Por Atahualpa Fernandez - 15/06/2015
“La sola visión del dolor ajeno materialmente me duele, y a menudo usurpo las sensaciones de otra persona. Una tos persistente en otro me irrita los pulmones y la garganta.”
Montaigne
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Nem Darwin nem os neodarwinistas puderam explicá-lo. A sociobiologia logrou fazê-lo através de modelos como os da seleção de grupo e de parentesco. É duvidosa a aplicação destes modelos ao caso humano, mas ao que me referia é a maneira particular de como os membros de nossa espécie satisfazem seus desejos: não somente mediante uma maximização dos interesses pessoais.
É este o terreno em que aparece a conexão mais profunda entre natureza humana e comportamento moral, esta mesma que se busca para oferecer uma fundamentação naturalista da moral e do direito. Quero dizer: Somos realmente preferidores racionais dispostos a maximizar nossos interesses de acordo com nossas crenças e nossos desejos?
A teoria dos jogos, a neurociência cognitiva e a primatologia já proporcionaram os primeiros indícios acerca de se esta ideia da natureza humana como própria de um preferidor racional é acertada.
A intuição acerca de nosso comportamento racional fundamentou boa parte dos estudos tanto científicos como humanísticos acerca do ser humano, incluindo a maior parte da economia neoclássica. Nada obstante, fenômenos como o do castigo altruísta põe em duvida a premissa de nossa racionalidade perfeita. A teoria dos jogos já estudou a fundo os possíveis modelos de castigo altruísta (E. Fehr & S. Gächter) — mediante o jogo do ultimatum, por exemplo – e algumas investigações neurocientíficas já indicaram os processos cognitivos implicados e os possíveis circuitos neuronais que subjazem à capacidade de aprender normas, de segui-las e de tratar de impô-las mediante o castigo altruísta (J. W. Buckholtz & R. Marois). Também sabemos algo acerca da maneira como outros primatas se comportam neste domínio. Por exemplo, os monos capuchinos são, igual que os humanos, castigadores altruístas (S. Brosnan & F. De Waal). Os chimpanzés, não; se comportam como preferidores racionais - a maximização de seus interesses impede que aceitem esse tipo de perda (K. Jensen, J. Call & M. Tomasello).
O que significa ao menos três coisas: 1) que não sabemos qual pode ter sido o traço fixado antes: ou bem a linhagem comum a capuchinos + chimpanzés + humanos tem como traço primitivo o do castigo altruísta, com os chimpanzés desenvolvendo uma apomorfia de preferência racional, ou bem o traço primitivo é esta racionalidade firme, com o que os comportamentos de castigo altruísta de capuchinos e humanos são homoplasias, traços fixados de maneira independente; 2) que nosso grupo irmão, a linhagem animal mais próximo evolutivamente aos seres humanos, difere neste aspecto, quer dizer, a cooperação humana é espetacularmente diferente em comparação com a cooperação nas demais espécies porque os seres humanos exibem padrões únicos de altruísmo, tais como o castigo altruísta decorrente das violações das normas que ajudam a manter a cooperação em benefício das normas sociais; 3) a evidência experimental indica que a mera possibilidade de aplicar uma penalização é uma forma eficaz de incrementar a cooperação - esta prospera se o castigo altruísta é possível e deixa de funcionar se é eliminado.
A diferença é importante porque, da mão do castigo altruísta (um dos elementos mais inquietantes de nossa forma de comportar-nos), o que aparece em realidade é a evidência de que os seres humanos se inclinam por natureza a castigar a injustiça, quer dizer, de que a disposição das pessoas para castigar aos indivíduos que mentem, enganam, roubam ou violam as normas sociais (morais ou jurídicas), inclusive quando não tenham sofrido nenhum dano ou se beneficiado pessoalmente, é tão inato que o exercitamos como parte de nossa biologia, um comportamento característico do ser humano. Dito de outro modo, certas bases cerebrais nos fazem atuar de uma determinada forma não por causa de um (provável) livre-arbítrio ou por pura racionalidade, senão seguindo pautas que foram fixadas durante o processo de evolução de nossa espécie. Se estamos dispostos a sacrificar uma parte de nosso patrimônio com tal de que a equidade se imponha, isso implica que nossos instintos morais e sociais contêm essa particular maneira de fazer-nos sentir bem. É esse sentido da justiça o que subjaz à ideia de John Rawls acerca da capacidade para lograr compromissos por meio do véu da ignorância, propondo em termos de justiça universal e não de interesses particulares as regras do jogo.
Mas há algo mais. Para o problema aqui abordado, a tarefa mais urgente e importante seria a de poder indicar que universais éticos confluem no direito a partir da seleção natural. E aqui entra em jogo a questão do determinismo, um dos problemas mais amplamente debatidos na história da filosofia. Estamos inevitavelmente determinados pelas condições de nossa natureza, nossa educação e/ou nosso entorno social? Seriam nossos valores, desejos, crenças e ações predizíveis por parte de alguém que conhecera por completo nossas características psicológicas? Somos máquinas biológicas completamente programadas por nossos genes? Como vemos, as implicações são de natureza ética, jurídica, social, política, psicológica, biológica, metafísica…
Convém, antes de adentrar por este caminho, entender de que estou falando, pois se corre o perigo de confundir as propostas naturalistas. Algo assim sucedeu quando a sociobiologia, desenvolvida por Edward Wilson, propôs afastar a ética da mão dos filósofos e situá-la na dos biólogos. A obra posterior de Wilson está repleta de propostas filosóficas que se sustentam mal à luz dos conhecimentos científicos. Por exemplo, ao utilizar o comportamento altruísta dos insetos sociais como modelo para entender a moralidade humana, Wilson cometeu o erro de confundir o que é provável que não sejam senão uma homoplasia (um traço só em aparência similar, fixado por separado em duas linhagens distintas sem relação genética entre elas), concebendo-a como uma plesiomorfia (um traço que se comparte porque o fixou um antepassado comum). Na medida em que o sistema altruísta de térmitas, formigas, vespas e abelhas está completamente determinado, cabe entender as barbaridades que se derivam de trasladar esse esquema à ética humana.
Qual é então, se há algum, o alcance da determinação genética que preside a moralidade humana?
A estas alturas é pertinente levar a cabo uma precisão na análise da conduta moral. A distinção entre motivo para atuar e critério aplicado a qualquer ação à hora de qualificá-la moralmente é muito comum na literatura especializada anglo-saxônica (C. J. Cela Conde), apesar de ser ignorada no âmbito filosófico-jurídico alheio a esta tradição. Cabe ignorá-la se qualquer âmago de fundamentação naturalista da moral se rechaça de antemão ao considerar-se determinista.
Mas resulta tão necessário como óbvio indicar, já que este suposto determinismo dista muito de ligar de maneira necessária a possessão de certas características próprias da espécie e toda conduta relacionada com o juízo moral. Nenhum sujeito tem por que ajustar-se, à hora de comportar-se, a suas crenças acerca do bem e do mal. É de todo possível crer, por exemplo, que um indivíduo está obrigado a prestar ajuda a uma pessoa assaltada por delinquentes e, por medo às consequências, abster-se de fazê-lo.
De não ser assim, de atuar sempre em consonância com nossos critérios éticos, não existiria o remordimento. Pois bem, os universais que se podem deduzir da natureza humana se referem tanto às motivações como à estrutura do juízo moral, à maneira como se propõe o juízo ético, e não a seu conteúdo (C. J. Cela-Conde & F. J. Ayala). A condição de ser moral implica não em seguir certas regras, senão em utilizá-las como critério ou cálculo para julgar condutas. Charles Darwin utilizou o conceito ilustrado de moral sense para descrever este traço humano distintivo, e nos atribuiu em exclusiva. Se bem outros animais poderiam chegar, com a evolução de suas faculdades cognitivas, a alcançá-lo, nenhum dispõe dele. Somos sentimento moral por natureza e, graças a ele, valoramos, apreciamos e levamos a cabo condutas que correspondem à possessão de certos valores compartidos. Mas não o fazemos de maneira automática.
Até aqui, poucos filósofos e juristas dispostos a discutir os termos naturalistas poderiam encontrar algum argumento para descartar a teoria darwiniana, sobretudo no que se refere aos seguintes pontos: i) a moralidade é um repertório evolutivo de mecanismos cognitivos e emocionais com distintos componentes biológicos, entanto são modificados pela experiência adquirida ao longo da vida humana; ii) a moralidade não é um domínio exclusivo do Homo sapiens - existem evidências significativas na literatura científica sobre diferentes espécies acerca de que os animais exibem comportamentos morais ou pré-morais básicos (padrões de conduta paralelos aos elementos centrais da conduta moral humana); iii) a moralidade é um "universal humano" (existe em todas as culturas do mundo), uma parte da natureza humana adquirida durante a evolução; iv) as crianças pequenas e os bebês mostram alguns aspectos de conduta e cognição moral (que precedem às experiências específicas de aprendizagem e ao desenvolvimento de uma visão do mundo).
Assim que carece de risco, em termos de possível falácia, o dizer que nossa natureza nos leva a julgar mas não indica as pautas do juízo. Que restaria à ética se não compartisse nossa espécie a tendência a julgar os comportamentos morais? Mas não somente isso. Cabe sustentar que o rastreio de universais éticos (e jurídicos) não termina em nossa natureza como agentes morais. De alguma maneira, existem também universais que se referem não às motivações nesta ocasião, senão aos critérios.
Ademais, o que a neurociência denomina de “plasticidade” – a habilidade para cambiar à luz da experiência – constitui a base da natureza humana em todos os níveis, desde o cérebro e a mente até as sociedades e os valores morais. De fato, a grande vantagem evolutiva do ser humano radica em sua capacidade para escapar, ainda que limitadamente, às limitações (ao “determinismo”) da evolução (P. Magistretti & F. Ansermet). E dado que nosso mundo, o humano, é um mundo de relações entre cérebros-mentes, ocupar-se de encontrar por meio do conhecimento científico, em nossa natureza, a placa base, os fundamentos naturais dos sentimentos e valores humanos não somente não é algo carente de significado e importância, senão também que é, sem lugar a dúvidas, a aposta menos arriscada.
Depois de tudo, embora a moral e a justiça, como ato humano, sejam algo infinitamente complexo, se não sabemos do que somos capazes, então não saberemos de que preocupar-nos, que tendências humanas estimular, e contra quais proteger-se. (Carl Sagan & Ann Druyan)
Atahualpa Fernandez é Membro do Ministério Público da União/MPU/MPT/Brasil (Fiscal/Public Prosecutor); Doutor (Ph.D.) Filosofía Jurídica, Moral y Política/ Universidad de Barcelona/España; Postdoctorado (Postdoctoral research) Teoría Social, Ética y Economia/ Universitat Pompeu Fabra/Barcelona/España; Mestre (LL.M.) Ciências Jurídico-civilísticas/Universidade de Coimbra/Portugal; Postdoctorado (Postdoctoral research)/Center for Evolutionary Psychology da University of California/Santa Barbara/USA; Postdoctorado (Postdoctoral research)/ Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel/Schleswig-Holstein/Deutschland; Postdoctorado (Postdoctoral research) Neurociencia Cognitiva/ Universitat de les Illes Balears-UIB/España
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