Por Atahualpa Fernandez - 14/06/2015
“Los instintos sociales llevan a un animal a hallar placer en la sociedad con sus semejantes, a sentir cierta simpatía por ellos, y a prestarles diversos servicios”.
Charles Darwin
Parte 1
Os avanços ligados à teoria da evolução, a genética e as neurociências puseram em tela de juízo muitas das ideias recebidas nas humanidades e nas ciências sociais: desde aspectos filosóficos como a separação entre o corpo e a mente, até questões muito mais concretas ligadas à relevância da biologia para a explicação do comportamento social. Em seu livro “Darwin's Dangerous Idea”, Daniel Dennett sugeria que o reconhecimento da origem evolutiva do ser humano atuaria como um ácido universal sobre o conjunto de nossa concepção do homem, começando por nossas mais íntimas crenças éticas.
Pois bem, a proposta de Darwin ao aplicar à evolução humana seus princípios da seleção natural inclui extensos comentários acerca do tipo de ser que esta teria talhado com respeito aos instintos sociais e ao comportamento ético. As páginas do Descent of Man parecem-nos hoje um tanto influenciadas pela ideologia vitoriana como, por exemplo, quando fala da condição quase pré-humana dos índios que habitavam a Terra do Fogo. Convém recordar que Darwin não contou com uma teoria da herança adequada e que, mediante o mecanismo da pangênese, seguiu de perto os esquemas lamarckianos de herança dos caracteres adquiridos. De tal sorte, Darwin acreditava que um comportamento mais civilizado dos povos primitivos os converteria com o passo do tempo, por seleção natural, em seres humanos de uma natureza igual a dos britânicos.
Como se vê, tampouco Darwin se livrou de um inadequado diagnóstico antropológico à hora de considerar a natureza humana. Mas a descrição implícita que faz dos instintos sociais é adequada para situar o conteúdo naturalista do comportamento moral. Por exemplo, Darwin utiliza o conceito de moral sense, que tem uma longa história na filosofia anglo-saxônica. Shaftesbury, Hutcheson e Hume consideraram o moral sense como uma força inata ligada à simpatia que leva a cada pessoa a atuar em favor de outros. O comportamento moral seria, pois, uma espécie de soma algébrica de forças gravitacionais — de inequívoca referência a Newton —, graças ao qual um sentimento moral centrípeto se combinaria com o instinto egoísta centrífugo para dar esse mundo de equilíbrios precários que é tanto a natureza como a sociedade humana.
Darwin poderia ser considerado como o último autor desta tradição intelectual que procede da Ilustração escocesa, mas, em sua obra, o moral sense adquire um caráter mais geral. No Descent of Man se diz que qualquer animal com bem marcados instintos sociais como podem ser os afetos paterno-filiais, “would inevitably acquire a moral sense or conscience, as soon as its intellectual powers had become as well, or nearly as well developed, as in man.” Trata-se de uma questão hipotética: nenhum animal alcançou o nível das faculdades mentais humanas. Mas se o lograsse, então também adquiriria o mesmo nível de moral sense de que desfrutamos.
Assim que se pode descrever a ideia darwiniana acerca da condição moral humana da seguinte forma: afetos simpáticos, por uma parte, próprios de um animal de vida social, e umas faculdades intelectuais altas que permitem avaliar os riscos e as consequências de nossas ações. O conjunto do moral sense. E este permite alcançar o grau da conduta ética. É este o fundamento naturalista da moralidade humana.
Graças ao moral sense, atribuímos o caráter de atos heróicos a ações como a de salvar a vida de outra pessoa pondo em risco a nossa própria. Em Descent of Man se incluem referências a atos parecidos que levam a cabo outros primatas como os babuínos. Contudo, Darwin conclui que não são atos morais porque os monos não contam com a capacidade de entender a consequência de suas ações: se comportam assim por instinto, mediante uma determinação genética forte. Mas o ser humano observa, antecipa, medita, avalia, elege e decide. Levamos a cabo não só condutas morais, senão também juízos morais das condutas alheias. Trata-se de um conjunto no qual é difícil estabelecer a fronteira entre os afetos simpáticos e os cálculos valorativos.
Mas é bastante provável que, em boa medida, a evolução de nosso cérebro se deva à necessidade de levar a cabo essas complicadíssimas operações que permitem entender a relação social, o papel de cada um e a conduta que cabe esperar de cada membro do grupo. Nicholas Humphrey sustenta que outros símios como os chimpanzés contam também com este “pensamento maquiavélico”; some-se a isto a avaliação ética e teremos o moral sense. O comportamento moral humano tem, portanto, como componente essencial — ainda que não único —, um complexo esquema de avaliação e antecipação das condutas alheias. Uma “teoria da mente” dos outros.
Como esclarece Steven Pinker, todo mundo tem uma teoria implícita sobre a natureza humana. Todos nos afanamos em prever o comportamento dos demais, o que significa que todos necessitamos entender “o que” é o que move as pessoas a adotar determinadas condutas[1]. Trata-se da perspectiva dos “sistemas intencionais” que propôs Daniel Dennett, segundo a qual os humanos são considerados como sujeitos intencionais de terceira ordem: contamos com uma teoria da mente do outro na qual se inclui o fato de que este outro sujeito também tem uma teoria de minha própria mente, e sabe que eu a tenho respeito dele. Deste modo, as ações encaminhadas a alcançar meus desejos na vida social se ajustarão ao que minha teoria da mente do companheiro ou do adversário inclui acerca da mente alheia.
É uma situação parecida a de um jogo de xadrez em que meu adversário me oferece um “gambito”, um sacrifício em principio absurdo que irá beneficiar-me. Por que o faz? Em que medida me beneficia em realidade ou se trata simplesmente de um ardil para que eu creia que me beneficia quando irá a prejudicar-me? Ainda que exista a possibilidade de que me beneficie, o outro intenta que eu suspeite que não é assim e recuse o “gambito”… A cadeia mental do “eu creio - que tu crês -que eu creio - que tu crês” pode estender-se indefinidamente (os melhores jogadores de xadrez são os que, já seja por intuição ou por reflexão, podem levá-la mais longe). Esta teoria da mente do outro é uma teoria tácita da natureza humana que procede da experiência que temos acerca de nós mesmos. Vejamos brevemente em que consiste esta teoria no que se refere à avaliação das ações alheias.
Trata-se de um conjunto no qual intervém desejos, crenças e ações. Atribuímos aos demais um comportamento que obedece aos objetivos que mantêm — os desejos — e à visão do mundo de que dispõem — as crenças — para deduzir as ações que cabe prever que levarão a cabo. Como já mostrou Antoni Domènech, neste sistema qualquer dos três componentes — desejos, crenças e ações — pode ser deduzido em função dos outros dois. Se conhecemos (ou intuímos) os desejos de alguém e suas crenças, estamos em condições de predizer sua conduta. Mas se contemplamos sua conduta, e sabemos suas crenças, deduziremos quais são seus objetivos; assim em todos os casos.
Por certo que para que a equação funcione é preciso dar por garantida uma condição especial da natureza humana: em que medida estamos dispostos a alcançar o que são nossos desejos. A ideia central da teoria darwiniana da seleção natural estabelece que cada organismo maximiza seus interesses próprios (identificados nesse caso com a obtenção da progênie). O problema é que o comportamento altruísta parece escapar a esta regra. Quem atua em benefício de outro emprega seus recursos para favorecer a adaptação alheia, não a própria. Como foi possível fixar-se por seleção natural um comportamento assim?
Notas e Referências:
[1] Na própria maneira de pensar sobre a gente subjaz uma teoria tácita da natureza humana – a saber, que são os pensamentos e os sentimentos os causantes da conduta. Damos corpo a esta teoria analisando nossa mente e supondo que nossos semelhantes são como nós, assim como observando o comportamento das pessoas e formulando generalizações. Ademais, também absorvemos outras ideias de nosso ambiente intelectual: da experiência dos expertos e da sabedoria convencional do momento. Nossa teoria sobre a natureza humana é a fonte de grande parte do que ocorre em nossa vida. A ela nos remetemos quando queremos convencer ou ameaçar, informar ou enganar. É esta teoria que nos aconselha sobre como manter vivo nosso matrimônio, educar aos filhos e controlar nossa própria conduta. Seus supostos sobre a aprendizagem condicionam nossa política educativa; seus supostos sobre a motivação dirigem as políticas sobre economia, justiça e delinquência. E dado que delimita aquilo que as pessoas podem alcançar facilmente, aquilo que podem conseguir somente com sacrifício ou sofrimento, e aquilo que não podem obter de modo algum, afeta os nossos valores: aquilo pelo que pensamos que podemos lutar razoavelmente como indivíduos e como sociedade. As teorias opostas da natureza humana se entrelaçam em diferentes maneiras de viver e em diferentes sistemas políticos, e tem sido causa de grandes conflitos ao longo da história (S. Pinker). Por outro lado, o conhecimento da natureza humana também tem consequências profundas sobre nossos sistemas de justiça, os vínculos sociais relacionais e a dinâmica de poderes, na medida em que esta não somente gera e limita as condições de possibilidade de nossas sociedades senão que, e muito particularmente, guia e põe limites ao conjunto institucional e normativo que regula as relações jurídicas e os sistemas jurídicos concretos. É a natureza humana a que impõe constrições significativas para a percepção, transmissão e armazenamento discriminatório de representações culturais, limitando as variações sociais, morais e jurídicas possíveis.

Atahualpa Fernandez é Membro do Ministério Público da União/MPU/MPT/Brasil (Fiscal/Public Prosecutor); Doutor (Ph.D.) Filosofía Jurídica, Moral y Política/ Universidad de Barcelona/España; Postdoctorado (Postdoctoral research) Teoría Social, Ética y Economia/ Universitat Pompeu Fabra/Barcelona/España; Mestre (LL.M.) Ciências Jurídico-civilísticas/Universidade de Coimbra/Portugal; Postdoctorado (Postdoctoral research)/Center for Evolutionary Psychology da University of California/Santa Barbara/USA; Postdoctorado (Postdoctoral research)/ Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel/Schleswig-Holstein/Deutschland; Postdoctorado (Postdoctoral research) Neurociencia Cognitiva/ Universitat de les Illes Balears-UIB/España
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