O “SUPREMO CONGRESSO NACIONAL” OU A HISTÓRIA DOS DEPUTADOS QUE QUEREM SE AUTO-ATRIBUIR A “GUARDA SUPREMA DA CONSTITUIÇÃO”

20/06/2022

Coluna Por Supuesto

Os que tentamos acompanhar de perto a vida jurídica e política do país, tendo como norte de reflexão o caudal principiológico da Constituição Federal de 1988, perdemos uma grande cota da nossa capacidade de assombro com relação às iniciativas dos quais alguns setores - e até o próprio presidente- fazem alarde para desconstruir o modelo de Estado de Direito, que lhes resulta incômodo e desconfortável para suas visões autoritárias. De fato, há um tempo existe a ideia de retirar controles e limites, concentrar poderes, acumular competências e desvirtuar freios e balanços.   

Isso nos leva a pensar em algo que tem sido apontado como um sinal do deterioro dos nossos tempos e da crise civilizatória que se erige quase que universalmente, e que consiste na habitual necessidade de deter-nos naquilo que salta à vista, e que até pode ser apreendido por intuição. No caso que veremos, a intuição que se funda no discernimento de uma doutrina constitucional “constitucionalmente adequada” e amparada num “sistema de domínio político democrático”, como ensina o mestre lusitano Canotilho.  Alguém diz que no Brasil atual o óbvio é, também, histórica e culturalmente variável.

O fato é que em vários jornais de ampla circulação lê-se que um grupo de deputados buscam desesperadamente as assinaturas que permitam oferecer uma proposta de emenda constitucional[1], cujo teor consistiria em que as decisões do Supremo Tribunal Federal que forem não unânimes ou consideradas como extrapolando os limites constitucionais poderiam ser revogadas pelo Congresso Nacional.  

Em lugar manifestar preocupação com a Carta de 1988, fazendo uma reflexão sobre as balizas de funcionamento do sistema constitucional instalado, os deputados se dedicam a procurar adeptos para apresentar o que nem sequer poderia ser objeto de deliberação.

Se olhamos de relance sobre os estudos do direito constitucional tanto no Brasil como em outros lugares da América Latina e do mundo encontraremos mais de uma história, construção jurisprudencial ou elaboração doutrinária sobre a separação de funções como vértice estrutural do Estado de Direito contemporâneo. Salvo os traços do direito constitucional inglês, nos quais se distingue a própria história do Reino Unido, e onde encontramos a ausência do que poderia ser considerada uma nítida separação, com maiores ou menores evidências, em outros tantos países, como nos Estados Unidos, a interpretação e aplicação do texto normativo da Constituição feita pelos juízes conduz à  judicial review, como um reflexo de competências atribuídas dentro do marco de uma separação; na França, por sua vez, de um direito constitucional entendido em sentido quase que exclusivamente político, tem -se postulado recentemente uma escola jurisprudencial, para o qual o papel dos juízes é essencial – essentiellement jurisprudentiel – dentro do marco da separação de funções. Na América Latina, recentemente tem cobrado vigor as cortes constitucionais, com modelos democráticos de conformação e que tem enriquecido sobremaneira, com as suas decisões, particularmente em tempos de excepcionalidade ou quase-excepcionalidade pandêmica, a salvaguarda de direitos fundamentais.

Há, desde logo, uma visão importante na doutrina sobre a relação entre os legislativos e os judiciários. Destaca, dentre outros em nosso meio a obra de Jeremy Waldron, “A dignidade da Legislação”. [2] Entretanto, a contrário do que pensam – ou imaginam – alguns desavisados no sentido de que Waldron advogaria pela supressão do controle de constitucionalidade pelas cortes, não há nada mais irreal. O próprio Waldron diz com clareza: “Não é minha intenção argumentar aqui contra a revisão judicial da legislação”. Suas preocupações são muito mais profundas, de longo alcance e envergadura. O professor de Columbia está incomodado com algo que passa muito distante das intenções dos deputados do Congresso brasileiro que buscam assinaturas para o projeto de emenda. Se trata de desenvolver as bases de uma “teoria normativa da legislação”, isso porque, nas suas palavras, “ninguém parece ter percebido a necessidade de uma teoria ou de um tipo ideal que faça pela legislação o que o juiz-modelo de Ronald Dworkin, ‘Hercules’, pretende fazer pelo raciocínio adjudicatório”. [3]  

Mas, retornando ao projeto, nada disso se desprendem como questões importantes a muitos e muitas ocupantes de vagas no Congresso. Pelo que enxergamos, as intenções reais parecem consistir em retirar as possibilidades de que iniciativas legislativas que desde sua génese se afiguram inconstitucionais por, por exemplo, contrariar o interesse público ou violentar postulados como a igualdade ou expor a redução do modelo de Estado social, possam ter vida mais tranquila, sem os temores de uma declaração de inconstitucionalidade por maioria na Corte.  

Por sinal, uma leitura rasa e literal do art. 60, da Constituição permite enxergar limites ou vedações explícitas às matérias que podem ser objeto de Emenda. Trata-se daqueles que segundo a nomenclatura mais difundida estão petrificadas - cláusulas pétreas -, dentre elas, no inciso III do §4º do mesmo artigo, a separação de funções. E tão explicito foi o constituinte que os limites implicam que qualquer PEC tendente a abolir a separação “não será objeto de deliberação”, ou seja, não poderá sequer ser debatida no Congresso ou em qualquer de suas Casas.

A rigor, a cláusula pétrea da separação de funções para o exercício do poder político nem sequer precisaria estar expressamente redigida no art. 60. Trata-se de decorrência da soberania popular, que é princípio fundamental da República, e que implica tanto a independência quanto a harmonia entre Legislativo, Executivo e Judiciário. E tanto a uma quanto a outra tem como alicerce uma atribuição de competências indelegáveis, que não estão sujeitas aos desejos, caprichos ou vontades eventuais de membros das Casas do Congresso, nem sequer na sua qualidade de órgão com a qualidade de reformador do texto original da Constituição.   

Ora, se uma PEC propõe, primeiro, retirar uma competência constitucional atribuída expressamente ao STF (qual seja, a guarda definitiva e suprema da própria Constituição, mediante suas decisões, unânimes ou não) e, por outro lado, segundo, pretende aumentar a competência do Congresso, que se colocaria acima do STF em questões não unânimes ou que “extrapolem” os limites constitucionais, é ululante a conclusão de que se está diante de pretensão de abolição de fundamentos da separação de funções. A decorrência, expressa pela CF, é a proibição de deliberação da PEC, porque patentemente inconstitucional.

Muito ainda se poderia dizer sobre separação de funções, desde o surgimento da ideia, no iluminismo europeu do século XVIII, até hoje. Há farta doutrina sobre sua importância para a manutenção do equilíbrio do poder político, para o resguardo da democracia e sobre todo, para sua utilidade como instrumento para proteger ao ser humano das ações arbitrárias dos agentes estatais.

Em resumo, mais uma proposta desastrada e inconstitucional. Politicamente considerada se afigura como tentativa de avançar sobre a Corte, instituição que, com todas as críticas que podem ser feitas ao seu funcionamento, em reiteradas decisões conteve os desmandos e as atuações torpes dos outros órgãos e continua a colocar limites e a se posicionar em defesa da democracia, especialmente ante as ameaças de desconhecimento dos resultados eleitorais que continuamente são feitas, hoje, no país.

Por isso, quando agentes do Estado propõem restringir ou abolir a separação de funções auto- atribuindo-se competências que antes pertenciam a outros ou, falando explicitamente, quando o Congresso pretende sobrepor-se ao STF usurpando as competências da Corte para se tornar algo que a Constituição não determinou que ele fosse, isto não é mais que outra tentativa de golpe institucional e como dizia o Mestre Paulo Bonavides “(...) graças ao golpe institucional, os autores desse golpe se tornam, também, os senhores absolutos dos destinos do país”[4].Tentar esvaziar as competências do Supremo Tribunal Federal mediante PEC, para que o Congresso Nacional se torne senhor da interpretação da Constituição é, por supuesto, medida que a própria Constituição veda expressamente..

 

Notas e Referências

[1] Veja-se, por exemplo, no jornal Estado de São Paulo de 14.06.2022. https://www.estadao.com.br/politica/centrao-prepara-pec-para-reverter-decisoes-nao-unanimes-do-supremo/

[2] A obra é publicada no Brasil pela Editora Martins Fontes no ano 2003, nos marcos da sua “Coleção justiça e direito”

[3] A dignidade da Legislação. Primeira página.

[4] Do país constitucional ao país neocolonial. A derrubada da Constituição e a recolonização pelo golpe de Estado institucional. 4ª ed., São Paulo: Malheiros, 2009, p. 23.

 

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