O rosto espantado, os olhos chorados: claudiquei

15/09/2021

Há pouco tempo, mal conseguindo andar eretos, estávamos nos dispersando pelas savanas africanas, evoluindo para além dos limites das nossas condições naturais (Darwin). De repente deparamo-nos com a circunscrição da cultura, nascida de nós, condição da vida humana em comum (Freud).

Aí estamos: um “animal político” (Aristóteles). Feitos do acaso, lançados no mundo, sendo enquanto somos (Heidegger). Pensamo-nos “a medida de todas as coisas” (Protágoras), o que interpreto (há controvérsias) como a capacidade humana de valorar e significar tudo, produzindo a realidade.

Nessa condição de acaso, produzindo juízos grandiosos de nós por nós mesmos, num mundo que nos abriga e nos aprisiona, não entendemos nossa insignificância diante do Universo (Malraux). Esse “pobre ator que se pavoneia não percebe que a vida é uma sombra que caminha” (Shakespeare).

Camus disse que se filosofássemos para valer consideraríamos o suicídio, o que é desesperador. Mas o humano resiste: no Vale de Baca, lugar da impossibilidade humana, não obstante as lamentações, os peregrinos cavam fontes e resolvem sua romaria (Bíblia), o que é esperançoso.

Entre sermos insignificantes e a medida de todas as coisas, temos algum valor? Bem, se conceituarmos, teremos o conceito que nos dermos: se grande, grande; se pequeno, pequeno. “A grandeza da humanidade consiste na sua decisão de ser mais forte que a condição humana” (Camus).

Que é ser mais forte do que a condição humana? De comum, mede-se a grandeza de um\a humano\a por sua fama, sua marca no mundo, sua inteligência, sua arte, seu poder, Haveria outras credenciais? A habilitação costumeira é mesmo a relação de alguém com o poder. 

Na Tradição Ocidental o senso comum refere Jesus Cristo como exemplo sobrelevado. Discrepo. O cristianismo, Cristo de carona, foi imposto de cima para baixo pelo Império Romano, pelo Império Carolíngio, pela Igreja Católica. Referido como paz, é produto de sistemática violência.

Se a grandeza humana deve ser aferida por relações de poder, eu tenho que a referência é Nelson Mandela. Também Mandela estabeleceu-se na História em decorrência de relações de poder. No seu caso, porém, tudo veio de baixo para cima. Mandela venceu o poder, não foi produzido por ele.

Mas, pensando em mim mesmo, desejo refletir sobre gente comum. Estava meditando se há grandeza fora dos atos extraordinários. Então me veio a ocasião em que o cotidiano me surpreendeu com um diálogo escatológico, desses que diminuem a humanidade da humanidade.

Mulher: Fulano, vem cá. Homem: Que é? Mulher: Vem cá, seu porco. Olha, tudo mijado. Homem: E fui eu? Mulher: Fede a cerveja, seu porco. Homem: Vai à merda.  Mulher: Seu porco. Homem: Mijei e mijo. Na minha casa, mijo e cago onde eu quiser. Mulher: Seu mijão, seu cagão, seu porco.

O mais não sei; não escutei. Mas estou informado de que a mulher, depois dessa, se foi para não voltar. O homem, acanhado, vive acompanhado de sua cerveja. Conversas expositivas de uma vida conjugal desgastada são vexatórias e nos deixam no piso da estética existencial.

Na sequência dessa baixeza, afortunadamente, me veio a beleza do que em seguida me sucedeu. Eu me deslocava de automóvel e atendi uma senhora que, acompanhada de uma adolescente, pediu carona. Ela entendeu de alojar a menina no banco da frente, pondo-se no de trás.

Havia música, Albinoni, Adágio. A menina escutou curiosa, a expressão admirada. Chorou aos prantos. Então me olhou. Que fazer? Claro, pensei com os meus critérios: eis a grandeza da humanidade. Mas... E agora? Para o bem e para o mal, ela sabe da música. Como lidará com isso?

A mim, ficou-me uma alegria e algo nostálgico. A alegria é do apreciar o efeito que a música lhe fez. A nostalgia é por haver tomado o episódio para me elevar o dia mal-inaugurado com a discussão coprológica, sem atentar o suficiente para o recado que me era dado pelo espanto e pelo choro.

Depois que chegamos, depois que saltaram, só depois assuntei: a menina e a música se encontraram. O rosto espantado, os olhos chorados importavam. Importam. São do melhor da humanidade. Eu devia ter feito algo. Cuidei da admiração, não da admirada. Faltou grandeza. Claudiquei.

 

Imagem Ilustrativa do Post: Weeping stone 2 // Foto de:Ryan Vaarsi// Sem alterações

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