundamento da crítica das legitimações vigentes, mas elas próprias se convertem em base da legitimação”.  HABERMAS, Jürgen. Técnica e ciência como ideologia. Tradução de Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 2001, p. 48.

[2] “[...] o Poder é a encarnação dessa energia provocada no grupo pela idéia de uma ordem social desejável. É uma força nascida da consciência da consciência coletiva e destinada ao mesmo tempo a assegurar a perenidade do grupo, a conduzi-lo na busca do que ele considera seu bem e capaz, se necessário, de impor aos membros a atitude exigida por essa busca. [...] Portanto, não é verdade que a realidade substancial do Poder seja o mando, o imperium; ela reside na idéia que o inspira. Não há dúvida que essa idéia pode ser respeitável ou suspeita; pode ser geradora de crimes bem como de iniciativas felizes. Mas, como toda política é ação finalizada, não se concebe como um Poder, agente de uma política, poderia, em sua própria essência, não ser marcado pelo fim que a determina ou serve para legitimá-la”. BURDEAU, Georges. O Estado. Tradução de Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2005.p. 5. Grifos originais da obra estudada.

[3] “[...] A necessidade de pensar o poder em outros termos que não os estabelecidos no corpo da tradição da filosofia política e da teoria do Estado se pôs, precisamente, pela compreensão crescente das relações de poder sob formas e modos antes nunca imaginados”. BARRETO, Vicente de Paulo. As máscaras do poder. São Leopoldo, (RS): Editora da UNISINOS, 2012, p. 21/22.

[4] GUARDINI, Romano. O fim da idade moderna: em procura de uma orientação. Tradução de M. S. Lourenço. Lisboa: Edições 70, 2000, p. 74.

[5] GUARDINI, Romano. O fim da idade moderna: em procura de uma orientação. p. 74.

[6] “[...] quer o apreendamos sob sua face objetiva ou subjetiva, o tempo é, inicialmente, e antes de tudo, uma construção social – e, logo, um desafio de poder, uma exigência ética e um objeto jurídico”. OST, Fraçois. O tempo do direito. Tradução de Elcio Fernandes. Bauru, (SP): Editora da EDUSC, 2005, p. 12.

[7] Para o mencionado autor, deve-se apropriar da expressão “temporalizar” para se pensar o tempo como instituição social, ou seja, um “[...] tempo que não permanece mais exterior às coisas, como continente formal e vazio, mas que participa de sua própria natureza”. OST, Fraçois. O tempo do direito. p. 13.

[8] “A ambivalência, possibilidade de conferir a um objeto ou evento mais de uma categoria, é uma desordem específica da linguagem, uma falha da função nomeadora (segregadora) que a linguagem deve desempenhar. O principal sintoma de desordem é o agudo desconforto que sentimos quando somos incapazes de ler adequadamente a situação e optar entre ações alternativas”. BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e ambivalência. Tradução de Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Zahar, 1999, p. 9.

[9] Existem várias terminologias para descrever esse “tempo”: Hipermodernidade, Modernidade reflexiva, Modernidade líquida, Modernidade tardia, Transmodernidade, entre outras.

[10] Essa postura, segundo Maffesoli, significa a caracterização de “[...] nossa intelligentsia: ela contempla o próprio umbigo”. MAFFESOLI, Michel. A república dos bons sentimentos: documento. Tradução de Ana Goldberger. São Paulo: Iluminura/Itaú Cultural, 2009, p. 18. Grifos originais da obra citada

[11] Segundo Bauman: “[...] a busca perseverante e inflexível de regras, que ‘se fixarão’, e de fundamentações que ‘não se abalarão’, hauriu sua força da fé na praticabilidade e no triunfo último do projeto humano. Uma sociedade livre de contradições irremovíveis, uma sociedade que aponta o caminho, como a lógica faz, para corrigir soluções somente, pode eventualmente ser construída, dados suficiente tempo e boa vontade. [...] É a descrença nessa possibilidade que é pós-moderna, ‘pós’ não no sentido ‘cronológico’ [...], mas no sentido de implicar [...] que os longos e sérios esforços da modernidade foram enganosos, foram empreendidos sob falsas pretensões, e são destinados a terminar – mais cedo ou mais tarde – o seu curso; que, em outras palavras, é a própria modernidade que vai demonstrar além de qualquer dúvida, sua impossibilidade, a vaidade de suas esperanças e o desperdício de seus trabalhos”. BAUMAN, Zygmunt. Ética pós-moderna. Tradução de João Rezende Costa. São Paulo: Paulus, 1997, p. 14/15.

[12] “Eu desejo a todos, a cada um de vocês, que tenham seu motivo de indignação. Isto é precioso. Quando alguma coisa nos indigna, como fiquei indignado com o nazismo, nos transformamos em militantes; fortes e engajados, nos unimos à corrente da história, e a grande corrente da história prossegue graças a cada um de nós. Essa corrente vai em direção de mais justiça, de mais liberdade, mas não da liberdade descontrolada da raposa no galinheiro. Esses direitos, cujo programa a Declaração Universal redigiu em 1948, são universais. Se você encontrar alguém que não é beneficiado por eles, compadeça-se, ajude-o a conquistá-los”. HESSEL, Stéphane. Indignai-vos!. Tradução de Marli Peres.São Paulo: Leya, 2011, p. 16.

[13] MELO, Osvaldo Ferreira de. Fundamentos da política jurídica. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1994, p. 19.     

[14] LYOTARD, Jean-François. A fenomenologia. Tradução de Armindo Rodrigues. Lisboa: Edições 70, 2008, p. 48.

[15] Aqui é necessário rememorar as palavras de Paulo Ferreira da Cunha: “[...] Talvez, neste sentido, que corresponde a uma certa forma de pensamento débil, a pós-modernidade, atravessada por tantas teorias contraditórias, encontre um lugar na História do pensamento jurídico: não como mudança de idade, mas como catalisador para que tal venha a se produzir. [...] Fica a hipótese, submetida a quantos não entendam mais a pós-modernidade como um tempo [...], mas como um espírito”. CUNHA, Paulo Ferreira da. Desvendar o direito: iniciação ao saber jurídico. Lisboa: Quid Juris, 2014, p. 112/113.


. Sérgio Ricardo Fernandes de Aquino é Mestre e Doutor em Direito pela Universidade do Vale do Itajaí, Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação em Direito (PPGD) – Mestrado – do Complexo de Ensino Superior Meridional – IMED.

E-mail: sergiorfaquino@gmail.com.


Imagem Ilustrativa do Post: Nomade // Foto de: Phil Roeder // Sem alterações.

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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