O tempo e o crime - Por Daniela Villani Bonaccorsi

24/11/2017

Coluna Não nos Renderemos / Coordenadores: Daniela Villani Bonaccorsi Rodrigues e Leonardo Monteiro Rodrigues

“Todos os dias quando acordo
Não tenho mais
O tempo que passou
Mas tenho muito tempo
Temos todo o tempo do mundo”

Renato Russo 

Nietzsche dizia que viver é como se tudo tivesse que retornar. Sim, para ele se o homem contemporâneo fosse capaz de voltar à mentalidade arcaica e anular o sentido de linearidade do tempo, teria dado o maior passo em direção para uma grande via de mutação. Para ele, a perda do sentido linear e irreversível do tempo comportaria uma revolução na psicologia humana. Acrescenta que o homem ordinário foge assustado da ideia do eterno retorno, mas, o presente é isso, a vivência do retorno ao passado, e esse não se apaga. Se apagássemos essa mentalidade arcaica, aceitaríamos o tempo e a demora com alegria.

O tempo é um termo importante no sistema penal, ademais quando é visível a morosidade do sistema penal. Para os que não estão na figura de “acusado”, é sinônimo de impunidade, mas, para o “acusado, a demora é impiedosa, o tempo não passa, parece retornar incessantemente.

Para abranger essa idéia do tempo, vimos alterações do instituto da prescrição e, dessa forma, importante discorrer sobre o tema. A prescrição é uma das situações em que o Estado, em virtude do decurso de certo espaço de tempo, perde seu direito à persecução penal. Dessa maneira, pode-se conceituar a prescrição como “um instituto jurídico mediante o qual o Estado, por não ter tido capacidade de fazer valer o seu direito de punir em determinado espaço de tempo previsto pela lei, faz com que ocorra a extinção da punibilidade”. (BITENCOURT, 2008, p. 728)

O Estado estabeleceu critérios limitadores para o exercício do direito de punir, e, levando em consideração a gravidade da conduta delituosa e da sanção correspondente, fixou um lapso temporal dentro do qual o Estado poderá aplicar a sanção penal adequada. Mesmo alguns doutrinadores[1] considerando que a prescrição é um instituto de direito processual. Para o ordenamento jurídico brasileiro, é um instituto de direito material.

Com a prática do crime, o direito abstrato de punir do Estado se concretiza, dando origem a um conflito entre o direito estatal de punir e o direito de liberdade do indivíduo. O Ministério Público, titular da ação penal (artigo 129, I, CF), deduz em juízo a pretensão punitiva estatal por meio do oferecimento de denúncia.

Com o trânsito em julgado da decisão condenatória, o ius puniendi concreto transforma-se em ius punitonis, isto é, a pretensão punitiva se converte em pretensão executória.[2] (BITENCOURT, 2008, p. 731)

A prescrição retroativa, nos termos da antiga redação do artigo 110, §2º do Código Penal considerava que a prescrição, depois da sentença condenatória com trânsito em julgado para a acusação, ou depois de improvido seu recurso, regulava-se pela pena aplicada, e podia ter por termo inicial data anterior à do recebimento da denúncia ou da queixa.[3]

Ou seja, após a decisão condenatória a análise da prescrição deveria ser feita tendo como referência a pena efetivamente aplicada, considerando retroativamente o prazo prescricional em relação ao período de tempo transcorrido até o estabelecimento dessa pena.  

Além da mencionada espécie de prescrição, alterada com a novel Lei, importante mencionar a denominada prescrição pela pena em perspectiva, anteriormente analisada de forma ampla nos manuais e decisões. Essa é construção doutrinária de expressivo relevo e que sofreu efeitos diretos com a entrada em vigor da Lei nº 12.234/2010. Refere-se à possiblidade de se calcular a prescrição antecipada, antes da decisão condenatória, com base na pena, em tese, aplicável no caso de condenação. Como ainda não houve condenação, a suposta pena servirá como fundamento para a prescrição em perspectiva. (GALVÃO, Fernando, 2012, p. 1004)

A Lei nº 12.234/2010 revogou o §2º do artigo 110 do CP, colocando fim à possibilidade de se reconhecer a chamada prescrição retroativa. Porém tratando-se a norma penal é de direito material inquestionável é sua aplicação a fatos ocorridos antes do início de sua vigência[4].

A revogação da prescrição retroativa constitui situação jurídica mais gravosa ao condenado. Tendo em vista o disposto no inciso XL do artigo 5º da CF, poderá ser aplicada somente aos fatos ocorridos anteriormente à entrada em vigor da referida lei.

Sem a irretroatividade da lei penal não haveria nem segurança jurídica, nem liberdade na sociedade. Está consagrado no artigo 1º do Código Penal[5] e no artigo 5º, inciso XXXIX, da Constituição Federal[6]. (BITENCOURT, 2008, p. 18)

Ratificando o cabimento das mencionadas espécies de prescrição justificando que “(...)é possível o reconhecimento da chamada "prescrição antecipada" nos casos em que a pena eventualmente aplicada implicaria, necessariamente, em reconhecimento da prescrição da pretensão punitiva (...) [7].

Além do argumento da própria questão do lapso temporal e, consequente segurança jurídica, também, entende-se seu cabimento diante da ausência de condições da ação[8], uma vez que, (...)se o processo não for útil ao Estado, sua existência jurídica é socialmente inútil. O interesse de agir é categoria básica para a noção de justa causa, no processe penal, e exige da ação penal um resultado útil. Sem aplicação possível de sanção, inexiste justa causa para a ação penal [9]. Ainda: 

RECURSO-CRIME. PRESCRIÇÃO PROJETADA OU ANTECIPADA. ADMISSIBILIDADE EM ATENDIMENTO À REAL FINALIDADE DE UM PROCESSO. Ratifica-se o entendimento adotado pelo Juízo a quo, que extinguiu a punibilidade, com a adoção de uma forma de prescrição antecipada, atentando-se à real finalidade de um processo, o que envolve, necessariamente, o vislumbrar-se de eventuais consequências práticas do mesmo. RECURSO EM SENTIDO ESTRITO IMPROVIDO. [10] 

Devido à controvérsia do tema, em 2010, o Superior Tribunal de Justiça editou a Súmula 438: “É inadmissível a extinção da punibilidade pela prescrição da pretensão punitiva com fundamento em pena hipotética, independentemente da existência ou sorte do processo penal”.

Destarte tal afirmação, sabe-se que a Súmula tem caráter de orientação e, por isso, não tem efeito vinculante ou que se possa, por óbvio, negar a garantia da retroatividade da Lei penal mais benigna. Sendo assim, a extinção de punibilidade com base na prescrição pela pena em perspectiva pode atingir fatos ocorridos após a Lei nº 12.234/2010, com fundamento na falta de interesse de agir, que é condição da ação e deve existir durante todo o procedimento e no princípio constitucional da efetividade do processo, derivado do devido processo legal, previsto no artigo 5º, LIV da CF. A doutrina da plenitude lógica do direito não pode subsistir em face da velocidade com que a ciência do direito de movimenta, de sua força criadora, acompanhando o progresso e as mudanças das relações sociais. Seguir a Lei à risca, quando destoantes das regras contidas nas próprias relações sociais, seria mutilar a realidade e ofender a dignidade mesma do espírito humano. (PONTES DE MIRANDA)[11]

Tanto a persecução penal, como a prestação jurisdicional, espécies do gênero das ações estatais, pautam-se pela observância ao princípio constitucional da eficiência, previsto nos artigos 5º, LXXVIII e 37, caput, da Constituição Federal, e a dignidade do acusado, evitando a sujeição a um processo penal inútil, no qual terá um desgaste desnecessário.

 

 

[1] BITENCOURT, Cezar Roberto, PRADO, Luís Regis fazem parte do entendimento majoritário, afirmando ser a prescrição um instituto de direito material.  Essa definição tem importância prática, pois se for considerada como instituto de direito processual, a lei tem aplicação imediata, por força do art. 2º do Código de Processo Penal. Sendo um instituto de direito material, a lei nova mais gravosa não pode retroagir, em obediência ao princípio da reserva legal. 

[2] O ius puniendi pode ser traduzido literalmente como o direito de punir do Estado e decorre da classificação da prescrição em prescrição da pretensão punitiva. Após sentença condenatória surge o ius punitonis que é a pretensão executória do Estado, em face do título penal executório.

[3] Prescrição depois de transitar em julgado sentença final condenatória

Art. 110 - A prescrição depois de transitar em julgado a sentença condenatória regula-se pela pena aplicada e verifica-se nos prazos fixados no artigo anterior, os quais se aumentam de um terço, se o condenado é reincidente. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)

§ 1º - A prescrição, depois da sentença condenatória com trânsito em julgado para a acusação, ou depois de improvido seu recurso, regula-se pela pena aplicada.  (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)

§ 2º - A prescrição, de que trata o parágrafo anterior, pode ter por termo inicial data anterior à do recebimento da denúncia ou da queixa. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984).

[4] Nesse sentido: RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. PRESCRIÇÃO PELA PENA PROJETADA. POSSIBILIDADE. Mantida a decisão que julga extinta a punibilidade do réu quando se antevê o reconhecimento da prescrição em caso de eventual condenação. SÚMULA 438 DO STJ. Verbete que não está dotado de eficácia vinculante. RECURSO IMPROVIDO. (Recurso em Sentido Estrito Nº , 70041838418,Quinta Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Genacéia da Silva Alberton, Julgamento 01.06.2011). 

[5] O art. 1º do Código Penal enuncia o princípio da reserva legal, cuja ementa é “anterioridade da lei”, da seguinte maneira: “Não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal.”.

[6] Igual disposição traz a Constituição Federal no art. 5º, XXXIX, ao determinar “que não haverá crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal.”.

[7] TACRIM-SP – AC 1302843 / 1 – Relator  Poças Leitão – Julgamento: 04.06.2002.

[8] É necessário para a ação penal que estejam presentes as condições da ação, quais sejam, legitimidade das partes, possibilidade jurídica do pedido e o interesse de agir. O reconhecimento da possibilidade de aplicação da prescrição pela pena em perspectiva está relacionado ao interesse de agir, uma vez que o provimento pretendido deve ser viável, eficaz, adequado e necessário. Sendo assim, quando se verifica que o provimento condenatório não poderá ser aplicado, pode-se concluir que falta interesse de agir. É evidente a inutilidade da persecução penal em casos que haverá uma futura prescrição antes do provimento final.

[9] 8ª Câmara Criminal – SER 70003944857 – Rel. Des. Tupinambá Pinto de Azevedo – Acórdão de 22.05.2002

[10] Recurso em Sentido Estrito Nº 70009427998, Segunda Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Laís Rogéria Alves Barbosa. Julgamento 30.09.2004

[11] Acórdão TRF-1 – Recurso Criminal GO 1997.35.00.000060-0. Desembargador Federal Tourinho Neto. Publicações 29.07.2005

Bitencourt, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, volume 1: parte geral. 13 ed. São Paulo: Saraiva, 2008.

Busato, Paulo César. Direito penal: parte geral. São Paulo: Atlas, 2013.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. São Paulo: Saraiva, 2013.

Galvão, Fernando. Direito penal: parte geral. São Paulo: Saraiva, 2013.

NICOLA, Ubaldo. Antologia Ilustrada de Filosofia: das Origens à Idade Moderna. Tradução de Margherita De Luca. São Paulo: Globo, 2005.Rangel, Paulo. Direito processual penal – 21 ed. São Paulo: Atlas, 2013. 

 

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