O STF e o Código Florestal

04/03/2018

Introdução

Em uma perspectiva constitucional da organização do Estado Brasileiro, o poder é dividido entre três órgãos. A Constituição Federal[1] estatuiu no art. 2º que são Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

No exercício do poder, de forma objetiva, cabe ao Poder Executivo a administração da res pública; ao Poder Legislativo, as atividades de legislar e fiscalizar, inclusive com o apoio dos Tribunais de Contas, e ao Poder Judiciário, compete interpretar o direito, solucionando os conflitos sociais.

A partir da premissa de que os órgãos são independentes e harmônicos, a doutrina discute a hipótese da existência de uma hierarquia, mesmo que relativa, entre os três órgãos que exercem o poder em toda a Federação. Via de regra, há um reconhecimento (e não um consenso) de que o Poder Judiciário está acima do Poder Legislativo que está acima do Poder Executivo.

A possível hierarquia perpassa pelas atribuições destinadas pela Constituição Federal a cada um dos órgãos para o exercício do Poder, garantindo o equilíbrio necessário para a consolidação da República e da Democracia. Nesse sentido, coube ao Poder Judiciário a competência de interpretar as leis, elaboradas pelo Poder Legislativo, e de julgar as contendas envolvendo a gestão pública realizada pelo Poder Executivo.

Na exegese do direito, o Poder Judiciário pode apreciar as normas sob o ponto de vista da Constituição, analisando a compatibilidade entre a norma infraconstitucional (Lei Complementar, Lei Ordinária, Medidas Provisórias, etc) e a Constituição. A atividade hermenêutica é denominada de Controle de Constitucionalidade.

Pelo Controle de Constitucionalidade, o Poder Judiciário pode reconhecer a constitucionalidade de uma norma, ou seja, reconhecer a compatibilidade entre a Lei e a Constituição, ou declarar a inconstitucionalidade de uma norma, quer dizer, apregoar que determinada Lei é incompatível com a Constituição e que por tal razão, deve ser expurgada do ordenamento jurídico.

Dentro desse contexto, a Lei Ordinária n.º 12.651/2012, (re)conhecida como código florestal brasileiro, foi submetida ao controle de Constitucionalidade[2] em diversos dispositivos, tendo o Supremo Tribunal Federal - STF concluído o julgamento das ações no dia 28/fevereiro/2018.

O presente artigo pretende destacar alguns dos avanços e os retrocessos do STF no julgamento da constitucionalidade dos dispositivos do código florestal.

Decisão que envolve a compensação ambiental do art. 48, §2º

A redação do §2º do art. 48 da Lei n.º 12.651/2012[3] prevê que o Cadastro de Reserva Ambiental – CRA, pode ser utilizado para compensar Reserva Legal de imóvel rural situado no mesmo bioma da área à qual o título está vinculado, ou seja, a compensação ambiental pode ser realizada no bioma, porém, sem observar a identidade ecológica entre as áreas.

A interpretação do STF reconheceu a constitucionalidade da compensação ambiental no mesmo bioma, porém avançou positivamente e acrescentou que a área cadastrada, para receber a compensação ambiental, além estar situada no mesmo bioma, deve guardar relação de identidade ecológica; quer dizer, deve possuir as condições ecológicas da região, incluindo a compatibilidade com a vegetação.

A decisão do STF respeita o inciso I, do §1º, do art. 225 da Constituição Federal, pois, garante a efetivação da regra de restauração e preservação dos processos ecológicos essenciais. Ao determinar que a compensação ambiental ocorra em área do bioma com identidade ecológica, resguardou-se a fauna e flora dos riscos de extinção

Decisão que envolve a definição da aplicação do conceito de área de utilidade pública

O STF declarou inconstitucional as expressões gestão de resíduos e instalações necessárias à realização de competições esportivas estaduais, nacionais e internacionais, contidas no art. 3º, inciso VIII, alínea “b”, a saber: 

Art. 3o Para os efeitos desta Lei, entende-se por:     

VIII - utilidade pública:

b) as obras de infraestrutura destinadas às concessões e aos serviços públicos de transporte, sistema viário, inclusive aquele necessário aos parcelamentos de solo urbano aprovados pelos Municípios, saneamento, gestão de resíduos, energia, telecomunicações, radiodifusão, instalações necessárias à realização de competições esportivas estaduais, nacionais ou internacionais, bem como mineração, exceto, neste último caso, a extração de areia, argila, saibro e cascalho; (g.n.)

É fato, por exemplo, que hodiernamente, gestores públicos em todo o País utilizam o preceptivo contido no art. 3º para justificar o uso de áreas de interesse ambiental para instalar equipamentos necessários a competições esportivas, sob o argumento de que a atividade possuiria utilidade pública, seja pela valorização do desporto ou seja pela atração turística.    

Na prática, entretanto, ao estabelecer que a gestão de resíduos e as áreas destinadas para instalações necessárias à realização de competições esportivas estaduais, nacionais ou internacionais, deixam de ser consideradas de utilidade pública, o STF acaba por excluir a possibilidade de intervenção e consolidação de equipamentos, ainda que temporários, em áreas de interesse ambiental, por meio do processo de licenciamento ambiental.

A decisão do STF indica um importante avanço no que toca a preocupação com a preservação de ambientes necessários ao equilíbrio ecológico, sobretudo nas Áreas de Preservação Permanente – APP, geralmente atacadas e pressionadas pelo desenvolvimento das cidades, padecendo com a descaracterização, muitas vezes de ordem política ou econômica, sem estudo técnico de alternativas locacionais mais adequadas e menos onerosas ao meio ambiente natural, em razão da necessidade de realizar o atendimento do interesse público por meio de um serviço de utilidade pública.

Decisão que envolve recursos hídricos por meio das nascentes

O STF concedeu interpretação conforme a constituição[4] aos artigos 3º, inciso XVII, e 4º, inciso IV, no sentido de reconhecer como área de preservação permanente os entornos das nascentes e dos olhos d’água, ainda que intermitentes, in verbis

Art. 3o Para os efeitos desta Lei, entende-se por:     

XVII - nascente: afloramento natural do lençol freático que apresenta perenidade e dá início a um curso d’água;

Art. 4o Considera-se Área de Preservação Permanente, em zonas rurais ou urbanas, para os efeitos desta Lei:

IV - as áreas no entorno das nascentes e dos olhos d’água perenes, qualquer que seja sua situação topográfica, no raio mínimo de 50 (cinquenta) metros;  

Com a decisão, o STF fortaleceu a importância da proteção das áreas de preservação permanente. As áreas de preservação permanente, segundo Paulo Affonso Leme Machado[5] são áreas protegidas, cobertas ou não por vegetação nativa, com função ambiental de preserva cursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica e a biodiversidade. Vê-se, que a decisão guardou atenção ao problema relacionado com a crise hídrica, e depois, inovou positivamente ao avançar na proteção das nascentes e dos olhos d’água intermitentes, pois, a redação objetiva ensejava, na pratica, exegese que incluía proteção apenas às nascentes e olhos d’água perenes.

Não é debalde destacar, ainda, que a decisão recoloca em debate a importância do princípio da função social da propriedade privada na proteção das áreas de preservação permanente. O valhacouto não exige a desapropriação das áreas privadas, pois, o abrigo das nascentes e olhos d’água configura ônus social de conservação de determinado bem ambiental.

Decisão que envolve o Programa de Regularização Ambiental e a anistia por crimes ambientais

A Lei Federal n.º 12.651/2012, instituiu o Programa de Regularização Ambiental – PRA. Trata-se de um documento subscrito pelos proprietários rurais, com áreas desmatadas até o ano de 2008, com o objetivo de recuperar, recompor, regenerar ou compensar danos ambientais em áreas de preservação permanente – APP, em áreas reserva legal – RL, e em áreas de uso restrito – UR.  

Como benefício para os proprietários que assinassem e executassem o PRA, o código florestal, pelos dispositivos contidos nos artigos 59 e 60, previu a suspensão das sanções administrativas e penais e, após a comprovação da completa regularização ambiental, a concessão de anistia pelos desmatamentos.

A anistia ambiental desde a edição da Lei Federal n.º 12.651/2012, constitui sinônimo de debate, dividindo opiniões. Na decisão do STF, por um placar apertado, houve a declaração de constitucionalidade dos dispositivos legais, mantendo-se a anistia aos proprietários rurais que desmataram até o dia 22 de julho do ano de 2008.

Permissa venia, versa-se nesse ponto de um retrocesso do STF, cuja decisão desconsiderou o direito de todos ao Meio Ambiente e, por conseguinte, fortaleceu a sensação de impunidade.

Decisão que envolve a redução da reserva legal na Amazônia

O julgamento do STF consolidou, ainda, outro retrocesso ambiental grave. Trata-se da declaração de constitucionalidade do art. 12, inciso I, §4º do código florestal, autorizando a redução da área de reserva legal na Floresta Amazônica. 

Art. 12.  Todo imóvel rural deve manter área com cobertura de vegetação nativa, a título de Reserva Legal, sem prejuízo da aplicação das normas sobre as Áreas de Preservação Permanente, observados os seguintes percentuais mínimos em relação à área do imóvel, excetuados os casos previstos no art. 68 desta Lei:                   

I - localizado na Amazônia Legal:

a) 80% (oitenta por cento), no imóvel situado em área de florestas;

4o Nos casos da alínea ado inciso I, o poder público poderá reduzir a Reserva Legal para até 50% (cinquenta por cento), para fins de recomposição, quando o Município tiver mais de 50% (cinquenta por cento) da área ocupada por unidades de conservação da natureza de domínio público e por terras indígenas homologadas.

Pela resolução, o STF acabou por autorizar o desmatamento na Floresta Amazônica, contrariando o disposto no caput do art. 225 e o §4º da Constituição Federal. A Floresta Amazônica é constitucionalmente considerada um Patrimônio Nacional, sendo que o Estado Brasileiro é responsável por sua preservação ambiental e não pelo seu desmatamento. 

Conclusão

A partir dos exemplos listados acima, é inegável o reconhecimento de que o STF promoveu avanços importantes na preservação dos recursos naturais do Brasil. Porém, ao que se observa, seja pelas contradições na exegese da aplicação de princípios ambientais, seja na divisão de votos entre os Ministros, a consciência jurídica-ambiental da Corte pode progredir.  

 

[1] Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm. Acesso em 28 de fev. 2018.

[2] Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) 42 e das Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) 4901, 4902, 4903 e 4937. Disponível em http://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=370937. Acesso em 01 de mar. 2018.

[3] Art. 48.  A CRA pode ser transferida, onerosa ou gratuitamente, a pessoa física ou a pessoa jurídica de direito público ou privado, mediante termo assinado pelo titular da CRA e pelo adquirente.

§2oA CRA só pode ser utilizada para compensar Reserva Legal de imóvel rural situado no mesmo bioma da área à qual o título está vinculado.

Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12651.htm. Acesso em 01 de mar. 2018. 

[4] A interpretação conforme a Constituição constitui regra hermenêutica de controle de constitucionalidade contida no artigo 28 da Lei Federal n.º 9.868/1999, com poder vinculante e, ainda, com capacidade de afastar qualquer outra interpretação possível para o dispositivo normativo.

[5] MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro. Malheiros, São Paulo, 2013, pg. 870

 

Imagem Ilustrativa do Post: STF // Foto de: Conselho Nacional de Justiça - CNJ // Sem alterações

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