O SENTIMENTO DE INJUSTIÇA DO MAGISTRADO NÃO O AUTORIZA A FAZER QUALQUER COISA

13/12/2019

Coluna Isso Posto / Coordenadores Ana Paula Couto e Marco Couto

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O caso aconteceu recentemente e, na nossa avaliação, foi tratado de forma adequada pelo Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do habeas corpus de nº 80148. É evidente que, durante o cumprimento da transação penal, o prazo prescricional flui normalmente. Mas a questão é a seguinte: por que não se reconheceu o óbvio antes do caso chegar ao STJ?

Vamos melhor contextualizar o caso concreto.

O Ministério Público do Ceará celebrou transação penal com o autor do fato, o qual se comprometeu a pagar R$ 150.000,00 (cento e cinquenta mil reais), em sessenta parcelas mensais. Na consulta que fizemos à internet, não conseguimos obter maiores informações sobre as circunstâncias fáticas que ensejaram a lavratura do termo circunstanciado e que, por consequência, levaram à celebração da transação penal.

Apenas verificamos que o caso trata de um episódio ocorrido no trânsito. É certo que tais circunstâncias fáticas, a rigor, não são importantes para a questão a ser enfrentada nesta coluna, mas é preciso registrar que o valor da transação penal – R$ 150.000,00 (cento e cinquenta mil reais) – não é normalmente encontrado nos acordos celebrados entre o Ministério Público e o autor do fato.

O expressivo valor foi dividido em sessenta parcelas, impondo ao autor do fato o pagamento do valor mensal de R$ 2.500,00 (dois mil e quinhentos reais). Até esse ponto, não há nada errado.

Como é sabido, a transação penal consiste em um acordo entre o Ministério Público e o autor do fato cujo objetivo é evitar o oferecimento da denúncia. Portanto, não havendo ilegalidade nos termos pactuados, o acordo deve ser homologado pelo Juiz.

Desde que observados os requisitos do art. 76 da Lei 9099/95, sendo livre a manifestação dos envolvidos, não cabe ao Juiz intervir na celebração da transação penal – salvo se houver alguma ilegalidade, o que não houve no caso concreto. A intromissão indevida do Juiz, a rigor, desnaturaria a própria transação penal, que deve ser celebrada entre o Ministério Público e o autor do fato, atuando o Juiz apenas como fiscal da sua legalidade. Aliás, quanto à transação penal, tivemos a oportunidade de melhor explorá-la no livro Juizados Especiais Cíveis e Criminais: Lei 9099/1995 comentada[1].

Portanto, o valor ou o número de parcelas fixado entre o Ministério Público e o autor do fato não permitiam qualquer intromissão do Juiz, sendo de responsabilidade dos envolvidos os termos do acordo e as suas consequências.

Uma vez homologada a transação penal, restaria observar o seu cumprimento. No caso de descumprimento, embora se possa questionar tal entendimento, a verdade é que não se pode negar a existência da súmula vinculante de nº 35, a qual dispõe o seguinte: A homologação da transação penal prevista no artigo 76 da Lei 9099/1995 não faz coisa julgada material e, descumpridas as suas cláusulas, retoma-se a situação anterior, possibilitando-se ao Ministério Público a continuidade da persecução penal mediante o oferecimento da denúncia ou requisição de inquérito policial.

É claro que se deve esperar do Promotor de Justiça o conhecimento dessa possibilidade, a qual deve ser considerada no momento da celebração da transação penal. Embora o valor tenha sido parcelado, sabia o Ministério Público que, não havendo o cumprimento do acordo, bastaria oferecer a denúncia em face do autor do fato.

Mas o que aconteceu no caso concreto?

O autor do fato aceitou os termos da transação penal, mas não cumpriu os termos do acordo, o que permitiu o oferecimento da denúncia, à luz da súmula vinculante de nº 35. Todavia, a Defesa – corretamente – buscou o reconhecimento da prescrição, argumentando que decorreram 12 anos desde a data do fato e salientando que o prazo de prescrição correu normalmente após a celebração da transação penal que acabou não sendo cumprida.

O Ministério Público que atua na primeira instância concordou com a tese defensiva, mas o Juiz responsável pelo processo não reconheceu a prescrição e determinou o prosseguimento do feito. Uma vez impetrado o habeas corpus perante o Tribunal de Justiça do Estado do Ceará, houve nova negativa à tese defensiva.

A ementa do acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado do Ceará contém o seguinte trecho: No que concerne a tese de falta de fundamentação da decisão que deu prosseguimento à ação penal, importante registrar que o juízo a quo não acatou o parecer ministerial por entender não haver configurado o instituto da prescrição, uma vez que o paciente encontrava-se em período de prova, portanto, em fase de cumprimento de pena alternativa imposta, pois não havia cumprido a transação penal em sua integralidade.

Então, a pergunta a ser respondida é a seguinte: com base em qual dispositivo legal o Juiz de primeiro grau e a segunda instância do TJCE entenderam que o prazo de prescrição se suspende enquanto o autor do fato cumpre a transação penal?

Não havendo qualquer previsão de causa interruptiva ou de causa suspensiva do prazo prescricional – no caso de transação penal – no Código Penal, ao que tudo indica houve uma evidente confusão entre os institutos da transação penal e da suspensão condicional do processo.

Embora não haja qualquer previsão alusiva à transação penal, é certo que o art. 89, § 6º, da Lei 9099/95 – ao se referir expressamente à suspensão condicional do processo –, afirma o seguinte: Não correrá a prescrição durante o prazo de suspensão do processo.

É difícil acreditar que as primeira e segunda instâncias da Justiça Estadual do Ceará não saibam as diferenças básicas entre a transação penal e a suspensão condicional do processo. Enquanto a transação penal busca evitar o oferecimento da denúncia, a suspensão condicional do processo pressupõe o oferecimento da denúncia e busca evitar a prolação da sentença. Uma rápida leitura na Lei 9099/95 revela que tais institutos têm naturezas diferentes, exigem a presença de requisitos diferentes e acarretam consequências diferentes.

Ao que parece, inconformado com a existência de uma situação que reputava injusta – o autor do fato causou culposamente lesões corporais graves à vítima, celebrou a transação penal e sequer a cumpriu –, o Juiz de primeiro grau e o Tribunal de Justiça do Estado do Ceará entenderam por aplicar a causa de suspensão do prazo prescricional prevista no art. 89, § 6º, da Lei 9099/95, por analogia, à transação penal.

É evidente que não se pode aplicar por analogia um dispositivo que interrompa ou suspenda o prazo de prescrição, já que há um evidente prejuízo ao autor do fato. A situação pode ser injusta, mas não cabe ao Judiciário inventar uma solução inviável.

Portanto, na nossa ótica, o Superior Tribunal de Justiça, de forma correta, enfrentou a questão assim registrando: 1. Conforme orientação desta Corte, as causas suspensivas da prescrição demandam expressa previsão legal (AgRg no REsp nº 1.371.909/SC, relator Ministro Joel Ilan Paciornik, Quinta Turma, julgado em 23/8/2018, DJe de 03/09/2019). 2. Durante o prazo de cumprimento das condições impostas em acordo de transação penal (art. 76 da Lei nº 9099/1995), não há, em razão da ausência de previsão legal, a suspensão do curso do prazo prescricional. 3. No caso, embora o prazo prescricional seja de 8 anos, entre a data do fato e a denúncia passaram-se mais de 10 anos, o que evidencia o advento da prescrição da pretensão punitiva. 4. Recurso provido.

Diante do exposto, acreditamos que cabia ao Ministério Público, antes de celebrar o acordo com o autor do fato, prever a possibilidade de ele não cumprir a transação penal e requerer o reconhecimento da prescrição.

Todavia, não tendo o autor do fato cumprido a transação penal e não havendo causa interruptiva ou suspensiva do prazo prescricional a incidir no caso concreto, apenas restava o reconhecimento da prescrição. Afinal de contas, o sentimento de injustiça do Magistrado não o autoriza a fazer a qualquer coisa.

 

Notas e Referências

[1] COUTO, Ana Paula; COUTO, Marco; FLEXA, Alexandre; ROCHA, Felippe Borring; CHINI, Alexandre. Juizados Especiais Cíveis e Criminais: Lei 9099/1995. 2.ed. Salvador: Editora JusPodivm, 2019, p. 399-414

 

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