O ser e o estar: o problema ontológico do nada  

05/05/2019

 

A Filosofia trata do ser, do conhecimento racional do mundo e seu funcionamento, de modo que o conceito de nada deve ser entendido apenas pedagogicamente, com fins dialéticos, de comparação conceitual para a melhor definição dos termos em análise, o ser e o estar, enquanto não ser, que seria o nada.

Na medida em que existimos, discorrer sobre o nada é abstrair o pensamento da realidade, transpondo o argumento para o plano da pura imaginação, e, ainda assim, ao se pensar em nada não se está pensando no nada propriamente dito, mas em um conceito, uma palavra, uma ideia, e mesmo na improvável hipótese de se conseguir efetivamente não pensar em nada, como na meditação oriental, ainda assim esse nada não é o próprio nada, pois a pessoa não deixa de existir nesse momento, permanecendo com sua existência física, sem um foco de atenção no pensamento, o que certamente não é equivalente ao nada.

Desde os primórdios da Filosofia, sem desprezar o fato de que se tenha cogitado do vácuo como um espaço vazio, não era de nada que se falava, mas de espaço, que nada não é, porque o nada seria conceitualmente um não espaço em um não tempo. Os pré-socráticos entendiam que tudo era água, terra, fogo ou ar se transformando e se modificando no espaço sem esses elementos, de modo que o princípio da Filosofia está atrelado ao que permanece para além das mudanças do mundo; as ideias, pelo platonismo.

Assim, a Filosofia é o estudo do ser, daquilo que é, em comparação com aquilo que está, porque provisório e apenas aparente. Na língua portuguesa, conceitualmente, é relativamente fácil entender a diferença ontológica entre o ser, o que é, e o estar, o que está, porque nos significados dos substantivos formados dos respectivos verbos, por derivação imprópria, já estão presentes as qualidades de eternidade do ser e de provisoriedade do estar. O ser, ontologicamente, foi, é e será; enquanto o estar, por definição, apenas está, podendo ou não ter estado antes, ou continuar a estar depois.

Pela Teologia, o mundo foi criado pelo Deus único, e apesar de alguns entenderem que essa criação ocorreu a partir do nada, pela criação ex nihilo, existe uma contradição lógica nessa ideia, conforme expressão ex nihilo nihil fit, significando que nada surge do nada. Em nossa experiência ordinária as coisas não surgem do nada. Há na física o princípio da conservação da energia, além do brocardo segundo o qual na natureza nada se cria, tudo se transforma. Mesmo no texto sagrado não é dito que Deus criou tudo a partir do nada, pois a Bíblia informa que “no princípio criou Deus céus e terra”, sem que seja informado que a criação tenha sido feita do nada.

Uma boa interpretação teológica pode ser feita da carta aos Hebreus, para entender que o mundo visível surge de um mundo invisível, e não do nada: “Por isso é que o mundo visível não tem sua origem em coisas manifestas” (Hb 11, 3). É possível que haja coisas que somente se tornam visíveis, manifestas ou sensíveis depois de determinados procedimentos ou da aquisição de qualidades especiais necessárias para a percepção dessa realidade mais sutil, até então invisível, mas já existente.

Na física moderna, nesse mesmo sentido, o nada não é uma nulidade existencial, mas o chamado vácuo quântico, prenhe de energia, permeado de campos eletromagnéticos e gravitacionais que originam partículas decorrentes da flutuação energética desses campos, realidade que era desconhecida até pouco tempo. Portanto, também na física o conceito de nada não está associado ao de uma nulidade absoluta.

Em termos filológicos e conceituais, há a ontologia e a fenomenologia, e mesmo o existencialismo, em que o pressuposto lógico indispensável é a existência de algo, o ser, o fenômeno ou o existente, sendo o nada uma hipótese não comprovada científica, filosófica ou teologicamente.

Na Teologia, o argumento óbvio para refutar a ideia de uma criação a partir do nada está no fato pressuposto de que Deus estava presente antes da criação do mundo, porque dentre os atributos divinos está a onipresença, e uma vez que “oni” é um prefixo latino que significa “todo”, pelo que onipresente é o que está em todos os lugares e tempos, em todas as partes, ubíquo, o conceito de nada é incompatível com o de Deus, sendo apenas uma palavra com significado meramente lógico, instrumental, com existência mental e não sensível, de modo que não se pode dizer logicamente que a criação ocorreu a partir do nada, e por isso a mente de Deus, e não o nada, é a substância da criação do mundo. Assim, há que se concordar com Aristóteles no sentido de pressupor uma causa primeira, que não é o nada, muito antes, pelo contrário, tudo, Deus, como origem cósmica.

Portanto, como a Filosofia trata do ser, a grande questão filosófica é entender o ser, o que permanece além do estar, na linha dos gregos, que buscavam o que permanecia além das mudanças ocorridas no tempo: a água, o fogo, a terra, o ar, o átomo, a ideia. No Cristianismo, o ser está associado ao Logos, que estava no princípio, e permanece, transcendendo os momentos que perecem no fluir do tempo.

Na realidade, o Cristianismo significa que podemos realizar no tempo, em nossos estados de vida, a eternidade do ser, podemos encarnar o Logos, podemos expressar o próprio ser nesse mundo perecível e mutável, nesse corpo mortal podemos manifestar, ainda que em parte, a realidade eterna, a própria Vida, seguindo o método científico, ou Caminho, o exemplo de Jesus, o Cristo. Cristianismo significa estar no ser, conduzir o estado ao ser, manifestar a todo momento a realidade eterna, que é o Logos, ou o ser.

Outrossim, nessa linha argumentativa, da mesma forma que o nada não existe, também o conceito de morte deve ser reconsiderado, quanto à ideia de término existencial, pois assim como o nada a nada precede, do mesmo modo, a nada sucede. Tudo o que existe tem uma origem e uma sucessão, e todas as coisas e pessoas que entram na existência passam, de algum modo, para a eternidade, que logicamente engloba tudo o que existe, já existiu e existirá.

Todas as pessoas que passaram por esse planeta legaram aqui uma marca permanente, seja em termos de uma frequência eletromagnética única, como ocorre com os genes, com as digitais e com a unicidade dos olhos, isso em termos físicos, sem falar na continuidade causal dos eventos no próprio movimento material do mundo, do nível quântico ao galático, ou nas memórias das pessoas que permanecem vivas, até, finalmente, no próprio registro deixado no tecido cósmico, eternamente presente no Espírito de Deus, no Logos.

Dessa forma, o nada apenas pode ser filosoficamente compreendido como o que está mas não permanecerá, em contraposição com o que está manifestando aquilo que permanece. O que está tem uma ligação com o ser, devendo associar-se ao ser para persistir, porque o mero estar, em sua provisoriedade, é não ser ou, logicamente, e não existencialmente, nada, estar como cessação de ser, fadado a não durar.

A existência tem, pois, sua essência, enquanto permanência, como aquilo que continua, como a ideia ou relação existencial com tudo mais que existe, já existiu e ainda existirá, na cadeia do ser em sua unidade real e lógica. Toda existência está ligada ao ser que era e será e que inclui toda forma existencial e toda possibilidade de estar, tanto a que potencialmente permanecerá quanto a que não terá continuidade.

O estar pode se prolongar no tempo, sem que isso o transforme em ser, mas quanto maior sua permanência existencial, maior sua realidade, enquanto adequação ontológica ao ser. O estar é uma realidade imediata transitória, presente aqui e agora, que somente pode ser compreendida por uma realidade imediata contínua, sendo assim, o estar é mediado pela razão imediata permanente, pelo Logos, pela ideia, que permanece além daquele momento, em si transitório.

O estar é uma realidade imediata provisória que depende de uma realidade imediata permanente para continuar a existir, seja material ou intelectualmente. A ciência histórica, o que vale para a cosmologia, busca na realidade imediata provisória, com maior ou menor duração no tempo, a realidade imediata permanente presente no objeto de estudo passado, transportando a realidade imediata permanente intelectualmente para o passado para recriar mentalmente a realidade imediata transitória que deixou de existir materialmente, mas que continua com sua existência intelectual ou essencial, pela memória deixada no tecido cósmico, que pode ser lembrada com mais ou menos detalhes dependendo dos instrumentos e meios utilizados.

Portanto, não se pode falar em nada ou não existência, estando o absoluto não ser afastado racionalmente de nossa capacidade compreensiva, de modo que tudo o que existe e já existiu continua a existir em um nível mais sutil da realidade, como ocorre com todas as coisas que pensamos, que passam automaticamente a existir, pelo menos mentalmente, em uma realidade invisível, assim que pensadas.

O nada, ontologicamente falando, outrossim, não existe, podendo-se concluir que a realidade última é o ser, que já era quando passamos a estar no mundo, e continuará a ser após o fim do nosso estado corporal, estado esse que logicamente já estava presente naquele ser, no mínimo como uma potencialidade, e continuará existindo e produzindo efeitos no mesmo ser, que era, é e será, incluindo todos os seus estados, presentes, pretéritos e futuros, já ou não, ainda ou não, visíveis ou invisíveis.

O ser, portanto, é a realidade primeira e última, que é imediata e mediada por seus momentos, que são imediatos e mediados por aquele ser, pelo Logos, por Deus. O ser é o próprio ser em seu devir, em seus estados imediatos, que não são se não forem mediados pela eternidade do ser.

Essa realidade, em termos humanos, é Cristo, que em todos os seus momentos de vida encarnou a eternidade do ser, transpondo o Logos do plano espiritual para o mundo material, como semente que ainda se espalha pelo mundo até sua realização no tempo oportuno, em que toda humanidade entenderá a necessidade de ser o que é, estando permanentemente como deve ser.

Tal foi a realização do ser ocorrida em Jesus que seu estar, que era ser, logo se mostrou como ser, na ressurreição, superando o estado de morte, que é não ser, e alcançando a plenitude do ser.

Ele é o Princípio, o Primogênito dos mortos, (tendo em tudo a primazia), pois nele aprouve a Deus fazer habitar toda a Plenitude e reconciliar por ele e para ele todos os seres, os da terra e os dos céus, realizando a paz pelo sangue da sua cruz” (Cl 1, 18-20).

Pois nele habita corporalmente toda a plenitude da divindade e nele fostes levados à plenitude” (Cl 2, 9-10).

 

 

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