Por Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth - 13/06/2015
O minimalismo penal é uma postura teórica que pode ser dividida em duas correntes: o minimalismo pragmático e o minimalismo teórico. O primeiro pode ser compreendido como uma variante do pensamento penal dominante, e nasce marcado pela ideologia da defesa social ao defender – a partir de uma perspectiva reformista e eficientista sem pretensão teórica de longo alcance – a intervenção mínima por meio da descriminalização de comportamentos, recuperando os limites do direito penal de cariz liberal e, particularmente, a redução da pena de prisão e sua substituição por medidas alternativas. Já o minimalismo teórico se desenvolve como uma perspectiva radical de contestação da ideologia penal oficial, negando legitimidade aos sistemas penais contemporâneos e propondo uma alternativa mínima que considera como “mal necessário”.
É justamente no contexto do minimalismo teórico que se insere a proposta do garantismo penal defendida por Luigi Ferrajoli. Opondo-se ao abolicionismo penal, Ferrajoli aduz que a supressão do sistema punitivo conduziria a uma espécie de anarquia punitiva regida pela “lei do mais forte”, bem como ensejaria a emergência de mecanismos de controle social das condutas humanas extremamente lesivos às liberdades individuais. Ao invés de ressaltar tão somente os custos do sistema punitivo, Ferrajoli destaca também os custos relacionados aos problemas decorrentes da sua abolição.
Por outro lado, no que diz respeito às teorias clássicas de legitimação da pena e do sistema penal, Ferrajoli salienta que elas se prestam à construção de modelos de Direito Penal máximo, marcados por um alto índice de lesividade aos direitos fundamentais.
Em virtude disso, coloca-se Ferrajoli em uma posição intermediária entre aqueles que defendem a hipertrofia e a abolição do Direito Penal, uma vez que entende que a pena, além da prevenção de delitos, também tem por função evitar os castigos excessivos e/ou arbitrários que seriam impostos ao réu na sua ausência. Nesse sentido, a prevenção de novos delitos corresponde à tutela da maioria não desviada, ao passo que a prevenção de penas excessivas corresponde à tutela da minoria desviada em face do arbítrio punitivo que contra ela se manifestaria – a partir da vingança do ofendido ou de forças sociais ou institucionais a ele solidárias. Dessa forma, Ferrajoli recorre a um segundo parâmetro utilitário da pena, que, além de proporcionar o máximo de bem-estar possível aos não desviados, também tem por função proporcionar o mínimo mal-estar necessário aos desviados. Ou seja: para além dos interesses da sociedade, também se volta a pena à defesa dos interesses do réu, uma vez que ela não se presta somente para prevenir a prática de delitos, mas também para evitar punições arbitrárias e/ou injustas (FERRAJOLI, 2002).
Nesta dupla função atribuída por Ferrajoli à pena, os seus limites mínimo e máximo representariam, respectivamente, as funções de prevenção geral do delito e de prevenção geral da vingança. Em relação ao limite mínimo da pena, aduz o autor (2002, p. 321) que “a vantagem do delito não deve superar a desvantagem da pena: se não fosse assim, efetivamente, a pena seria muito mais um tributo, e não cumpriria nenhuma função dissuasória.” Já no que tange ao seu limite máximo, refere que a pena “não deve superar a violência informal que na sua ausência sofreria o réu pela parte ofendida ou por outras forças mais ou menos organizadas.” (FERRAJOLI, 2002, p. 322). Nesse sentido, “é injustificado um limite mínimo que anule a eficácia preventiva da pena em relação aos delitos; mas também é injustificado um limite máximo que anule a justificação em relação aos maiores castigos informais prevenidos pela mesma.” (FERRAJOLI, 2002, p. 323).
Na proposta de Ferrajoli, portanto, a pena “vem ameaçada e infligida não apenas ne peccetur, mas também ne punietur. Tutela não apenas a pessoa do ofendido, mas, do mesmo modo, o delinquente contra reações informais, públicas ou privadas.” (FERRAJOLI, 2002, p. 268). Isto porque, do ponto de vista histórico, o direito penal nasce não como desenvolvimento, mas como negação da vingança, justificando-se não com o propósito de garanti-la, mas sim de impedi-la.
Na perspectiva de Ferrajoli, portanto, a pena “seria um instrumento político de negação da vingança; um limite ao poder punitivo; o mal menor em relação às possibilidades vindicativas que se produziriam na sua inexistência.” (CARVALHO, 2003, p. 150). Assim, a função do Direito Penal enquanto óbice às penas arbitrárias ou desmedidas deve se sobrepor, segundo Ferrajoli, à sua função preventiva geral de delitos, isto por quatro motivos: em primeiro lugar, por duvidar o autor do poder de prevenção geral de delitos a partir do Direito Penal, dadas as inúmeras razões de ordem social, psicológica, cultural, etc, que conduzem ao delito, não neutralizáveis apenas com a imposição de uma pena; em segundo, porque entende que a prevenção das penas arbitrárias e a defesa das garantias dos acusados é a função mais idônea desempenhada pela pena, razão pela qual deveriam passar a fazer parte da pauta do legislador, historicamente preocupado tão somente com a idéia de defesa social; em terceiro, porque acredita que somente a partir do privilégio desta função é que será viabilizada a construção de um Direito Penal mínimo e garantidor; e, por fim, porque entende que através do destaque a esta função é que se viabiliza a diferenciação do Direito Penal em relação a outras formas de controle social (do tipo policialesco e terrorista, por exemplo) (FERRAJOLI, 2002).
Em suma, o que Ferrajoli busca, a partir da sua proposta duplamente preventiva do Direito Penal – por ele denominada de utilitarismo penal reformado – é a redução da violência na sociedade, seja aquela ocasionada pelo delito, seja aquela desencadeada a partir da reação vindicativa do ofendido ou das pessoas a ele solidárias (por exemplo, seus familiares) contra o réu. Ferrajoli refuta, assim, explicitamente – ao contrário da postura teórica defendida na contemporaneidade por Günther Jakobs – qualquer estado de guerra, eis que seu modelo de Direito Penal estrutura-se na tolerância que, a seu ver, exclui a guerra e a sua lógica amigo/inimigo, porque reconhece o outro como valor, não como meio mas como fim, em uma palavra como ‘pessoa’, não apenas que não deva ser combatida ou repelida, mas respeitada, não apesar de, mas justamente porque é, diversa.
Destarte, para Ferrajoli, a atuação do sistema penal apenas se justifica quando o conjunto das violências por ele efetivamente prevenidas é superior à soma das violências decorrentes dos delitos por ele não prevenidos e das penas a estes cominadas. Ou seja, o sistema penal só se justifica na medida em que constitui um mal menor do que aquele que seria produzido na sua ausência. Daí a necessidade de o Direito Penal que lhe dá sustentação ser ao mesmo tempo mínimo e garantidor (FERRAJOLI, 2002).
Ferrajoli (2002, p. 276) também destaca a necessidade de instauração de garantias jurídico-sociais de vida e de sobrevivência, idôneas a remover as raízes estruturais da desviação de subsistência, pela eliminação dos fenômenos de desagregação e de marginalização social de que se alimentam as subculturas criminais, pelo desenvolvimento da democracia e da transparência dos poderes públicos e privados, cujo caráter oculto e incontrolado está na origem de grande parte da atual criminalidade econômica e administrativa.
Em suma: devem ser privilegiadas as intervenções etiológicas e não somente sintomatológicas do delito, através de políticas sociais que, ao promoverem a integração social de todos, criem condições para se evitar os processos de degradação e de marginalização do ser humano. Neste sentido, o Direito Penal, da forma como preconizado por Ferrajoli, também faz parte de um programa de justiça social.
Notas e Referências: CARVALHO, Salo de. Pena e garantias. 2. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Vários Tradutores. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.
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Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth é Doutor em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS (2014). Mestre em Direito pela UNISINOS (2010). Pós-graduado em Direito Penal e Direito Processual Penal pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul - UNIJUÍ (2008). Graduado em Direito pela UNIJUÍ (2006). Professor do Curso de Mestrado em Direitos Humanos da UNIJUÍ. Professor dos Cursos de Graduação em Direito da UNIJUÍ e da UNISINOS.
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