O Supremo de borracha e lápis em punho: uma crítica ao julgamento sobre o cumprimento provisório da condenação criminal

23/02/2016

Por Luís Felipe Espindola Gouvêa - 23/02/2016

Na última quarta-feira (17/02/16), quando denegou a ordem no Habeas Corpus n. 126.292, o Supremo Tribunal Federal realizou um julgamento histórico. Passou a entender compatível com a Constituição o cumprimento provisório da pena em processo criminal quando o acusado já tenha sido condenado em 2º grau de jurisdição. Na prática isso quer dizer que os recursos para os tribunais superiores não irão mais impedir que o condenado vá para a cadeia enquanto espera a possível revisão da sua condenação pelos tribunais de Brasília.

O julgamento é histórico não só pela natureza do que se coloca em discussão, mas também pela circunstância.

Apenas em 2010 o Supremo Tribunal Federal passou a dar a devida importância à cláusula de presunção de inocência, entendendo que quando a Constituição fala que "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória" de fato não pode haver execução da pena antes de transitar em julgado a condenação (serem esgotados todos os recursos interpostos pelo acusado). Agora o Supremo volta atrás como se a Constituição fosse escrita a lápis, apagando e reescrevendo o art. 5º sem aparente muita preocupação com o mar de insegurança que uma virada desta magnitude ocasiona.

O cumprimento da pena é a consequência maior do juízo de considerar-se alguém culpado. Fazer o sujeito cumprir a pena antes de encerrar-se seu processo é por o carro na frente dos bois de um jeito que poucas vezes se viu. A contradição é evidente e o STF sabia disso até quarta passada.

E é importante destacar que isso não quer dizer que ninguém poderia ir preso antes da condenação final. A prisão preventiva do acusado pode ser pedida a fim de manter alguém especialmente perigoso fora das ruas enquanto pende seu recurso. Mas isso é exceção, excepcional! O Estado assume o risco de pôr um inocente na cadeia apenas por razões altamente relevantes. O que ocorre é que agora, depois desse novo julgamento do Supremo, por padrão, o condenado em 2º grau poderá esperar já preso o desenrolar do seu recurso, ao bel prazer do acusador e julgador. Não mais importando discussões sobre a periculosidade do sujeito e etc. O Ministério Público e o Judiciário não tem mais o ônus de demonstrar as razões excepcionais que motivam manter o sujeito preso. Preso estará porque foi considerado culpado, ainda que haja recurso legitimamente discutindo isso.

A verdade é que o STF quis resolver o problema da excessiva demora sua e do STJ para julgar os recursos. Pressão da população que "clama por justiça", "cansada de impunidade". Com a virada de quarta-feira nossos tribunais superiores agora estão isentos de responsabilidade. Nenhuma pena irá prescrever porque o STF engavetou o processo do sujeito por 10 anos. "Essa pica agora é do aspira" diria o Capitão Fábio. Pois é. Se o STF não tinha estrutura para julgar o que a Constituição lhe incumbia, a lógica é rasgar a Constituição então. Corta-se a perna para salvar um dedo.

Me digam: como ficará para a cara do Poder Judiciário quando o STF resolver reformar uma condenação cuja pena de prisão já foi cumprida por inteiro? A decisão coloca o STF em uma posição péssima, de desestímulo a um julgamento sério. A Corte tenderá a legitimar ilegalidades das mais diversas ordens a fim de não admitir que o Estado prendeu um sujeito injustamente por anos. Esse será o fantasma a assombrar todos os julgamentos de recursos movidos pela defesa.

Outro aspecto que não pode ser ignorado é a influência dessa decisão no direito sancionador não criminal. Pensem em ações de improbidade ou ações eleitorais, por exemplo. Nessas áreas já há a perene dificuldade em formular um raciocínio processual compatível com as garantias constitucionais, muito porque os tribunais costumam se escorar atrás da premissa de tratar-se de “processo civil, não penal”. Esse raciocínio ignora o fato da imposição de penas não ser característica exclusiva do processo criminal. Ações civis podem impor sanções tão ou mais drásticas. Mas agora a carta branca está dada: se no processo criminal - manifestação máxima de poder do estado-juiz - a decisão de 2º grau já pode ser incorporada ao patrimônio do acusador, porque também não suspender outros direitos que antes exigiriam o trânsito em julgado? Direitos políticos, por exemplo? O engraçado é que o STF já fez isso – com relação ao direito de ser votado - no julgamento da Lei da Ficha Limpa em 2012, quando disse que o condenado em 2º grau já estaria mesmo inelegível e fim de papo. Depois dessa quarta-feira reparar esse erro está ainda mais distante.

Ainda o próprio julgamento do Tribunal de Justiça de São Paulo, que motivou a mudança de jurisprudência, demonstra porque não devemos nos render ao "bom juízo" exclusivo dos tribunais de segundo grau. O entendimento do Supremo era firme como uma rocha desde 2010, quando o sentimento geral da comunidade jurídica era de progresso. Qualquer advogado consultado sobre isso responderia que a execução provisória é inconstitucional, pela sua leitura da Constituição e sobretudo pela leitura firme do STF. Ainda assim o TJSP resolveu contrariar essa ideia, batendo de frente com um mar de decisões. A ironia é que isso funcionou. Agora imaginem a quantidade de entendimentos consolidados que podem ser desconsiderados pelos tribunais locais com a execução provisória legitimada dessa forma. Sobre condenados sem fundamentação idônea, qualificadoras indevidamente imputadas, provas inexistentes e tantas outras.

Ao menos o federalismo ganha força, de um jeito macabro, todavia. Esperemos sem muita expectativa o desenrolar dessa história.


Luís Felipe Espindola Gouvêa. . Luís Felipe Espindola Gouvêa é Advogado. Mestrando em Direito na Universidade Federal de Santa Catarina. . .


Imagem Ilustrativa do Post: Macro of red HB pencil peeking through a book // Foto de: Horia Varlan // Sem alterações Disponível em: https://www.flickr.com/photos/horiavarlan/4263327323 Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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