O STF E O DIREITO À CRECHE: FIM DE UMA INEFETIVIDADE?

12/10/2022

No fim do mês passado, uma importante decisão do Supremo Tribunal Federal acabou passando relativamente despercebida.

No julgamento do RE 1008166, sob relatoria do Min. Luiz Fux, o STF apreciou como controvérsia constitucional se a Administração Pública é obrigada a assegurar vagas em creches e pré-escolas para crianças de 0 a 5 anos[i].

No caso concreto do RE, o Município de Criciúma recorria de decisão do Tribunal de Justiça de Santa Catarina que manteve a condenação do Município em mandado de segurança a providenciar vaga em creche para uma criança. Como principal argumento, o recorrente alegou não caber ao Poder Judiciário interferir em questões orçamentárias, impondo despesas sem fonte de custeio legalmente prevista.

Em decisão unânime, o STF entendeu que crianças de 0 a 5 anos possuem direito fundamental à matrícula em creches e pré-escolas.

A Corte fixou a seguinte tese: 

1 - "A educação básica em todas as suas fases, educação infantil, ensino fundamental e ensino médio, constitui direito fundamental de todas as crianças e jovens, assegurado por normas constitucionais de eficácia plena e aplicabilidade direta e imediata.

2 - A educação infantil compreende creche, de 0 a 3 anos, e a pré-escola, de 4 a 5 anos. Sua oferta pelo poder público pode ser exigida individualmente, como no caso examinado neste processo.

3 - O poder público tem o dever jurídico de dar efetividade integral às normas constitucionais sobre acesso à educação básica.” 

No julgamento, foi destacado que a Constituição Federal apresenta dispositivos incisivos em favor do reconhecimento de um direito de acesso à educação infantil[ii].

O art. 208, IV, da Constituição, afirma o dever estatal de garantir o ensino infantil por meio de creches e pré-escolas para as crianças de até 5 (cinco) anos de idade. Inclusive, em 2006, esse inciso foi alterado pela EC nº 56, para prever, expressamente, que creches e pré-escolas integram a educação infantil. A nova redação não deixa dúvida que tais serviços públicos atendem ao direito fundamental à educação, logo, não podem ser interpretados como meros serviços para “tomar conta” ou de “estadia de crianças” para os pais trabalharem, como ainda parece estar difundido no senso comum.

No § 1º do mesmo art. 208, a Constituição declara que “o acesso ao ensino obrigatório e gratuito é um direito público subjetivo”, sendo, portanto, imediatamente exigível em face do Estado. Já no art. 211, § 2º, ela prevê, ainda, que os Municípios são os prestadores prioritários da educação infantil.

Em importante leitura sobre a questão, a Min. Rosa Weber destacou a ligação do tema com o chamado constitucionalismo feminista, uma vez que creches e pré-escolas atendem à maior vulnerabilidade das trabalhadoras na relação de emprego, que enfrentam dificuldades para conciliar os “projetos de vida pessoal, familiar e laboral”, especialmente, diante “da histórica divisão assimétrica da tarefa familiar de cuidar de filhos e filhas”[iii]. Assim, esses serviços públicos não atendem apenas às crianças, mas se revelam também imprescindíveis para as mães, ao lhes assegurar condições concretas para o retorno ao mercado de trabalho, promovendo a igualdade material de gênero.

Em suma, o STF reconheceu que o acesso a creches e pré-escolas é direito subjetivo das crianças de até 5 anos. Nessa linha, podemos entender que o Tribunal firmou que a educação infantil integra o conteúdo essencial do direito fundamental à educação, e como tal, o efetivo acesso deve ser assegurado pela atuação ativa da Administração Pública a despeito de qualquer argumento contrário.

Como prerrogativa integrante do conteúdo essencial de um direito fundamental, sua efetivação não está sob a discricionariedade administrativa, nem contra ela pode ser alegada a reserva do financeiramente possível, sob pena de negativa da fundamentalidade constitucional do direito à educação. Sua satisfação concreta está para além de qualquer ponderação, não havendo qualquer argumento juridicamente legítimo que possa ser invocado pela Administração para negá-la ou retardá-la.

O entendimento firmado pelo Supremo nesse caso não é propriamente novo, já havendo decisões anteriores no mesmo sentido.

Por exemplo, em 2005, no julgamento do RE 410715 AgR/SP, de relatoria do Min. Celso de Mello, a Corte decidiu que o acesso à educação infantil é prerrogativa constitucional indisponível, cabendo ao Estado o respectivo dever de assegurá-lo, independentemente de avaliações discricionárias ou qualquer pragmatismo governamental[iv].

No entanto, o fato de a questão ter retornado agora ao STF evidencia que a decisão de quase 20 anos atrás não foi suficiente para assegurar a efetivação do direito, e que o Estado brasileiro seguiu negando acesso à educação infantil, tratando-o como serviço discricionário, ao sabor de políticas públicas conjunturais.

Certamente, antigos obstáculos tendem a ser apontados para justificar essa persistente inefetividade na criação e ampliação de vagas em creches e pré-escolas, com destaque para a limitação de recursos financeiros, principalmente, pelos municípios. Porém, como ressaltado pelas Ministras e Ministros do STF, o comando constitucional não é programático, antes, positiva um dever estatal de cumprimento imediato.

O STF destacou, ainda, o longo atraso em que se encontra o Estado brasileiro na efetivação desse direito, haja vista que sua previsão advém da redação original da Constituição de 1988, sem significativas alterações. Na verdade, a anteriormente citada alteração promovida pela EC nº 56/2006 já parece ter sido uma reação a esse cenário de inefetividade, ao buscar prever expressamente que creches e pré-escolas compõem a educação infantil e, portanto, o direito fundamental à educação.

Percebe-se como todo esse percurso aqui recuperado expõe a persistente omissão do Poder Público na criação de creches e pré-escolas, mas, principalmente, a luta contra essa omissão e inefetividade, como vemos na decisão de 2005, na EC de 2006 e na mais recente decisão do Supremo, 17 anos depois daquela.

Com a decisão do STF, torna-se inafastável considerar que a educação infantil também deve ser considerada ensino obrigatório para todas as crianças de 0 a 5 anos. Isso deve servir de parâmetro para condenações judiciais a obrigações de fazer que assegurarem a concretização do direito, como a determinação de construção ou ampliação de escolas ou, emergencialmente, a matrícula na rede particular às expensas do Poder Público.

Em princípio, a decisão no RE 1008166 deve ser aplicada a, pelo menos, 28.826 processos com o mesmo tema, os quais se encontravam sobrestados em outras instâncias aguardando a decisão do STF[v].

Contudo, agora, resta saber se, daqui em diante, e mais uma vez, o Poder Público seguirá se omitindo na concretização desse direito social, negando efetividade ao direito fundamental à educação infantil; se a decisão do STF no exercício da jurisdição constitucional continuará a ser descumprida, sem qualquer efeito, em afronta à autoridade da Corte e da supremacia da Constituição.

Contra essa possibilidade, convém ressaltar a necessidade de também dar efetividade ao art. 208, § 2º, da Constituição, que prevê que “O não-oferecimento do ensino obrigatório pelo Poder Público, ou sua oferta irregular, importa responsabilidade da autoridade competente.”. Esta raríssima previsão constitucional, em que a Lei Maior prevê a responsabilização pessoal e direta do administrador público pela insuficiente prestação de um serviço público, destaca a importância que nossa ordem jurídica dedica à educação.

Que isso sirva de guia e força contra a histórica inefetividade desse direito, para que ele seja para a sociedade tão fundamental quanto o é para a Constituição.     

 

Notas e Referências

[i] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso extraordinário 1008166. Rel.(a): Min. Luiz Fux., j. em 22/09/2022. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5085176. Acesso em: 29 set. 2022.

[ii] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Julgamento sobre acesso a creches e pré-escolas prossegue nesta quinta-feira (22). Notícias, de 21 set. 2022. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=494552&ori=1. Acesso em: 31 out. 2022.

[iii] PLENO - acesso a creches e pré-escolas - 22/9/22. [S. I.: s. n.], 2007. 1 vídeo (1 h e 18 min). Publicado pelo canal STF. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=3PP8yowDEVc. Acesso em: 05 out. 2022.

[iv] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo regimental no recurso extraordinário 410715/SP. Rel.(a): Min. Celso de Mello, j. em 22/11/2005. Disponível em: https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/sjur95128/false. Acesso em: 30 set. 2022.

[v] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Supremo decide que oferta de creche e pré-escola é obrigação do poder público. Notícias, de 22 set. 2022. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=494613&ori=1#:~:text=O%20Supremo%20Tribunal%20Federal%20(STF,de%20regulamenta%C3%A7%C3%A3o%20pelo%20Congresso%20Nacional. Acesso em: 31 out. 2022.

 

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