O STF e o julgamento do Habeas Corpus

24/03/2018

O habeas corpus, não é despiciendo lembrar, tem sua origem no ano de 1215 quando da assinatura da Magna Carta na Inglaterra imposta ao despótico rei João Sem Terra pelos condes e barões, revoltados diante das arbitrariedades cometidas pelo monarca. 

Pontes de Miranda explica a origem e o significado do nome em latim: 

Habeas corpus eram as palavras iniciais da fórmula do mandado que o Tribunal concedia, endereçado a quantos tivessem em seu poder, ou guarda, o corpo do detido. A ordem era do teor seguinte: ‘toma (literalmente: tome, no subjuntivo, habeas, de habeo, habere, ter, exibir, tomar, trazer, etc.) o corpo deste detido e vem submeter ao Tribunal o homem e o caso.[1] 

Entre nós, originalmente, em conformidade com a tradição inglesa, a ordem de habeas corpus não era como hoje, a decisão em favor da liberdade, mas uma ordem de apresentação do preso (paciente) ao juiz ou tribunal, com os motivos do constrangimento. 

Em nosso direito o habeas corpus foi introduzido ainda no Império pelo Código de Processo Criminal de 1832 que em seu art. 343 dispunha o seguinte: “A Ordem de habeas-corpus deve ser escrita por um escrivão, assinada pelo juiz ou presidente do tribunal, sem emolumento algum; e nela se deve explicitamente ordenar ao detentor ou carcereiro que dentro de certo tempo e em certo lugar venha apresentar, perante o juiz ou tribunal, o queixoso, e dar as razões do seu procedimento”. 

Com o advento da República, a Constituição de 24 de fevereiro de 1891 elevou o habeas corpus à categoria de garantia constitucional. De acordo com o texto constitucional da época, “Dar-se-á habeas corpus sempre que o indivíduo sofrer ou se achar em iminente perigo de sofrer violência ou coação, por ilegalidade ou abuso de poder” (art. 72 § 22).

A atual Constituição da República assevera: “conceder-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder” (art. 5º, inc. LXVIII). 

Sady Cardoso de Gusmão[2] observa que: 

a restrição à liberdade de locomoção não implica rigorosa estreiteza do conceito. Antes de tudo o instituto protege o indivíduo em seu corpo, em projeção intrínseca: liberdade corporal, direitos corpóreos meros, compreendendo os casos de exames corporais, buscas pessoais, integridade física: injusta identificação, castigo corporal direto ou indireto, como supressão de alimentos, violência física etc. Ainda é suscetível e projeção extrínseca, a direitos imanentes, ou aderentes: habeas corpus para cessar a incomunicabilidade, transferência de prisão, contramedida de segurança não prevista em lei ou não regularmente aplicada, como a sujeição a liberdade vigiada fora dos casos legais. 

A grandeza do habeas corpus como remédio para fazer cessar o constrangimento ilegal ou evitar que ele se dê (preventivo) se revela na possibilidade do mesmo ser impetrado por qualquer pessoa, inclusive pelo próprio paciente, ser concedido de ofício, como, também, não se exigir qualquer formalidade ou rebusque na petição de impetração. Pode ser pedido por carta, telegrama, e-mail, telefone ou qualquer outro meio hábil que vise obtenção da Ordem. 

No julgamento do habeas corpus 15275, na tarde da última quinta-feira, alguns ministros, notadamente o ministro Luiz Fux, atacaram o número elevado de habeas corpus submetido a julgamento pelo STF. De acordo com o ministro Fux é necessário combater o que ele chamou de “uso promiscuo e vulgar do habeas corpus”. 

Entretanto, faz-se necessário destacar que, se hodiernamente o número de impetração de habeas corpus é acentuado é porque o número de prisões ilegais tem crescido descomunalmente. Não é sem razão que o Brasil com a terceira maior população carcerária do planeta – 700 mil presos – tem mais de 250 mil presos provisórios. Não fosse a prisão cautelar tomada como antecipação da tutela penal e nem se banalizado como instrumento odioso de investigação, certamente o número de habeas corpus seria menor. Parece lógico que quanto mais arbitrariedades e constrangimentos forem perpetrados em nome de uma fúria punitivista maior será a necessidade de se recorrer ao remédio heroico. 

Na verdade, ministro Fux, a prisão é que vem sendo vulgarizada. Promiscuidade é manter alguém preso sem que haja motivo de cautela e, portanto, sem que haja uma condenação definitiva transitada em julgado. Não é demais martelar que a regra é o status libertatis. A liberdade, ao contrário da sua privação, não necessita de fundamentação. 

O processo penal, conforme ressalta Aury Lopes Jr., não pode ser visto hoje como um simples instrumento a serviço do poder punitivo, mas, também, como aquele que cumpre o imprescindível papel de limitador do poder e garantidor do indivíduo a ele submetido. Como bem alertado pelo citado autor, 

há que se compreender que o respeito às garantias fundamentais não se confunde com impunidade, e jamais se defendeu isso. O processo penal é um caminho necessário para chegar-se, legitimamente, à pena. Daí por que somente se admite sua existência quando ao longo desse caminho forme rigorosamente observadas as regras e garantias constitucionalmente asseguradas (as regras do devido processo legal).[3] 

Assim, como bem já asseverou o ministro Celso de Mello (decano do Supremo Tribunal Federal), 

O dever de proteção das liberdades fundamentais dos réus, de qualquer réu, representa encargo constitucional de que este Supremo Tribunal Federal não pode demitir‐se, mesmo que o clamor popular se manifeste contrariamente, sob pena de frustração de conquistas históricas que culminaram, após séculos de lutas e reivindicações do próprio povo, na consagração de que o processo penal traduz instrumento garantidor deque a reação do Estado à prática criminosa jamais poderá constituir reação instintiva, arbitrária, injusta ou irracional. 

Por tudo, não resta qualquer dúvida que o STF acertou em conhecer do habeas corpus, julgando cabível para que na sessão marcada para o próximo dia 4 de abril seja julgado o mérito e afinal concedida a Ordem. Destaca-se que o verdadeiro “paciente” deste habeas corpus - que honra o princípio constitucional da presunção de inocência - é a proteção da dignidade da pessoa humana como postulado do Estado democrático de direito.

 

[1] PONTES de MIRANDA. História e prática do habeas-corpus, 3ª ed., Rio de Janeiro: José Konfino Editor, 1955.

[2] Apud SOUZA, José Barcelos de. Doutrina e prática do habeas corpus. Belo Horizonte: Sigla, 2008.

[3] LOPES JR., Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional, 5ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.

 

Imagem Ilustrativa do Post: Sede STF // Foto de: SCO/STF // Sem alterações

Disponível em: https://flic.kr/p/UZ9oLG

Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura