O sensacionalismo da imprensa na cobertura de crimes de natureza psicopatológica e suas conseqüências

03/11/2015

Por Luiz Ferri de Barros - 03/11/2015

Discorrer sobre o tema sensacionalismo, imprensa e criminalidade trata de saber se a mídia, considerada sua responsabilidade social, tem agido de forma racional (sensata), ou irracional (insensata), em relação aos fatos criminais e ao fenômeno da criminalidade como um todo e em cada um dos tipos específicos de suas manifestações.

Defendo a tese de que a imprensa tem agido insensatamente em relação à criminalidade. Creio que existe um nexo causal direto entre a violência social que a mídia retrata, em especial quando de forma sensacional, e a reincidência de atos violentos que se verificam na sociedade. O sensacionalismo estimula a violência em virtude da banalização a que os fenômenos da criminalidade são submetidos e porque eleva ao estrelato os criminosos, que se vêem como figuras públicas de grande projeção e destaque, hoje não mais apenas nos tabloides de “jornalismo marrom”, do tipo que se “se espremer sai sangue”, como dizia o povo, mas, de uma forma geral, em toda a grande mídia brasileira. Isso significa, em muitos casos, do ponto de vista da psicologia comportamental (a mais simples que possa existir), que os jornalistas oferecem feedback (reforço positivo) aos atos criminosos mais repugnantes, gerando um círculo vicioso crimes/notícia sobre crimes/novos crimes, em ritmo e dinâmica de bola de neve.

Os criminosos notórios, ou aspirantes a esse perverso estrelato, sentem-se satisfeitos e engrandecidos em seus egos com a repercussão na mídia de seus feitos. Homens que, uma vez capturados, deveriam cair no esquecimento público em estrito cumprimento de suas penas, são personagens de manchetes jornalísticas, dão entrevistas e sorriem de forma escarnecida para o público diante de dezenas de câmaras de TV, microfones e gravadores. Mesmo quando vencidos pela polícia, continuam usufruindo de seu sucesso criminal, que ganha brilhos de audaciosa virtude perante multidões de marginais, incentivando outros a trilharem os mesmos caminhos, adentrando-os ainda mais perigosamente. Isso para não comentar situações em que declarações sensacionais de criminosos a jornalistas, ou por esses obtidos de gravações realizadas pela força policial ou pelos Ministérios Públicos, uma vez veiculadas nos meios de comunicação, muita vez estão a serviço de passar mensagens, dando o recado a comparsas e a inimigos.

Devo aqui ressalvar que se as autoridades policiais e judiciárias encontram-se impossibilitadas de impor o cumprimento rigoroso das penas, inclusive permitindo que presídios sejam quartéis generais do crime organizado, estão certos os jornalistas em manter a população plenamente informada dessa situação. Talvez esse trabalho da mídia, entretanto, pudesse ser exercido de outras formas, que não se prestassem a notabilizar tão intensamente os criminosos, fortalecendo-os, além de oferecer-lhes ampliação de seu poder de comunicar-se com o exterior dos presídios; formas que igualmente minimizassem a manipulação cotidiana das emoções primárias das pessoas.

Especificamente no que se refere às coberturas jornalísticas relacionadas a crimes de natureza psicopatológica, considero que as conseqüências do sensacionalismo da mídia incluem: a) a propagação e perpetuação de preconceitos; b) a difusão de desinformação a respeito das doenças mentais; c) a intensificação do sofrimento de pessoas direta ou indiretamente atingidas por esses crimes; e, por último, mas não menos importante, d) as reportagens sensacionalistas a respeito de crimes psicopatológicos podem eventualmente induzir novos crimes, ou novas ondas de crimes (é possível argumentar que existem evidências de que esse fenômeno tem ocorrido no Brasil). Voltarei a cada um destes pontos, após apresentar outras con- siderações que julgo de interesse.

A natureza do sensacionalismo e o mito da neutralidade da imprensa

O sensacionalismo transgride radicalmente com os ideais de neutralidade da imprensa. As técnicas sensacionalistas valem-se da exploração e manipulação intensa e deliberada das emoções primárias (sensações) do leitor, do ouvinte ou do telespectador, em geral induzindo baixo nível de reflexão crítica ou intelectiva a respeito dos fenômenos (“fatos”) reportados.

Um dos problemas relacionados à manipulação intencional das emoções do público, promovida pelo jornalismo sensacionalista, reside na circunstância de que nem sempre se sabe como o “público em geral” e como cada uma das pessoas individualmente atingidas reagirão a tais estímulos sensoriais hiper-intensos, produzidos e veiculados pelos meios de comunicação. A rigor, creio que no próprio meio jornalístico são poucos os profissionais capazes de avaliar, em profundidade, o reflexo de sua atuação junto ao público, embora naturalmente saibam fazê-lo para uso empírico no seu dia-a-dia.

O argumento geral dos jornalistas, mesmo daqueles que teoricamente condenam o sensacionalismo – em justa defesa da liberdade de imprensa –, pode ser resumido à seguinte assertiva: a imprensa não produz os fatos, apenas os relata de forma neutra. Trata-se de um argumento falacioso em defesa de uma causa justa, porque a neutralidade da imprensa não é mais do que um mito, quando muito um ideal, e sua atuação incessante e onipresente nas sociedades contemporâneas induz e condiciona comportamentos individuais e coletivos, cotidianamente gerando novos fatos, como quaisquer outros agentes sociais o fazem.

Uma das principais impossibilidades técnicas, digamos assim, de o jornalista manter-se neutro dá-se pela circunstância de que nenhuma linguagem é neutra, nem as palavras, nem as imagens, nem os sons, nada – nem mesmo os próprios “meios”, como dizia o antigo guru das comunicações, ao enunciar que o meio é a mensagem.

Há os que considerem que o sensacionalismo apenas se define pela “forma” com que as notícias são veiculadas, argumentando que não há danos sociais possíveis de serem atribuídos à imprensa, desde que a forma seja correta e neutra. Posso de imediato enunciar que, além da forma, contribuem para o sensacionalismo pelo menos outros quatro fatores: a) a definição dos temas (pautas); b) a intensidade emocional adotada (que poderia ser considerada como parte da forma); c) a exploração artificialmente prolongada de fatos escandalosos; e d) a natureza das emoções do público que se pretendem manipular. Uma coisa é manipular a compaixão perante o próximo em prol de causas filantrópicas, por exemplo, outra, muito diferente, é manipular o medo, a revolta ou a ira, quando não a morbidez, como é comum acontecer em reportagens policiais.

Notícias de suicídio raramente são divulgadas pela mídia, salvo em casos excepcionais, porque existe um consenso entre os jornalistas a respeito de que tais notícias podem eventualmente induzir outras pessoas a cometerem suicídio. Essa simples norma ética, consuetudinariamente estabelecida, é demonstração suficiente de que, a despeito de proselitismo em contrário, os jornalistas concordam que a mídia tem o poder de induzir comportamentos socialmente indesejáveis, independentemente da forma com que os fatos são relatados, o que serve, adicionalmente, para demonstrar a impossibilidade de sua neutralidade, dispensando-se outras considerações.

Os crimes de natureza psicopatológica e a imprensa

Sirvo-me da expressão “crimes de natureza psicopatológica” de forma livre, descompromissada dos conceitos da Psiquiatria Forense ou do Direito, em relação à imputabilidade ou inimputabilidade etc. Faço uso da expressão para referir-me àqueles crimes que são noticiados pela imprensa em imediata atribuição de patologia mental ao criminoso, assim caracterizado como doente mental, de forma correta ou incorreta, pela própria imprensa, muitas vezes até mesmo antes de sua captura e de que tenha sido submetido a qualquer exame pericial.

Trata-se em geral de crimes violentos, muita vez homicídios hediondos e em vários casos, igualmente, crimes em série. Afirmo taxativamente que a cobertura jornalística desses crimes é com freqüência sensacionalista, repercutindo e fixando-se tão fortemente nas mentes do público e disso não necessito fazer prova argumentativa, bastando-me a demonstração que diretamente se obterá caso indagado, ao meio dos milhares de assassinatos que se cometem anualmente neste País, quantos terão se esquecido de três crimes de natureza psicopatológica cometidos em anos recentes? Refiro-me aos crimes do Parque do Estado, em São Paulo, praticados pelo motoboy que recebeu a alcunha de “maníaco do parque”, aos crimes da Praia do Cassino, no Rio Grande do Sul, nos quais o criminoso almejava o objetivo de tornar-se mais famoso do que o “maníaco do parque” (para tanto pretendendo superá-lo em número de vítimas), auto-intitulando-se o “motoboy do sul” e, por último, refiro-me ao “crime do shopping”, em São Paulo, em que múltiplo assassinato foi cometido por um estudante de Medicina em meio a uma sessão de cinema.

Do ponto de vista jornalístico, podemos considerar que a repercussão de tais crimes é compreensível porque para a mídia interessa o raro, a novidade e uma das explicações por que são tão amplamente noticiados e explorados jornalisticamente ad nauseum é exatamente porque são raros. No caso dos crimes em série, ao longo do processo de investigação e antes da captura do criminoso, o jornalismo cumpre importante papel de alertar a população, para que se acautele, da mesma forma como pode estar de forma investigativa, ou apenas em atividade de divulgação, auxiliando o trabalho policial.

Entretanto, se considerarmos os cinco critérios a que me referi para caracterizar a cobertura jornalística como sendo sensacionalista é possível perceber a facilidade com que parcela importante da mídia brasileira, incluindo alguns dos mais prestigiosos órgãos de comunicação escorregam para a manipulação emocional primária do público. Dentre os critérios (forma, definição de pautas, intensidade emocional, exploração artificialmente prolongada e natureza das emoções suscitadas), vale discutir brevemente o último, antes de avançar para outros campos.

Qual é a natureza das emoções suscitadas pelo sensacionalismo? Basta assistir a alguns tipos de programas de jornalismo policial vespertino na TV, ouvi-los no rádio ou ler determinadas seções de jornais e revistas para verificar que amiúde, entre outras fortes manipulações emocionais que ocorrem entre a mídia e o público, no noticiário criminal, encontra-se a execração da morbidez humana. Por vezes, trata-se de mórbidas tentativas de execração da morbidez que exacerbam ainda mais a própria morbidez. A pergunta é a de saber por que os jornalistas agem assim, por que o público se submete a (e aprecia) isso e qual é a função social e psicológica desta relação mórbida.

Primeiro é preciso considerar que os jornalistas agem assim porque são profissionais de comunicação e, hoje, trabalhando pautados por índices de audiência e pesquisas quantitativas e qualitativas de circulação de jornais e revistas, adotam ou perpetuam estilos de comunicação que geram mercado para seus veículos. Em outras palavras, o público (ou uma parte significativa dele) deseja continuar consumindo o jornalismo criminal sensacionalista. Esta é a explicação socioeconômica. Do ponto de vista psicológico, individual e coletivo, creio que esta natureza de jornalismo criminal sensacionalista cumpre o papel social de manutenção das crenças maniqueístas, da tentativa de perfeita delimitação entre o bem e o mal. Nesse caso, a elevação ao máximo grau da maldade existente nos criminosos estaria a serviço de continuamente reafirmar ao restante da sociedade e a cada pessoa individualmente sua máxima bondade e inocência, por meio de mecanismos psicológicos projetivos. Vale recordar que o nível de exaltação a que a imprensa conduziu a população de São Paulo por ocasião da captura do “maníaco do parque” foi de tal ordem que se reuniu uma multidão, de cidadãos cotidianamente ordeiros e cumpridores da lei, com o propósito de linchá-lo à porta da cadeia onde foi primeiramente recolhido, multidão contida pela polícia com dificuldade[1]. Foge do escopo desta conferência discorrer sobre linchamentos, mas a menção ao fato é de interesse para dimensionar-se a natureza das cautelas que nem sempre são adotadas pela mídia.

As patologias mentais e as conseqüências do noticiário sensacionalista sobre crimes de natureza psicopatológica

Por ocasião do Seminário Internacional sobre Ética e Situações-Limite, realizado na Universidade de São Paulo, no início de 2003, apresentei conferência sob título Os psicóticos e os normais, em que discuti teoricamente a situação de patologia mental em relação à normalidade e remeto o leitor que se interesse por estas questões para o texto de tal conferência específica[2].

Em relação ao tema que nos interessa hoje, cabe salientar que a circunstância, ou condição social, de ser portador de uma patologia mental é extremamente mais perigosa para o portador de uma doença mental do que para a sociedade em que ele vive, conforme já discuti em artigo anterior[3] de que reproduzo os dados abaixo:

A BBC-Online[4] divulgou, em dezembro de 2001, interessante estudo conduzido por pesquisadores ingleses (Universidade de Manchester) e dinamarqueses (Aarthus) a respeito da causa mortis de portadores de doenças mentais, originalmente publicado pela revista Lancet. Os dados são da Dinamarca. Foram examinados os registros de 72.208 óbitos, ocorridos entre 1973 e 1993, de pessoas com histórico de atendimento psiquiátrico. Verificou-se que 25% dessas pessoas foram vítimas de mortes por causas “não-naturais”, constatando-se altos índices de mortes por homicídio, por acidentes e por suicídio, em níveis significativamente maiores do que ocorrem entre a população em geral.

Trata-se de uma das primeiras pesquisas instruídas por dados estatísticos oficiais a demonstrar inequivocamente que a condição de esquizofrênico ou psicótico, em termos de violência social, é mais perigosa para o portador de doença mental do que para a sociedade. O estudo concluiu que essas pessoas têm probabilidade 6 vezes maior de serem vítimas de assassinatos do que os cidadãos em geral. Os pesquisadores explicitamente recomendam que o público e os jornalistas tomem ciência de que os portadores de doenças mentais são vítimas preferenciais de violência social, enfatizando que tal divulgação é importante porque em geral a mídia apenas destaca a cobertura jornalística de raros crimes cometidos por portadores de doenças mentais, distorcendo a realidade.

Nesse ponto, iniciarei a discussão das conseqüências do sensacionalismo da mídia na cobertura de crimes de natureza psicopatológica de forma um pouco mais sistematizada. Relembrando aos presentes, enunciei quatro principais conseqüências, a saber: a) a propagação e perpetuação de preconceitos; b) a difusão de desinformação a respeito das doenças mentais; c) a intensificação do sofrimento de pessoas direta ou indiretamente atingidas por esses crimes; e d) a potencial indução de novos crimes, ou novas ondas de crimes.

A propagação e a perpetuação de preconceitos

A reverberação sensacionalista que costuma ocorrer por ocasião de crimes de natureza psicopatológica responde pela perpetuação do preconceito a respeito da periculosidade dos portadores de doenças mentais. A difusão de tal preconceito induz a duplo erro.  Primeiramente porque, ao invés de genericamente agressores, os portadores de doenças mentais são vítimas preferenciais da violência social, como demonstrou a recente pesquisa dinamarquesa e, em segundo lugar, porque, exatamente, a grande maioria dos portadores de doenças mentais não é especialmente violenta nem perigosa, como se discutirá adiante.

A difusão de desinformação a respeito das doenças mentais

Nas ocasiões em que ocorrem as grandes coberturas jornalísticas intensivas a respeito dos crimes de natureza psicopatológica, uma profusão de informações equivocadas é difundida. Questões de grande complexidade psicológica ou psiquiátrica, a respeito das quais há inclusive pouco nível de certeza científica ou a respeito das quais ocorrem freqüentes divergências entre especialistas, são tratadas de forma ligeira por repórteres não especializados e muitas vezes apresentadas como enunciados de afirmação categórica.

Algumas questões centrais relacionadas à desinformação dizem respeito à linguagem e terminologia e as especulações diagnósticas realizadas por leigos e especialistas sem conhecimento adequado dos fatos ou da matéria[5], temas especialmente sensíveis porque, novamente, contribuem para a difusão e perpetuação de preconceitos.

Em relação a diagnósticos, existem duas classificações psiquiátricas de uso internacional, uma da Organização Mundial de Saúde e outra da Associação Americana de Psiquiatria[6]. Em conjunto elas enunciam centenas de diagnósticos, de ordem mais geral ou específica, constituindo a categorização das patologias mentais. Como se verá, apenas alguns diagnósticos específicos podem ser correlacionados a uma incidência de atos violentos diferenciada em relação à da população em geral. Entretanto, ao meio da informação descuidada, em estilo sensacionalista que busca atingir as emoções primárias do público e não cultivar sua racionalidade, fixa-se a mensagem de que os doentes mentais em geral são perigosos.

Os inúmeros tipos e subtipos diagnósticos da nosologia psiquiátrica podem ser agrupados de diversas maneiras e, de forma livre em relação a cânones acadêmicos (forma que adoto para mais fácil compreensão leiga), talvez pudéssemos, para os efeitos que interessam nesta conferência, considerar quatro grandes categorias principais: a) transtornos mentais ocasionados por doenças orgânicas; b) transtornos mentais ocasionados por desequilíbrios no funcionamento bioquímico cerebral, entre os quais se encontrariam a esquizofrenia e outras psicoses; c) transtornos mentais ocasionados por desvios de personalidade, entre os quais se encontrariam os casos de personalidade psicopática, hoje denominada transtorno de personalidade anti-social; d) transtornos mentais ocasionados por abuso de substâncias psicoativas, entre os quais se encontram os casos de abuso de álcool e outras drogas. (Reafirmo o caráter leigo e livre desta categorização, enfatizando que a referência a que determinados transtornos são “ocasionados” por determinados fatores não significa uma relação causa-efeito linear, até porque, além de complexos, os aspectos etiológicos das doenças mentais são pouco conhecidos, embora bastante estudados).

A discussão a respeito da periculosidade dos portadores de doenças mentais ganha complexidade para os leigos quando se verifica que, sem uma visão clara do varia- do espectro de distúrbios, não se podem buscar quaisquer generalizações.

Por ocasião da captura do “maníaco do parque”, no auge da cobertura sensacionalista do episódio, envolvendo inclusive entrevista do criminoso em rede nacional de TV em horário nobre, o Dr. Wagner Gattaz, Professor Titular de Psiquiatria da Universidade de São Paulo, publicou editorial na Revista Brasileira de Psiquiatria, a propósito da associação entre doença mental e violência, apresentando revisão de cinco estudos internacionais[7]. O autor de início delimita em senso estrito a doença mental como sendo relativa a quadros definidos de alterações psíquicas qualitativas como, por exemplo, a esquizofrenia, as doenças afetivas (antes chamadas de “psicose maníaco-depressiva”) e outras psicoses, para em seguida relatar os estudos examinados, apresentando suas conclusões, dentre as quais reproduzo os seguintes extratos:

Em um estudo epidemiológico na Alemanha, H. Haefner e W. Boecker (1982) encontraram que não havia um excesso de doentes mentais entre os criminosos violentos da década de 1955-1964, quando comparados com a população em geral. Encontraram também que a idade média do doente mental criminoso por ocasião do crime era 10 anos maior do que a do criminoso da população geral, sugerindo que a doença mental, ao contrário, retarda a expressão do ato de violência.

Inúmeros estudos (...) incluindo ampla investigação coordenada pelo National Institute of Mental Health nos EUA (Epidemiological Catchment Area - ECA, Swanson et al. 1997) (...) não encontraram uma associação, ou apenas uma associação discreta, entre doença mental e o risco de cometer crimes de violência. Entretanto, todos eles apontam para dois outros fatores invariavelmente associados à violência: o abuso de substância tóxicas (álcool e drogas) e a presença do transtorno de personalidade anti-social. Vale recordar que segundo a definição estrita de Gattaz, transtornos de personalidade, tanto quanto o abuso de substâncias, não se constituem em doenças mentais.

Grupo de pesquisa (...) em Nova Iorque (H. Steadman, 1988) não encontrou diferença na prevalência da violência em doentes mentais sem abuso de substâncias, com- parados com a população geral. O risco de violência em indivíduos da população geral com abuso de álcool ou drogas foi duas vezes maior do que em pacientes esquizofrênicos sem abuso. Esse risco é potencializado quando álcool e drogas coexistem em indivíduo portador de transtorno mental (...). O maior risco para expressão de violência ocorre na combinação de abuso de álcool e drogas com transtorno de personalidade anti-social.

As conclusões de Gattaz indicam que, para ele, esses achados sugerem que a doença mental em senso estrito contribui muito pouco para a ocorrência de crimes de violência. Ao finalizar seu estudo, posteriormente republicado com inclusão de novos dados, por ocasião do “crime do shopping”[8], o autor afirma: O fato é que a associação entre doença mental e violência, ao menos na intensidade em que tem sido noticiada, não tem base real. O indivíduo psicótico pode tornar-se agressivo se estiver alcoolizado. Aliás, o não-psicótico também.

Na mesma ocasião, em 1999, o Dr. Cláudio Cohen, Professor Associado do Departamento de Medicina Legal e Ética Médica da Universidade de São Paulo, apresentou análises complementares sobre o assunto, partindo de considerações sobre a legislação brasileira e a respeito da complexidade das avaliações de periculosidade pré-delitivas de indivíduos[9]. É de interesse destacar breves extratos de seu artigo.

Para ele, no Código Penal de 1940, podíamos observar a presença de uma medida de segurança como necessidade jurídica para reprimir e também para prevenir o de- lito através da verificação da periculosidade do agente infrator da Lei. (...) Cabia aos psiquiatras avaliar o “estado perigoso” daqueles indivíduos que tivessem cometido algum ilícito penal. A medida de segurança era aplicável tanto aos doentes mentais que tivessem infringido a Lei, quanto aos reincidentes em crimes dolosos ou aos aliados a bandos ou quadrilhas de malfeitores (CP, art 78). Em 1984, a Parte Geral do nosso Código Penal foi revista e passou-se a reservar a qualificação de periculosidade social, de forma muito preconceituosa, apenas para os doentes mentais que venham a infringir a Lei (CP, art. 97). Em outras palavras, a medida de segurança fica restrita  hoje  apenas  para os doentes mentais que forem penalmente inimputáveis, o que acaba vinculando a periculosidade social às doenças mentais e estigmatizando os portadores das mesmas. (...) No Brasil, apenas os doentes mentais passaram a ser considerados perigosos. Isso fez com que o público leigo tenha feito uma associação errônea entre doença mental e criminalidade.

Analisando a complexa questão da avaliação da periculosidade pré-delitiva, o autor, em complementação e contraponto às análises de Gattaz, afirma: É patente que não será através da associação com a doença mental ou com a toxicofilia que será possível explicar a complexidade dos atos anti-sociais. Afirmando que a avaliação da periculosidade humana não compete apenas aos psiquiatras, mas sim a equipes multidisciplinares envolvendo profissionais de saúde e de Justiça, Cohen indica a necessidade de melhor conhecimento da personalidade dos que praticam crimes e melhor classificação de suas características comuns. Dessa forma, segundo o autor, poderá ser possível identificar as pessoas que infringem a Lei como pessoas com características na sua personalidade que não lhes permitem adaptação social, em vez de continuar reduzindo todo e qualquer indivíduo infrator da Lei apenas sob o rótulo de portador de transtorno mental do tipo personalidade psicopática ou anti-social. Por último, Cohen destaca que: Aliás, já há um aspecto positivo na nossa Lei de Execução Penal, em seu art. 5º, que prevê a necessidade de se avaliar a personalidade do condenado para individualizar a execução da pena, ainda que na prática isto não venha sendo aplicado.

Ou seja, ambos os especialistas apontam para a equivocada estigmatização dos portadores de doenças mentais, sendo que Cohen vai além da denúncia à propagação de preconceitos pelos meios de comunicação, indicando que o próprio Estado brasileiro, por meio da legislação do País, no bojo de seu Código Penal, adotou dispositivos de natureza preconceituosa em relação aos doentes mentais, ao tratar dos conceitos de periculosidade, restringindo-lhes a aplicabilidade da medida de segurança a partir da revisão de 1984.

Vale notar que os artigos acima referidos foram publicados em revista especializada. Quando ocorrem crimes de natureza psicopatológica, na mídia, ao meio de enxurrada de matérias sensacionalistas, raros são os artigos assinados por especialistas realizando o necessário contraponto. Para quem se interesse, indico um dos únicos artigos publicados por psiquiatras, na grande imprensa, por ocasião da comoção causada pelo “crime do shopping”, assinado pelos Professores Ronaldo Laranjeira, da Universidade Federal de São Paulo, e Eduardo Iacoponi, da Santa Casa de São Paulo[10].

A intensificação do sofrimento de pessoas direta ou indiretamente atingidas

A reverberação sensacionalista da mídia, explorando emocionalmente todos os fatos relacionados a tal natureza de crimes, super-expondo o criminoso quando capturado e prolongando artificialmente a cobertura jornalística, causa intensificação desnecessária de sofrimento às pessoas diretamente atingidas pelos crimes de natureza psicopatológica: refiro-me aos familiares e amigos próximos das vítimas, a quem se rouba a possibilidade do necessário recolhimento na situação de luto. Não é raro que, nessas circunstâncias, familiares e amigos sejam até mesmo assediados pela imprensa, se me permitem a liberdade de expressão, em desenfreada busca de declarações, entrevistas e imagens.

O contingente de pessoas indiretamente atingidas pela reverberação sensacionalista conta-se aos milhões e é constituído pelos portadores de doenças mentais e seus familiares que, nestas ocasiões, sentem o peso do preconceito social de forma intensificada. A partir de experiência de vários anos como coordenador de grupos de recuperação de pessoas portadoras de doenças mentais, posso afirmar que de fato são muitas as pessoas pacíficas e não violentas que se ressentem profundamente nesses períodos, algumas chegando a apresentar recaídas em seu estado de saúde, devido à potencialização dos fatores estressores sociais representados pela intensificação do preconceito que se manifesta.

A potencial indução de novos crimes ou novas ondas de crimes

A potencial indução de novos crimes ou novas ondas de crimes a partir do sensacionalismo da mídia talvez seja a conseqüência mais grave e dramática de todo esse complexo processo social.

Em recente reunião realizada no NUFOR - Núcleo de Psiquiatria Forense e Psicologia Jurídica do Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo, o palestrante, médico do Hospital de Custódia de Franco da Rocha, relatou brevemente o caso de um criminoso lá recolhido para cumprimento de medida de segurança. O motivo declarado pelo interno para ter cometido crime violento (e pode-se assumir que tal motivo é verdadeiro para ele) foi o de aparecer na TV, em um dos jornais policiais vespertinos em rede nacional. E ele foi bem sucedido: a televisão foi de fato entrevistá-lo e ofereceu-lhe o estrelato desejado. Ao que consta este episódio foi relatado pela imprensa escrita, porém não disponho da referência específica.

Naturalmente este círculo vicioso não será rompido pelos criminosos, muito menos pelos que praticam crimes desta natureza. Cabe, pois, aos meios de comunicação acautelarem-se e adotarem as medidas necessárias para minorar as possibilidades de continuidade deste círculo ou de seu restabelecimento a qualquer momento.

Com razão eu poderia ser interpelado quanto a estar realizando inferências apressadas baseado em apenas um caso, cujos detalhes, aliás, desconheço, embora esteja certo de sua existência. Entretanto, não é a primeira vez que me debruço sobre este assunto e tive a oportunidade de discutir em detalhe os nexos causais entre os crimes do Parque do Estado, em São Paulo, e os da Praia do Cassino, no Rio Grande do Sul, em artigo que denominei A Psicopatia da Imprensa[11], publicado pela Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo, por ocasião do “crime do shopping”, após recusa anterior (e igualmente posterior, em relação à republicação) de outros editores. Nele transcrevo integralmente outros escritos anteriores publicados no Jornal da Tarde[12] e no site Oficina de Informações[13] a respeito do mesmo assunto.

Analisados estes dois casos de crimes em série, verifica-se que o “motoboy do sul” pretendia superar os feitos do “maníaco do parque”, com a finalidade de obter maior notoriedade do que seu inspirador. A reverberação pela mídia dos crimes do Parque do Estado, em São Paulo, veio a catalisar uma psicopatia latente (porque nunca antes manifestada em sua virulenta violência) em um indivíduo a mais de 1.000 km de distância, nos seis meses em seqüência à captura do primeiro criminoso. O que interessa para nosso argumento a respeito da inconsciência da mídia a respeito dos efeitos profundos dos estímulos que lança, em especial nas coberturas sensacionalistas, é o fato de que os próprios órgãos de comunicação que reportaram a intenção de notoriedade como sendo o móvel dos crimes da Praia do Cassino, estampavam a foto do criminoso em capas de revista ou nos noticiários diversos, oferecendo-lhe, assim, a mórbida realização de seus intentos.

Por ocasião da captura do autor dos crimes da Praia do Cassino, de suas declarações à imprensa e do comportamento da imprensa em relação a tais declarações, considerei, infelizmente, comprovada minha tese, exaustivamente expressa no artigo acima referido (A Psicopatia da Imprensa), que enuncio a seguir:

A exposição destacada da personalidade de psicopatas só se justifica antes de sua captura, com o objetivo de prevenir eventuais vítimas e auxiliar o trabalho policial. Após esse período, a exposição de tais personagens serve apenas para o cultivo da morbidade entre o público e, o que é mais grave, para fomentar fantasias de notoriedade perversa entre outros possíveis psicopatas. Reportagens que levianamente continuam propiciando a um criminoso hediondo a mesma notoriedade, ou maior, do que a que é dada a políticos, artistas ou esportistas são potencialmente catalisadoras de novas ondas de crimes patológicos.

Dado que o enunciado refere- se a uma potencialidade, a tese não se desqualifica pela circunstância de que a catalisação não ocorra sempre e ininterruptamente.

Considerações finais

Todos os pontos de análise relacionados a este tema são complexos. Os fenômenos de violência o são, a violência de natureza psicopatológica ainda mais e o sensacionalismo da imprensa, tanto quanto as relações entre a mídia e seu público, em nível profundo, igualmente constituem-se em fenômenos sociais complexos.

O sensacionalismo dos meios de comunicação é um fenômeno social muito mais amplo do que algo que se possa definir como de exclusiva responsabilidade dos jornalistas.

Em ocasiões passadas, muita vez argumentei de forma apaixonada, envolvido em sofrida militância em defesa de direitos dos portadores de doenças mentais e buscando combater os preconceitos sociais que nos afetam de forma intensificada por ocasião das coberturas jornalísticas sobre crimes de natureza psicopatológica. Pretendi que a matéria fosse cuidadosamente analisada pelo Ministério Público, à luz da Lei de Imprensa, dos Códigos Civil e Penal e demais dispositivos legais aplicáveis ao caso, tendo chegado a considerar de natureza dolosa tais excessos jornalísticos que descrevo.

Hoje que me foi dada a oportunidade de expor pessoalmente este assunto junto ao Superior Tribunal de Justiça, sob os auspícios do Conselho da Justiça Federal e de seu Centro de Estudos Judiciários, nada mais pretendo além desta oportunidade.

Compete aos jornalistas conduzir as providências para a resolução das questões apontadas, entretanto, como tais fenômenos extrapolam a própria imprensa e são de grande complexidade social, é requerida a contribuição de todos os cidadãos em condições de colaborar com soluções, incluindo naturalmente os integrantes do Poder Judiciário.


Notas e Referências:

[1] BARROS, L. F. Loucura e consenso. Jornal da Tarde, 30 ago. 1999. p. 2A. Disponível em: <http://www.jt.estadao.com.br/editorias/98/ 08/30/ar1.htm> Acesso em: 1 nov. 2002.

[2] BARROS, Luiz Ferri de. Os psicóticos e os normais - Apontamentos sistematicamente aleatórios. Revista Videtur Letras, n. 5. Editora Mandruvá, Escola de Escritores, Universidade de São Paulo, Universidad Virtual S. Tomas, Universidad Católica San Antonio, Universidade do Porto. Barcelona, Murcia, Porto, São Paulo, abr. 2002. p. 53-66. Disponível em: <http://www.hottopos.com/ seminario/sem2/barros1.htm> Acesso em: 1 nov. 2002.

[3] BARROS, Luiz. A face oculta da loucura. Jornal da Tarde, 9 mar. 2002. p. 2A. Disponível em: <http://www.jt.estadao. com.br/editorias/02/03/09/artigos002. html> Acesso em: 1 nov. 2002.

[4] BBC NEWS. Murder risk ‘higher for mentally ill’. London, 21 Dec. 2001. Disponível em: <http://news.bbc.co.uk/hi/english/health/ newsid_1721000/ 1721156.stm> Acesso em: 31 out. 2002.

[5] BARROS, Luiz F. Crimes violentos: ponto comum entre portadores de doenças mentais e estudantes de medicina? Revista Brasileira de Psiquiatria, São Paulo, v. 21, n. 4, p. 199-200, dez. 1999. Disponível em: <http://www.abpbrasil.org. br/revist.asp> Acesso em: 1 nov. 2002.

[6] Tais classificações são, respectivamente, a CID 10 - Classificação de Transtornos Mentais e de Comportamento. Porto Alegre: Artes Médicas, 1993. 351 p. e o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais - DSM-IV. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995. 830 p.

[7] GATTAZ, Wagner. Doença mental e violência: fato ou ficção? Revista de Psiquiatria Clínica, v. 25, n. 4, jul./ago. 1998. Disponível em: <http://www.hcnet.usp.br/ipq/ revista/index.html> Acesso em: 1 nov. 2002.

[8] GATTAZ, Wagner. Doença mental e violência: fato ou ficção? Revista Brasileira de Psiquiatria, São Paulo, v. 21, n. 4, p. 196- 197, dez. 1999. Disponível em: <http://www.scielo.br/cgi-bin/wxis.exe/iah/> Acesso em: 1 nov. 2002.

[9] COHEN, Cláudio. A periculosidade social e a saúde mental. Revista Brasileira de Psiquiatria, São Paulo, v. 21, n. 4, p. 197- 198, dez. 1999. Disponível em: <http://www.scielo.br/cgi- bin/wxis.exe/iah/> Acesso em: 1 nov. 2002.

[10] LARANJEIRA, Ronaldo, IACOPONI, Eduardo. Homicídio e doença mental. Folha de S. Paulo, nov., 1999. Disponível em: <www.neofito.com.br/ artigos/art01/jurid253.htm>. Acesso em: 31 out. 2002.

[11] BARROS, L. F. A Psicopatia da imprensa. Revista Videtur, n. 11, São Paulo, CEAr/DLO/ FFCH–USP/Editora Mandruvá, 2000, p. 47–54. Disponível em: <www.hottopos.com.br/ videtur11/imprensa.htm> Acesso em: 1 nov. 2002.

[12] BARROS, L. F. Maníacos e psicopatas. Jornal da Tarde, 16 jan. 1999. p. 2ª. Disponível em: <http://www.jt.com.br/noticias/ 99/01/16/ar1.htm> Acesso: 3 nov. 2002.

[13] BARROS, L. F. Mídia e psicopatia. Oficina de informações, 22 maio 1999. Disponível em: <http://www.oficinainforma. com.br/semana/leituras-990522/5. htm> Acesso em: 3 nov. 2002.


* Conferência proferida no "Seminário Internacional - Imprensa Investigativa: sensacionalismo e criminalidade", realizado pelo Centro de Estudos Judiciários, nos dias 7 e 8 de novembro de 2002, no auditório do Superior Tribunal de Justiça, Brasília-DF.

Publicado Originalmente na Revista do Centro de Estudos Judiciários, Brasília, n. 20, p. 23-29, jan./mar. 2003.


Luiz Ferri de Barros é Mestre e Doutor em Filosofia da Educação pela USP, Administrador de Empresas pela FGV, escritor e jornalista.

Publica coluna semanal no Empório do Direito às terças-feiras.                                        

E-mail para contato: barros@velhosguerreiros.com.br 


Imagem Ilustrativa do Post: Day 2: abstrato // Foto de: Guilherme Yagui // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/yagui7/10005852664

Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode


O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura