O TEMA 793 DO STF, O DISSENSO JURÍDICO E O SUS    

15/11/2020

Coluna Advocacia Pública e outros temas jurídicos em Debate / Coordenadores Weber Luiz de Oliveira e José Henrique Mouta

O Supremo Tribunal Federal, no tema 793[i], decidiu que há litisconsórcio passivo necessário entre as unidades federadas nas demandas de saúde ou não? A depender do intérprete, as duas respostas podem aparecer. Há dúvidas para todos os lados, conforme o olhar sobre o próprio fenômeno da judicialização da saúde pública nacional.

Existe uma certa percepção de que os casos judiciários tratam de uma busca pela efetivação do direito à saúde frente a equívocos ou omissões de políticas públicas. Então, parece natural apontar a cidadania e dignidade humana como vetores da atuação judicial, num cenário constitucional de aparente falta de clareza sobre o papel estatal.

De fato, milhares de demandas envolvem falhas da administração pública. O problema é que há outra vultosa quantidade de ações nas quais o tema diz respeito à pretensão de ampliação de política pública instituída ou inovação da assistência estatal de saúde.

O ser humano vive mais. A sociedade e a ciência evoluem. O fruto deste desenvolvimento é o surgimento de frequentes inovações de meios de prevenção e combate a doenças. Tais melhorias normalmente têm um preço: custam mais e exigem do sistema de saúde um cuidado sobre como e quando absorver as novidades, de forma a alcançar o maior número possível de indivíduos.

Como é impossível oferecer instantaneamente tudo a qualquer um, verifica-se uma realidade que pressupõe algum tipo de insuficiência. O cenário impõe o planejamento dos serviços de saúde, com a definição de prioridades (qualidade da assistência conforme estágio de conhecimento e segundo os recursos disponíveis, aludida no relatório da Oitava Conferência Nacional de Saúde).

Um contexto de escassez por vezes obsta a incorporação de um tratamento lançado recentemente. Noutras ocasiões resulta na sua incorporação parcial pela rede de saúde. Aqui, quando o serviço de saúde reconhece a importância da inovação, mas não tem capacidade de disponibilizá-la para todos, elege situações clínicas específicas consideradas críticas e inicia a oferta somente para tais hipóteses. Um exemplo são os medicamentos antivirais da hepatite C, sucessivamente padronizados de forma gradual ao longo dos últimos dez anos.

O tema relacionado ao ingresso de novas tecnologias também transita no sistema de justiça brasileiro, geralmente na forma de pretensões individuais. Em hipóteses deste jaez, o Poder Judiciário se tornou uma arena de aparente disputa entre usuário e Estado, sobre assunto de extrema sensibilidade emocional (quem não se sensibiliza com a dor do outro?).

A abordagem microscópica do assunto tende a desconsiderar o grande desafio do sistema de saúde, observado pela perspectiva coletiva: oferecer o melhor para quem precisa, sem prejudicar os demais. O conflito que se imagina existir entre indivíduo e poder público, corresponde a algo bem mais complexo e multifacetário.

De todo modo, demandas judiciais na área da saúde pertinentes a tecnologias de fora da rede pública ou em fase de incorporação gradual nem sempre indicam falha, tampouco omissão notória da administração pública. Em verdade, muitas postulações indicam pleitos de expansão ou criação de política pública de saúde.

Um segundo aspecto merece registro. A legislação constitucional e infraconstitucional sanitária definiram os atores e deveres estatais, ainda que com modificações decorrentes do tempo. E mais, distribuíram tarefas entre as três esferas da federação brasileira.

Se os arts. 6º e 196, do texto constitucional indicam um ponto de partida, a combinação dos arts. 197 a 200, permite uma visualização mais ampla do tema. O Sistema Único de Saúde (SUS) é o pilar indicado na Constituição Federal de 1988 para a efetivação do direito à saúde pelo poder público (sem prejuízo de outras intervenções institucionais), conforme a arquitetura ali delineada. No ponto, cabe lembrar da hierarquia das redes, do funcionamento da assistência à saúde de forma ascendente do nível básico para o complexo, cuja organização pressupõe também a correspondente atuação dos entes.

Na sequência, o texto constitucional autorizou a edificação da estrutura do SUS por meio de legislação federal, fato que se concretizou especialmente por meio da Lei nº 8.080/1990 (Lei Orgânica da Saúde – LOS). Na LOS há diretrizes e conceitos do sistema. De igual forma, ali constam responsabilidades comuns aos três entes (art. 15) e competências específicas para as unidades federativas (arts. 16, 17, 18 e 19-Q).

Atribuições comuns na saúde pública não significam tarefas rigorosamente iguais. Primeiro, observa-se que os deveres em comum são expressamente delimitados. Depois, numa federação existem escalas de atuação, de maneira que os entes podem atuar em graus diversos.

Dentro da Lei Orgânica da Saúde, disposição legislativa nacional, inserem-se dois itens relevantes. O Ministério da Saúde, assessorado pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS, delibera pela incorporação ou não de novas tecnologias de saúde (art. 19-Q). Em acréscimo, o sistema regula internamente o custeio da nova assistência, por meio da Comissão Intergestores Tripartite, composta por representantes das três esferas federativas (art. 19-U).

A atuação da direção nacional do sistema é essencial em variadas frentes. Aqui, destacam-se: a) tecnologias de fora da rede, ante o seu poder decisório; b) tecnologias de maior custo integrantes do serviço público de saúde, cujo financiamento, aquisição e elaboração de protocolo nacional lhe compete, por meio do Componente Estratégico de Assistência Farmacêutica (CESAF), grupo 1 do Componente Especializado de Assistência Farmacêutica (CEAF), ou assistência oncológica.

A apresentação desta ótica permite evidenciar que o ordenamento jurídico pátrio dispõe de uma legislação constitucional e infraconstitucional sanitária, destinadas a expressar a forma e o conteúdo da atuação estatal para a efetivação do direito à saúde.

O que fortalece o SUS? A compreensão de seu desenho estrutural, com as suas virtudes e vicissitudes. O que enfraquece o sistema? A inobservância de sua organização e modo de funcionamento.

Instado a se manifestar sobre a judicialização da saúde pública, o Supremo Tribunal Federal se pronunciou em alguns julgamentos. Aqui, o texto se volta especialmente para o tema 793 (Recurso Extraordinário nº 855.178/SE e subsequente recurso de Embargos de Declaração).

Num primeiro momento, a corte brasileira definiu pela possibilidade de qualquer cidadão propor demandas sobre assistência à saúde contra um ou todos os entes da federação, inspirada no ideal de efetivação do direito fundamental. Todavia, tal visão em parte desconsiderou a organização do Sistema Único de Saúde, destinada a materializar o mesmo direito.

Diante da complexidade notada, posteriormente o tribunal ajustou o julgamento para permitir à autoridade judicial direcionar o cumprimento conforme as regras de competências do serviço estatal de saúde, e determinar o ressarcimento a quem suportar o ônus financeiro.

As consequências da alteração são o objeto da controvérsia, especialmente: legitimidade passiva dos entes federados, litisconsórcio passivo (necessário ou facultativo), competência das justiças estaduais e federal em demandas de assistência à saúde.

Alguns apontam uma fala do Ministro Edson Fachin (prolator do voto vencedor), durante os debates para se sustentar que o julgado não tratou do litisconsórcio na formação do polo passivo da demanda; somente de um excessivo ônus a um dos entes da federação.

Em alguns conflitos de competência, o Superior Tribunal de Justiça abordou a questão, especialmente sob a já conhecida ótica dos enunciados sumulares nos 150 e 264. Vale o que a Justiça Federal concluir sobre a presença da União. Como há juízos que reconhecem sua competência e outros a sua incompetência, a divergência subsiste.[ii]

Não obstante, referidas conclusões esbarram numa ponderação: pelas regras processuais não é possível o cumprimento de sentença contra ente que não fez parte da demanda. Em acréscimo, existem outros aspectos a se verificar.

Conforme a ata de julgamento, o tribunal rejeitou os embargos de declaração nos termos do voto do Ministro Edson Fachin, designado redator do acórdão (STF Emb. Decl. RE nº 855.178/SE, p. 153 do inteiro teor).

Uma das premissas do voto vencedor é que a solidariedade irrestrita, independentemente da legislação sanitária, tende a acarretar a falência do SUS (p. 50-51 do inteiro teor). Outras diretrizes são a observância da competência legal dos entes em demandas de assistência à saúde padronizadas na rede pública, e a obrigatoriedade de participação da União na hipótese de ausência de incorporação (p. 35 do inteiro teor).

Alguns Ministros como Ricardo Lewandowski, Rosa Webber, Carmen Lúcia e Gilmar Mendes fizeram algumas considerações pontuais. Porém, juntamente do Ministro aposentado Celso de Mello, todos expressamente declararam acompanhar a divergência (p. 145 a 148 e 154 do inteiro teor).

Afirmar que os cinco julgadores anuentes com a posição do Ministro Edson Fachin se pronunciaram de maneira diversa significa afastar a conclusão de seus votos. Em adendo, nenhum deles se obrigou a decidir de tal maneira, e todos poderiam anunciar sua tese de forma diversa, tal qual o Ministro Marco Aurélio.

De forma simples e direta, o referido Ministro conheceu e desproveu o recurso (p. 150-151 do inteiro teor), sem apresentar concordância com alguém.

Um outro dado relevante é que o Ministros Alexandre de Moraes, Luiz Fux, Dias Toffoli e Roberto Barroso, admitiram a presença da União nos processos, mesmo que subsidiariamente (TOFFOLI, p. 125; BARROSO, p. 138; MORAES, p. 96 e 127; LUIZ FUX, p. 136, todos do inteiro teor). Três deles apontaram como fundamental o envolvimento do ente federal nas pretensões sobre tecnologias não incorporadas no SUS.

A seu turno, o Ministro Luiz Fux, em diversas passagens, expressou a necessidade de observância das regras de competências do SUS e trouxe à tona os enunciados da Jornada do Direito à Saúde, do Conselho Nacional de Justiça, atinentes ao objeto do julgamento (p. 104-105 do inteiro teor).

Depreende-se do exposto que pelo menos dez Ministros da corte aquiesceram com a necessidade de prestígio das atribuições das unidades federadas segundo as disposições legislativas do SUS. Na mesma linha, parece indiscutível a presença da União nos casos de assistência à saúde sobre tratamentos inseridos na política estatal como de sua responsabilidade ou nas pretensões de acesso a tecnologias externas à rede.

No tocante ao litisconsórcio necessário, o Ministro Ricardo Lewandowski expressou preocupação com situações de emergência ou urgência em unidades de pronto atendimento, e reconheceu a importância de se estabelecer uma metodologia para tornar exequível o direito à saúde (p. 133 e 140 do inteiro teor). Exatamente por isto, quando da discussão sobre a tese assentada, sugeriu ao Ministro Fachin afastar a obrigatoriedade de imediata alteração do polo passivo (p. 161 do inteiro teor), para não prejudicar a parte interessada ou exigir conhecimento especializado de um julgador numa demanda que depende de rápida resposta.

Ato contínuo, o redator do acórdão esclareceu que tomou o cuidado de não exigir litisconsórcio passivo necessário, e, ao mesmo tempo, atribuiu o poder/dever à autoridade judicial de direcionar o cumprimento (p. 162 do inteiro teor). Dentro do contexto dos diálogos e votos, nota-se que o Ministro Edson Fachin se referiu ao tema apenas nas hipóteses em que tal questão processual representasse um óbice à proteção do direito na etapa inaugural do processo, sem prejuízo da subsequente inclusão da unidade federada competente.

Em outros termos, a existência de litisconsórcio necessário não deve impedir a atuação judicial. Entendimento diverso resulta na afronta das variadas premissas e conclusões de seu voto.

No tocante ao aparente conflito entre o tema 500 (tratamentos de fora da rede pública e, sem registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA) e o tema 793, o Ministro Fachin salientou que um caso toca à necessidade de participação obrigatória da União; o outro, por ser bem mais amplo, relaciona-se com a análise das competências do SUS conforme a situação exposta, na linha do enunciado 60 da Jornada de Saúde do CNJ (p. 156-157 do inteiro teor).

A distinção tem razão de ser. O tema 793 abarca variadas hipóteses de judicialização. Desde uma de assistência padronizada de responsabilidade municipal – sem atinência com o ente federal – até aquela de tecnologia com registro na Anvisa e fora do SUS, cuja presença da direção nacional do sistema é fundamental, em razão do art. 19-Q, da Lei Federal nº 8.080/1990.

Na sequência, merece realce a essência do controle jurisdicional da administração pública: corrigir desvios e incitar o aperfeiçoamento da atuação estatal no cumprimento do ordenamento jurídico brasileiro.

Sob tal enfoque, é admissível uma demanda sobre tecnologia não incorporada na rede pública, sem a presença do responsável legal pelo exame da matéria? A concordância com tal questão resulta na proposição de que o ente competente, a União, esteja alheio e sem dados a respeito do problema.

Um dos princípios constitucionais mais destacados sobre a administração pública no meio jurídico é o da eficiência (art. 37). Na mesma linha o art. 7º, XIII, da LOS, preconiza a vedação à duplicidade de atuação para fins idênticos.

No entanto, sustentar que a direção municipal ou estadual do SUS pratiquem atos a cargo da direção nacional e vice-versa é ofender referidos vetores. Desconsiderar a estrutura do sistema é “descontrolar” a administração pública no âmbito da assistência à saúde (vide o art. 22 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – LINDB, Decreto-Lei Federal nº 4.657/1942).

Outrossim, o ônus excessivo a municípios ou estados, apontado pelo Ministro Fachin, é visível na maior parte das demandas sobre tratamento não incorporado. De maneira similar, na assistência oncológica e nas tecnologias mais caras, em fase de incorporação gradual (cujo financiamento e/ou aquisição compete à União por meio do Componente Estratégico de Assistência Farmacêutica e grupo 1 do Componente Especializado de Assistência Farmacêutica).

Portanto, o que se espera da intepretação sobre o resultado do tema 793, do STF, é que todos se lembrem do SUS. Para a Constituição Federal de 1988, eis a ferramenta estatal para a materialização do direito à saúde! E mais, a presença da direção nacional nos feitos que tratam sobre poderes-deveres que legalmente lhe competem é mandatória.

 

Notas e Referências

[i] BRASIL. Supremo Tribunal Federal, RE 855178 ED, Relator(a): LUIZ FUX, Relator(a) p/ Acórdão: EDSON FACHIN, Tribunal Pleno, julgado em 23/05/2019, PROCESSO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL – MÉRITO DJe-090 DIVULG 15-04-2020 PUBLIC 16-04-2020

[ii] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. CC 172.817/SC, Rel. Ministra ASSUSETE MAGALHÃES, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 09/09/2020, DJe 15/09/2020) e, AgInt no CC 172.061/PA, Rel. Ministro FRANCISCO FALCÃO, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 01/09/2020, DJe 03/09/2020.

 

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