O rio Doce está vivo? Breves considerações após cinco anos do desastre de Mariana/MG

05/03/2021

Coluna O Direito e a Sociedade de Consumo / Coordenador Marcos Catalan

Em janeiro de 2018, Vó Laurita, morreu não se sabe ao certo de quê. “Morreu de tristeza. Ela dizia o Watu morreu e eu não tenho que viver´. Ela foi junto com o Watu”, afirmou o genro, Aílton Krenak, uma das lideranças indígenas mais importantes do Brasil. Também o nonagenário pajé, Euclides, faleceu depois do desastre. “Ele olhava o rio, chorava e dizia nunca mais volta. Entrou em depressão, deixou de comer e morreu”, relatou (SERRA, 2018, p. 392).

No dia 05 de novembro[1] de 2020 o desastre de Mariana completou cinco anos. Durante esse tempo muitas perguntas permaneceram sem resposta, uma delas é sobre a vida do rio Doce. Os anciãos da etnia Krenak deram o rio por morto, já Ailton Krenak[2] afirma que o Doce está em estado gravíssimo, algo como um coma, mas que pode retornar.

Para melhor responder à pergunta lançada realizarei uma brevíssima abordagem descritiva do evento “desastre de Mariana/MG” com enfoque na frente de reparação água. O rompimento da barragem de Fundão despejou no rio Doce uma imensa massa de lama proveniente da mistura entre água e rejeitos de minério de ferro percorrendo 680 km de corpos d'água entre os estados de Minas Gerais e Espírito Santo chegando, posteriormente, ao oceano Atlântico no estado da Bahia (SILVA, 2019, p.64; 65; 66). A bacia hidrográfica do rio Doce abastece de água inúmeras cidades, distritos e comunidades - entre elas, os Tupiniquins, Guaranis e os Krenaks, três povos indígenas da bacia do rio Doce. A etnia Krenak a que nos referiremos do início ao fim deste texto possui um longa trajetória de resistência[3].

Para os Krenaks o rio Doce é um ser vivo e o chamam de Watu, após o crime da Samarco, BHP e Vale S/A passaram a dizer Uatu Kuem - o rio está morto. A maneira de ver desse povo é bastante distante da mentalidade exportadora de Natureza (ACOSTA, 2016) que vivenciamos desde o período colonial até os dias de hoje no Brasil.

Consentindo com visão Krenak acerca do rio como um ser vivo, cabe apresentar o sujeito rio Doce. Entretanto, o farei aqui conforme nosso olhar moderno permite, ou seja, com os dados oficiais que descrevem esse importante “recurso hídrico”. O rio Doce é uma bacia hidrográfica federal: 86% de sua extensão está no estado de Minas Gerais e 14% no estado do Espírito Santo. A população da bacia é estimada em torno de 3,5 milhões de habitantes, distribuída em 228 municípios sendo 200 mineiros e 28 capixabas (SILVA, 2019, p.67).

A expressividade desses números, sem dúvida, nos leva a questionar qual o lugar do direito humano à água diante da atividade minerária. A vida do rio Doce está intimamente relacionada com a necessidade fundamental humana ao consumo de água. Portanto, identificamos aqui um ponto importante que vai para além da vida do rio Doce. Trata-se da relação entre a atividade minerária e o direito humano à água de forma geral. Podemos abordar essa questão por um aspecto mais profundo que tem a ver com a incompatibilidade da mineração com a proteção das águas e o outro de caráter mais prático que se relaciona com a distribuição e o abastecimento de água em contextos de desastres.

A primeira perspectiva pode ser compreendida como um pedido de atenção às patologias do extrativismo mineral[4] que afetam diretamente a gestão das águas. Vejamos, não é por acaso que as mineradoras se concentram às margens dos rios, a atividade minerária necessita de grandes proporções de água para viabilizar a extração de minérios.

O segundo ponto de vista está relacionado ao colapso do acesso e consumo humano de água. O cenário caótico da ausência de abastecimento de água ocasionado por um desastre desta dimensão talvez só possa ser visualizado se vivenciado e é justamente para que isso não precise ocorrer que não se pode esquecer nem por um único dia o que ocorreu em no município de Mariana.

 

Incertezas quanto a saúde do rio Doce e a permanência da proibição da pesca

No campo científico, desde o crime da Samarco até os dias atuais as pesquisas apresentam contradições acerca da saúde do Doce. A toxicidade da lama de rejeitos de minério de ferro não encontra consenso na comunidade científica, sendo possível encontrar pareceres técnicos totalmente opostos. Logo após o rompimento da barragem de Fundão diversos pesquisadores independentes e instituições públicas e privadas elaboraram testes acerca da qualidade da água presente no rio Doce, alguns desses estudos indicam a existência de metais pesados nas águas do rio e nos pescados provenientes do Doce. Os estudos evocados pela Samarco costumam apontar que há segurança no consumo de peixes provenientes do rio Doce.

Sendo assim, a dúvida permanece e infelizmente, caros leitores, a pergunta dessa coluna não tem uma resposta certa. Não fosse o princípio da precaução, se dependesse das mineradoras, a pesca e o consumo de peixes estariam liberados. No que se refere a (in) segurança alimentar proveniente do consumo de pescados da foz do rio Doce a Justiça Federal do Espirito Santo negou o pedido da Samarco e manteve a proibição da pesca em decisão prolatada em julho de 2020[5].

O rio Doce precisa de descanso para a sua total regeneração, como bem aponta Aílton. Mas, os prejuízos com a sua transitória ausência são incontáveis. No aspecto socioeconômico destaca-se a importância da saúde do rio para a economia dos pescadores que se encontram privados de sua atividade em toda a extensão da bacia[6]. No aspecto sociocultural já não se pode ensinar as crianças a nadarem no rio e tampouco banharem-se após o nascimento para garantir a proteção do Watu. As ervas medicinais das encostas do rio[7] não carregam mais a possibilidade de cura e sim a dúvida de sua contaminação por metais pesados. As crianças aprendem a nadar dentro de caixas d´água e a água para beber chega em caminhões pipa. Seria essa a cena do desenvolvimento e do progresso trazido pela atividade mineral? Pois me parece mais um pesadelo regado a chumbo e a mercúrio.

A cultura dos desastres da mineração que está se instaurando no Brasil com os mais conhecidos e salientes Mariana (2015) e Brumadinho (2019) naturaliza a cada dia o risco da escassez de água para consumo humano como um risco a ser suportado pelo bem da economia nacional. O que se está encobrindo nesse jogo é o debate sobre o direito humano a água que, por seu caráter existencial, ocupa um importante espaço no novo sistema de necessidades vivenciado pelos atingidos pela barragem de Fundão (SILVA, 2019, p.127)

 

Economia do desastre e a financeirização da vida dos atingidos e atingidas

Na semana em que o desastre de Mariana completou cinco anos Aílton Krenak concedeu entrevista ao Brasil de Fato[8] ressaltando o caráter colonial da atividade minerária. Dentre as diversas questões que foram tratadas, destacamos a ideia de economia do desastre levantada por ele. Segundo Aílton, o que as mineradoras têm realizado no Brasil é causar o dano e depois ampliar a dependência dos territórios e pessoas em relação a atividade minerária e ao dinheiro advindo da reparação do desastre. As águas que deveriam contar com uma gestão comunitária são entregues a autoridade das corporações que prometem a reparação dos danos causados.

O extrativismo mineral possui diversas patologias que são inerentes a essa atividade. Os autores Alberto Acosta e Ulrich Brand apresentam as principais disfunções da atividade primário-exportadora a partir das lições contidas em “Pós- extrativismo e decrescimento: saídas do labirinto capitalista” (2017). O que Aílton Krenak acrescenta como economia do desastre, ao meu ver, pode ser acrescentado à imensa lista de patologias da atividade mineral no Brasil. Além da característica dependência que a atividade mineral instaura nos territórios, o contexto de reparação aos desastres causados por esse setor, instaura uma dependência de novo tipo e que está relacionada às indenizações e reparações devidas aos atingidos.

Entre indenizações e empréstimos transcorre o tempo sem a efetiva reparação. A expressão economia do desastre não é apenas retórica refere-se as práticas utilizadas pelas mineradoras que causaram o desastre e a sua Fundação Renova[9].

No que diz respeito a indenização Aílton Krenak realiza uma importante reflexão. Suas palavras são as seguintes: “Famílias que viviam de subsistência, de uma hora pra outra, passaram a viver da indenização. Essas pessoas deixam as suas vidas e passam a viver uma outra vida, que é a vida de quem vai administrar o dinheiro da indenização. É como se você se aposentasse antes do tempo, como se você tivesse sua vida suspensa e uma vida substituta pra você ir pra fila todo mês pegar dinheiro pagar conta e comprar coisa. É um confinamento. (grifo nosso).

Já os empréstimos ficam a cargo do Fundo Desenvolve Rio Doce. Trata-se de iniciativa da Fundação Renova gerida pelo Banco de Desenvolvimento de Minas Gerais (BDMG) e pelo Banco de Desenvolvimento do Espírito Santo (Bandes) que oferece linhas de crédito com taxa de juros a partir de 0,45% ao mês (uma das mais baixas do mercado – segundo a sua propaganda) e inclui a Tarifa de Análise e Abertura de Crédito (TAAC) no financiamento.

Outro aspecto de extrema relevância que mereceria um estudo à parte e que integra a economia do desastre, refere-se a violenta transformação da aldeia Krenak em um condomínio. Em entrevista publicada no dia 2 de novembro de 2020 pelo blog racismo ambiental Aílton conta que: O ambiente interno da reserva virou uma espécie de rally das empreiteiras, com retroescavadeira, máquinas enormes. Por que esse tanto de obra? Porque o caminhão, que traz a água, não tem vias para circular na reserva. Ela está sendo transformada em condomínio. Estamos sendo urbanizados, o que é uma violência. Aquilo ali é uma reserva, não é um bairro[10].

 

A mineração no contexto da pandemia da Covid-19 e o espetáculo midiático da reparação ao desastre

No que diz respeito a pandemia, o governo editou rapidamente a portaria nº: 135 de 28 de março de 2020 considerando a mineração como atividade essencial[11]. Nem mesmo o frágil contexto pandêmico foi capaz de refrear a voracidade das mineradoras, muito pelo contrário. Considerar uma atividade econômica extremamente predatória como o extrativismo mineral como essencial é uma total falta de comprometimento com vida, estou certa de que não digo nenhuma novidade frente ao governo genocida do presidente Jair Bolsonaro.

E no que diz respeito ao confinamento e ao distanciamento social imposto pela pandemia, Aílton faz um interessante paralelo, segundo ele: “Se a gente não tivesse na bacia do rio Doce o risco de contágio pela covid, as pessoas estariam confinadas da mesma maneira: esperando um caminhão-pipa, esperando a cesta básica e esperando o pagamento no dia certo do mês. Quer dizer, eles viraram dependentes de um sistema financeiro que eles não conhecem, que eles não têm capacidade de entender.”[12]

E retornando a pergunta que orienta esse texto, outro enfoque recai sobre o que se tem veiculado na mídia quando se trata de mostrar a reparação do desastre de Mariana/MG. As propagandas têm demostrado cenas bastante distantes da realidade. Sobre a publicidade da Vale S.A e da Fundação Renova de que estão recuperando a bacia do rio Doce Krenak indica que:  “É uma ofensa pras pessoas que perderam familiares, perderam a base de sua subsistência, de sua vida, assistir uma propaganda dizendo que tudo está voltando ao normal”.

E, segue afirmando que: “Recentemente, a Vale passou a veicular uma campanha de mídia, na televisão, nos horários de novela e tudo, dizendo pras pessoas que está recuperando, restaurando a bacia do rio Doce. Mostra alguns canteiros de obras e mostra imagens de rios com água limpa. Não sei onde eles arrumaram aquelas imagens, sugerindo que as pessoas estão pescando e produzindo, criando peixe na bacia do rio Doce. Eu não conheço nenhum lugar onde estão com criatórios de peixe dentro da bacia do rio Doce mas eles mostram isso nos filmes.” [13]

Para finalizar, busquemos meditar no que declarou Aílton Krenak para não permitirmos que a mineração venha a ocasionar mais estragos a água: “Nós somos água; e talvez a gente esteja perdendo tanto a nossa integridade como humanos, da nossa memória ancestral, a ponto de não mais nos reconhecermos como água, olhando para ela como uma coisa fora de nós. ”

 

Notas e Referências

ACOSTA, Alberto. O Bem Viver: uma oportunidade para imaginar outros mundos. 2ª ed. São Paulo. Autonomia Literária, Elefante Editora, 2016.

ACOSTA, Alberto. Extrativismo e neoextrativismo. Duas faces da mesma destruição. In: Descolonizar o imaginário: debates sobre pós-extrativismo e alternativas ao desenvolvimento / Gerhard Dilger, Miriam Lang, Jorge Pereira Filho (orgs): traduzido por Igor Ojeda – São Paulo: Fundação Rosa Luxemburgo. 2016b

ACOSTA, Alberto; BRAND, Ulrich. Pós-extrativismo e decrescimento. Saídas do labirinto capitalista. Buenos Aires: Editora Elefante, 2017.

SERRA, Cristina. Tragédia em Mariana: a história do maior desastre ambiental do Brasil. 1ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2018.

SILVA, Karen Graciella Gonçalves da.  Pluralismo jurídico e o desastre socioambiental de Mariana/MG: a resolução de conflitos decorrente do extrativismo mineral no Brasil. Dissertação. 2019

[1] No dia 05 de novembro se comemora no Brasil o dia da Cultura.

[2] Aílton Krenak é um importante líder da causa indígena e ambiental no Brasil, nascido à margem do rio Doce. Autor dos livros: Ideias para adiar o fim do mundo (2019); O amanhã não está à venda (2020) e a Vida não é útil (2020).

[3] Para conhecer sobre a história dos Krenaks acesse os documentários: Vivos na natureza morta,  Reformatório Krenak e Guerra sem fim. https://www.youtube.com/watch?v=4ng52AN3bmI ; https://www.youtube.com/watch?v=Qpx8nKVXOAo ; https://www.youtube.com/watch?v=DfkGVfkJpAM-

[4] As categorias compreendidas como patologias do extrativismo são utilizadas como meio de demonstrar as disfunções sociais, ambientais e ecológicas do extrativismo aplicado à mineração e forma criadas pelos pesquisadores Alberto Acosta e Ulrich Brand.

[5] A decisão na íntegra pode ser acessada neste link: http://www.mpf.mp.br/es/sala-de-imprensa/docs/decisao-acp-pesca.pdf. Para ler a notícia que comenta a decisão acesse: https://racismoambiental.net.br/2020/07/15/caso-samarco-justica-mantem-proibicao-da-pesca-na-foz-do-rio-doce/

[6] A proibição da pesca se deve a estudos que apontam a contaminação do rio e dos peixes por metais pesados, não havendo como garantir a segurança do consumo e tampouco a quantidade permitida a ser ingerida pelo ser humano. Um desses estudos pode ser acessado aqui: https://racismoambiental.net.br/2020/11/27/estudo-aponta-contaminacao-por-metais-em-peixes-do-rio-doce/

[7] Sobre a contaminação das encostas do rio Doce acessar a notícia: https://racismoambiental.net.br/2020/09/21/rejeitos-formaram-crostas-no-leito-do-rio-doce-perpetuando-a-contaminacao/

[8] A entrevista completa pode ser conferida no link: https://www.brasildefato.com.br/2020/11/06/ailton-krenak-a-mineracao-nao-tem-dignidade-se-pudesse-continuaria-escravizando

[9] A Fundação Renova foi criada no ano de 2016 para ser a responsável por conduzir a reparação ao desastre. www.fundacaorenova.org

[10] A entrevista na íntegra pode ser encontrada em: https://racismoambiental.net.br/2020/11/02/a-vida-das-familias-foi-atropelada-ha-cinco-anos-diz-ailton-krenak-sobre-desastre-no-rio-doce/

[11] A íntegra do Decreto nº135 de 23 de março de 2020 pode ser acessada em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-n-135-de-28-de-marco-de-2020-250261577

[12] Entrevista na íntegra: https://www.brasildefato.com.br/2020/11/06/ailton-krenak-a-mineracao-nao-tem-dignidade-se-pudesse-continuaria-escravizando

[13] Entrevista de Aílton: https://www.brasildefato.com.br/2020/11/06/ailton-krenak-a-mineracao-nao-tem-dignidade-se-pudesse-continuaria-escravizando

 

Imagem Ilustrativa do Post: Bento Rodrigues, Mariana, Minas Gerais // Foto de: Senado Federal // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/agenciasenado/22526418164

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