O SOL DA JUSTIÇA PARA TODOS

17/07/2018

QUANDO O SOL BATER NA JANELA DO TEU QUARTO[1]

Quando o sol bater na janela do teu quarto

Lembra e vê que o caminho é um só

 

Por que esperar se podemos começar

tudo de novo, agora mesmo?

A humanidade é desumana

Mas ainda temos chance

O sol nasce pra todos

Só não sabe quem não quer

 

Até bem pouco tempo atrás

Poderíamos mudar o mundo

Quem roubou nossa coragem?

 

Tudo é dor e toda dor vem do desejo de não sentirmos dor.

 

Quando o sol bater na janela do teu quarto

Lembra e vê que o caminho é um só.

 

Nos versos da banda mais emblemática do rock brasiliense na década de 80, Legião Urbana, o sol simboliza o direito à igualdade. Todos são iguais porque “o sol nasce pra todos[2]. Não há uma classe de privilegiados eleitos pelo sol para receber sua luz e seu calor. Esta é uma afirmação objetiva. Ela refere-se a um fato real, inequívoco e verdadeiro. Entretanto, o poeta afirma que acerca desta realidade objetiva “só não sabe quem não quer”.

Ora, diante da realidade inafastável de que o “sol nasce pra todos”, é possível que, subjetivamente, não nos tornemos receptivos a ela. Não basta que, de fato, o sol brilhe para todos, é necessário que reconheçamos esta verdade e a aceitemos, a fim de que seja verdade também para nós e em nós. Em outras palavras, é possível que sejamos “salvos” todos os dias pelo brilho vivificante do sol nascente - sem o qual o planeta seria gélido e a vida seria impossível; porém, ainda assim, rejeitemos esta condição sine qua non para viver, por alguma razão que foge aos limites da vida psíquica saudável. E mais que isto: é possível que não desejemos admitir que ele brilhe sobre bons e maus, justos e injustos, ricos e pobres, brancos, pretos e amarelos, nos tornando testemunha ocular de uma multifacetada, multicolorida e plural realidade. O sol é uma escandalosa afirmação das diferenças.[3]

A partir da conscientização individual de que o sol abrange radicalmente e totalmente a todos com seu brilho torna-se possível que cada um, impactado pela chegada da luz do sol na janela do seu quarto, saia para realizar algo em comum, pois “o caminho é um só”. Nos versos “por que esperar se podemos começar tudo de novo agora mesmo?”, fica evidente que há um trabalho a ser feito, uma tarefa que é cobrada aos jovens. Isso porque foram eles, os jovens, que protagonizaram a maior revolução cultural do século XX[4].

A tarefa que cabe ao jovem é uma tarefa positiva, humanizadora, pois “a humanidade é desumana, mas ainda temos chance”. A presença da conjunção adversativa “mas” indica, nestes versos, que há uma oposição entre “humanidade desumana” e “ainda temos chance”. O que fundamenta a certeza do poeta é justamente a convicção de que não há uma aporia, um beco sem saída cósmico contra a liberdade humana e contra os jovens em particular, pois, efetivamente, “o sol nasce pra todos”.

Todavia, resta também a certeza de que o obstáculo a esta tão nobre tarefa de poder “mudar o mundo”, é de ordem subjetiva, está no centro de suas emoções, depende, portanto, do seu “querer”. Aqui a verdade também liberta, ela é condição suficiente, dentro não do necessário, mas do possível, para que o jovem possa mudar o mundo. Faz-se necessário, porém, que ele continue tornando-se livre, libertando-se. Mas, pergunta o poeta: Quem roubou nossa coragem?”

Em 1989, quando esta canção foi publicada, havia quase três décadas após os chamados anos 60 em que, de fato, o jovem assumiu a posição subjetiva de ser o “tomador de decisão” em relação ao seu próprio destino. Agora, o Brasil estava se redemocratizando após mais de duas décadas de ditadura militar. Aquela efervescência cultural e política de resistência ao regime e que acompanhou todo o processo de abertura “lenta e gradual”, até 1985, quando o último general deu lugar para o então recém-eleito candidato pelo colégio eleitoral, Tancredo Neves, depois substituído pelo vice-presidente, José Sarney; tinha dado lugar a um comodismo por parte do jovem que parecia estar ocupado demais reaprendendo a viver a própria vida no âmbito privado de seu quarto.

Por outro lado, o poeta afirma: “tudo é dor e toda dor vem do desejo de não sentirmos dor”. Nosso conhecimento de mundo reconhece nesses versos um princípio budista pelo qual “a vida é dor” porque o homem não consegue parar de desejar. Cessando o desejo, cessa-se também a dor.

À primeira impressão, esses versos estariam em contradição com o chamado inicial do poeta conclamando os jovens para voltar às ruas e mudar o mundo, pois se “tudo é dor” e sua causa é o desejo, o jovem não teria porque atender ao chamado, pois isto implicaria querer mudar o mundo novamente. Portanto, numa interpretação sistemática do texto, somos obrigados a descartar esta leitura determinista e fatalista do mundo que o texto não apresenta, e fazer uma redescrição desses versos que leve em conta o texto integral, superando uma aparente contradição entre a parte e o todo.

Ao afirmar que o desejo é causa da dor parece-nos razoável supor que para o poeta, “tudo é dor” não é equivalente a “a vida é dor”, em sentido genérico e metafísico, como a dizer que na vida não há alegria ou prazer, mas, que, pelo contrário, a dor existente decorre dos feitos da humanidade que é “desumana” e que estes têm como causa o “desejo” que produz a covardia: “quem roubou nossa coragem?

E não só a covardia, mas também a cegueira autoinfligida, pois ele diz que é possível ver que “o caminho é um só”. Por isso “só não sabe quem não quer”. Para tanto, o jovem só precisa lembrar. É preciso trazer à memória aquilo que nos dá esperança. É isto que tirará o jovem do quarto e leva-lo-á às ruas novamente, onde o sol brilha para todos e, por isso, cabe a eles mudar o mundo.

Há, nesta canção, uma concepção de liberdade que consiste em “pôr-se a caminho”, pois a liberdade é construída pelo próprio jovem quando deseja ser livre. Talvez, ele precise perguntar a si mesmo; “Por onde andei? Qual é minha história e minha herança? O que posso aprender com os que vieram antes de mim? Enquanto isso, encontra outros num caminho único onde a busca da liberdade é também o processo de sua libertação em relação a tudo que prende e oprime, sejam forças políticas (partidos políticos), ideológicas (doutrinas, dogmas, preconceitos, etc.) espirituais ou químicas (drogas lícitas e ilícitas).

 

Notas e Referências

LEE, Harper. O Sol é para todos. Trad. Beatriz Horta. 6ª ed. Rio de Janeiro: José Olímpio, 2015.

RUSSO, R.; BONFÁ, M.; VILA-LOBOS, D. “Quando o sol bater na janela do teu quarto”. In: LEGIÃO URBANA. As Quatro Estações. EMI, 1989.

VENTURA ZUENIR. 1968: o ano que não terminou. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1988.

[1] Renato Russo, Marcelo Bonfá e Dado Vila-Lobos. As Quatro Estações. EMI, 1989.

[2] A letra nos remete inevitavelmente ao título de um best-seller norte-americano, da escritora Harper Lee, To kill a Mockingboard, que no Brasil, recebeu o título de O Sol é para Todos, romance que narra a saga do advogado Atticus Finch, o qual sofre preconceito  por defender o caso de seu cliente negro, Tom Robson, acusado injustamente de estuprar uma garota branca, numa sociedade racista e preconceituosa do sul dos Estados Unidos, nas primeiras décadas do século XX.

[3] O sol é eticamente daltônico, como já dizia Caetano Veloso: “o meu coração é o sol, pai de toda cor”.

[4] Ler 1968 – O Ano que não terminou, do jornalista e escritor Zuenir Ventura.

 

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