Nos últimos 5 anos o Supremo Tribunal Federal e seus Ministros vêm enfrentando tempos difíceis: desde a ascensão do populismo autoritário, a violência política do 8 de Janeiro, até recentemente as tensões com o Senado Federal, que nesta quarta-feira, 22/11, aprovou a PEC 8/2021. Será o início do fim da supremocracia?

O protagonismo político e social do Supremo Tribunal Federal (STF) é produto de fenômenos da última redemocratização brasileira, notadamente a falta de credibilidade dos poderes políticos e a constitucionalização massiva das relações sociais. O STF passa a tomar, muitas vezes, em única e última instância, decisões sobre questões socialmente controversas que atingem interesses de cunho político, econômico e eleitoral. Tal poder único é intensificado pela ampla discricionariedade e a ausência de critérios interpretativos nos julgamentos do Tribunal (VIEIRA, 2018), além da exposição política e midiática de seus membros.

Porém, nos últimos cinco anos o STF e seus Ministros vêm enfrentando tempos difíceis. Com a ascensão do governo populista autoritário de Jair Bolsonaro o STF entrou num período de enfrentamento com o executivo federal, o qual se acirrou com o início da pandemia, especialmente após o STF ter confirmado que autoridades estaduais, distritais e municipais detinham o poder, no âmbito de suas competências legislativas concorrentes e suplementares, para decidir sobre a imposição de medidas restritivas de combate ao coronavírus.

Ao lado disso, durante a crise sanitária, o STF tomou uma série de decisões no exercício do controle de constitucionalidade, que impediram a tentativa de Bolsonaro de concentrar poderes no executivo federal sobre o gerenciamento da crise com base em visões negacionistas e contrárias às medidas de prevenção estabelecidas pela Organização Mundial da Saúde (MEYER, 2021).

O discurso de Bolsonaro enquanto presidente era baseado na lógica do “inimigo comum” e na violência política contra as instituições da democracia liberal, como o STF, e partidos de esquerda, tidos como estruturalmente corruptos. Seu discurso enfatizava, portanto, o antagonismo entre o “povo” identificado com padrões religiosos e morais tradicionais e a “elite” que reúne intelectuais e agentes públicos que defendem pautas progressistas, como direitos da população LGBTQIA+ e a descriminalização do aborto.

Ao longo do governo Bolsonaro a violência política contra o STF e seus membros se acentuou gradativamente mediante a mobilização de milícias digitais e a propagação massiva de desinformação, inclusive com a utilização de espaços e meios de natureza pública, conforme investigações conduzidas no âmbito do inquérito das fake news relatado pelo Ministro Alexandre de Moraes. O ápice desta onda de violência política foi o 8 de Janeiro em que ataques violentos golpistas foram deflagrados contra os prédios dos três Poderes em Brasília.

Recentemente, após a transição de presidência e a posse da nova legislatura federal, o STF passa a ser desafiado politicamente pelas Casas do Congresso Nacional, notadamente o Senado Federal. Enquanto no STF o julgamento sobre a descriminalização do porte de maconha para uso pessoal está com 5 votos a favor e 1 contra, o Presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, apresentou, em setembro de 2023, Proposta de Emenda Constitucional (PEC) para fins de criminalização do porte ou da posse de droga em qualquer quantidade.

No mesmo mês, dias após o STF ter rejeitado a tese do marco temporal para a demarcação de terras indígenas, o Senado Federal, em votação relâmpago, aprovou o Projeto de Lei 2.903/2023 que implanta a tese do marco temporal. Conforme o artigo 102 §2º da Constituição Federal de 1988 (CF/88) trata-se de atividade legítima em razão da não vinculação do Poder Legislativo, em sua função típica de legislar, às decisões do STF em sede das ações do controle de constitucionalidade abstrato.

O embate entre os poderes sobre o locus legítimo no qual as decisões sobre questões constitucionais de significativa repercussão social devem ser tomadas – Congresso ou STF – não é inédito e faz parte da disputa democrática entre visões conservadores e progressistas. Vale dizer, a tensão atual entre Congresso e STF em nada se assemelha àquela configurada entre o executivo federal e o STF durante a administração Bolsonaro.

Contudo, a recente pauta “pró-direitos” dos últimos meses de presidência da Ministra Rosa Weber, que engloba o julgamento de temas como o marco temporal, a descriminalização do porte de maconha e a descriminalização do aborto até o terceiro mês de gestação, desencadeou outra iniciativa legislativa que vem sendo questionada à luz do princípio da separação dos poderes. É o caso da PEC 8/2021.

No início de outubro de 2023, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado Federal aprovou, em menos de 1 minuto, a PEC 8/2021 que modifica as regras para pedidos de vista, declarações de inconstitucionalidade e concessão de medidas cautelares nos tribunais. Embora a proposta de alteração constitucional tenha como destinatários os tribunais, percebe-se que o alvo é o STF, uma vez que na justificativa há referências reiteradas a esse tribunal. Assim, a PEC possui como principal destaque a limitação de decisões monocráticas do STF e foi proposta em abril de 2021 pelo Senador Oriovisto Guimarães. Após sua aprovação na CCJ, a PEC seguiu para votação no plenário do Senado Federal, onde foi aprovada nesta quarta-feira, 22/11. Foram 52 votos favoráveis e 18 contrários. A PEC segue agora para a Câmara dos Deputados.

A PEC busca alterar os seguintes dispositivos da CF/88: i) o artigo 93, estipulando que os pedidos de vista passarão a ser coletivos, com a limitação temporal de 6 meses e com a possibilidade de renovação de 3 meses, bem como a inclusão automática em pauta para julgamento; ii) o artigo 97, passando a vedar a concessão de decisão monocrática que suspenda a eficácia de lei ou ato normativo com efeitos gerais (erga omnes), ou ato de Chefe de Poder. Excepcionalmente, será permitida decisão monocrática em caso de urgência e risco de dano irreparável durante o período de recesso, em que deverá a questão ser apreciada em até 30 dias após o retorno; e iii) o artigo 102, estabelecendo que, em caso de deferimento de medida cautelar em ações relacionadas ao controle abstrato de constitucionalidade, a ação deverá ter o seu julgamento de mérito em até 6 meses, com pena de inclusão prioritária em comparação aos demais processos. Também será submetida à restrição de decisões monocráticas os julgados que interferirem em políticas públicas com efeitos gerais, suspendam a tramitação de proposição legislativa ou criem despesas para outros Poderes (BRASIL, 2021).

Nota-se que as modificações materiais propostas pretendem restringir o exercício das atividades jurisdicionais, bem como a extensão dos efeitos das decisões dos tribunais, inclusive em sede de controle de constitucionalidade concentrado, o que configura violação à cláusula pétrea da independência entre os poderes (OLIVEIRA, 2023). Porém, a PEC apresenta como justificativa o aperfeiçoamento do processo constitucional brasileiro frente à forma como o STF vem empregando os institutos do pedido de vista e das decisões monocráticas, causa para desequilíbrios institucionais entre os poderes da República.

Tentativas de aperfeiçoamento dos institutos utilizados pelo Judiciário são bem-vindas e, nesse sentido, em dezembro de 2022, o Regimento Interno do STF foi alterado na regulamentação das decisões monocráticas e dos pedidos de vista. Em outras palavras, o STF não é alheio à necessidade de aprimoramento de suas práticas e instrumentos. Inclusive, no que diz respeito aos pedidos de vista, a alteração regimental revela-se mais rígida em comparação à PEC 8/2021 (OLIVEIRA, 2023): enquanto a PEC determina aos pedidos de vista a limitação temporal de 6 meses, com a possibilidade de renovação de 3 meses, o Regimento do STF estipula o prazo máximo de 90 dias para a análise do Ministro, com a liberação automática para julgamento após findo esse prazo. Nesta modificação regimental, foi também estipulado que toda decisão individual, mesmo em caráter de urgência, deve ser apreciada pelos outros Ministros em votação colegiada, o que reduz a natureza individual do voto.

A recente pauta “pró-direitos” é resultado dessa alteração regimental. Como explicado, esta pauta engloba o julgamento de temas que se prolongam há muito tempo no STF, como o marco temporal, a descriminalização do porte de maconha e a descriminalização do aborto até o terceiro mês de gestação. Tais temáticas voltaram à pauta em razão da regra de liberação automática para julgamento após findo o prazo de 90 dias para a análise do pedido de vista. Resta claro, portanto, que se trata de inconformismo por parte dos parlamentares com o resultado das decisões do STF, e não com a forma pela qual o STF vem empregando o instituto do pedido de vista.

De todo modo, o relatório a favor da constitucionalidade da PEC, aprovado pela CCJ, atribui como causas da tensão política entre Congresso e STF os fenômenos da “supremocracia” e da “ministrocracia”, que se trata da versão radicalizada da primeira. A “ministrocracia” traduz o poder assumido individualmente por membros do STF, em razão, entre outros, do crescente emprego de decisões monocráticas (ARGUELHES; RIBEIRO, 2018).

Vale dizer, o STF ao pautar temáticas de repercussão social e moral, questiona-se se essa é uma situação típica de freios e contrapesos – dada a inércia e a omissão do Legislativo e o papel do STF de, a partir do controle de constitucionalidade, pacificar conflitos – ou presencia-se o ascendente ativismo do STF? O cerne de tal conjuntura está, entretanto, na disputa institucional e ideológica entre a parcela significativa conservadora do Congresso Nacional – que objetiva a diminuição dos poderes do STF – e este tribunal em defesa de uma pauta recente afirmativa de direitos fundamentais.

As repercussões institucionais da PEC 8/2021, portanto, advêm de um conflito atinente à lógica da separação de poderes, adicionado às particularidades políticas e sociais do Brasil: uma direita dominante no Poder Legislativo que, debruçada em pautas morais, atua de maneira sistemática em enfrentamento ao progressista STF. A PEC 8/2021 configura exemplo concreto desse embate, que pode resultar em retrocessos à estabilidade das instituições, como também na persistente omissão do Estado em diversas matérias fundamentais aos interesses da sociedade, ainda que contramajoritários. É o caso do julgamento da ADPF 442 relativo à descriminalização do aborto até o terceiro mês de gestação. Em 8 de outubro de 2023 o Ministro Luís Roberto Barroso, atual Presidente do STF, sinalizou ao Legislativo que temas sensíveis à pauta conservadora não serão elencados, como clara tentativa de moderar o quadro de tensão atual (BERGAMO, 2023).

É papel do STF decidir questões controversas que envolvem divergências de visões entre pessoas e instituições. Esse ambiente de discordância é saudável em um regime democrático como o brasileiro. Entretanto, a condução de certos temas e procedimentos do STF ajuda a construção de um clima de desconfiança em torno da própria instituição. Por isso, o STF deve esforçar-se em (re)construir sua imagem de tribunal imparcial, cujos membros, independentemente do resultado de seus julgados, seguem certas práticas e critérios objetivos na sua atividade precípua de interpretar a Constituição (ARGUELHES, 2023).

Esse movimento torna-se de extrema importância à medida que o Legislativo federal vem, nos últimos anos, expandindo suas atribuições sobre o Executivo no tema do orçamento público e, desta vez, pretende com essa PEC, restringir a função do STF de guardião dos direitos fundamentais.

A tensão atual entre Congresso e STF não representa o fim da supremocracia. Isso porque esta advém de escolhas institucionais da ordem constitucional de 1988 (VIEIRA, 2018). De todo modo, a PEC 8/2021 deve servir como sinal de alerta ao STF sobre sua credibilidade junto à sociedade civil, abalada nos últimos anos em decorrência da violência política patrocinada pelo último governo. Conforme a página da Consulta Pública à PEC 8/2021, a grande parte das pessoas que ali se manifestou, apoia a Proposta (BRASIL, 2023). É necessário que o STF se aproxime da sociedade. Naturalmente, enquanto órgão judicial de efetivação de direitos constitucionais, isso não significa que deve passar a decidir conforme a vontade popular.

Porém, deve se transformar em órgão democrático, ou seja, transparente, representativo e inclusivo. O STF vem avançando nesse sentido com projetos de combate à desinformação em parceria com universidades e escolas, além das tentativas de aprimoramento das suas práticas e instrumentos mediante alterações regimentais. No entanto, é necessário avançar mais: estipular padrões e critérios de decisão, promover a previsibilidade das pautas e trabalhar na representatividade do tribunal. Em texto publicado por ocasião dos 35 anos da Constituição de 1988, o Ministro Barroso enfatiza a importância de recomeços, reviravoltas e renovação (BARROSO, 2023). Que essa mensagem alcance o STF na resolução de seus conflitos externos e internos.

 

Notas e referências

ARGUELHES, Diego Werneck; RIBEIRO, Leandro Molhano. “Ministrocracia: O Supremo Tribunal individual e o processo democrático brasileiro”. Novos Estudos CEBRAP, v. 37, 2018, pp. 13‒32.

ARGUELHES, Diego Werneck. O Supremo: entre o direito e a política. Rio de Janeiro: História Real, 2023.

BARROSO, Luís Roberto. “Trinta e cinco anos da Constituição de 1988: as voltas que o mundo dá”. Revista Direitos Fundamentais e Democracia, v. 28, n. 2, 2023, pp. 7‒49.

BERGAMO, Mônica. Barroso diz que aborto precisa de mais debate e não será pautado no STF. Folha de São Paulo. 6 de outubro de 2023. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/monicabergamo/2023/10/barroso-diz-que-aborto-precisa-de-mais-debate-e-nao-sera-pautado-no-stf.shtml. Acesso em: 6 out. 2023.

BRASIL. Senado Federal. Proposta de Emenda à Constituição nº 8 de 2021. Disponível em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/148030. Acesso em: 10 out. 2023.

BRASIL. Senado Federal. Portal e-Cidadania. Proposta de Emenda à Constituição nº 8 de 2021. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/ecidadania/visualizacaomateria?id=148030. Acesso em: 9 out. 2023.

FERES JÚNIOR, João; CAVASSANA, Fernanda; GAGLIARDI, Juliana. Is Jair Bolsonaro a classic populist? Globalizations, v. 20, 2023, pp. 60‒75.

MEYER, Emilio Peluso Neder. Constitutional Erosion in Brazil. Oxford: Hart, 2021.

OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni de. A inconstitucionalidade da PEC 8/2021: o ataque institucional ao Supremo Tribunal Federal. Empório do Direito. 10 de outubro de 2023. Disponível em: http://emporiododireito.com.br/leitura/a-inconstitucionalidade-da-pec-8-2021-o-ataque-institucional-ao-supremo-tribunal-federal. Acesso em: 10 out. 2023.

VIEIRA, Oscar Vilhena. A batalha dos poderes: da transição democrática ao mal-estar constitucional. 3. Ed. São Paulo: Companhia

 

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