O respeito à dignidade humana do investigado e/ou do acusado

12/03/2016

Por Leonardo Isaac Yarochewsky – 12/03/2016

O princípio da dignidade da pessoa humana é um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito (art. 1º, III da CR). Decorre da formulação kantiana que o homem não pode ser tratado ou visto como meio ou instrumento, mas apenas como um fim em si mesmo. Do princípio da dignidade humana decorre, também, que todos devem ser tratados igualmente (princípio da igualdade) de forma digna.

O valor da dignidade da pessoa humana, fundamento do Estado Democrático de Direito, no dizer de Flávia Piovesan,

impõe-se como núcleo básico e informador do ordenamento jurídico brasileiro, como critério e parâmetro de valoração a orientar a interpretação e compreensão do sistema constitucional instaurado em 1988. A dignidade humana e os direitos e garantias fundamentais vêm a constituir os princípios constitucionais que incorporam as exigências de justiça e dos valores éticos, conferindo suporte axiológico ao sistema jurídico brasileiro”. [1]

No contexto do processo penal democrático a persecução penal (democrática) existe para preservar o indivíduo em relação às punições arbitrárias e injustas. Necessário deixar assentado que o indivíduo (acusado ou investigado) é a parte fraca na relação processual penal. É o indivíduo que necessita de proteção contra o poder punitivo estatal e não o contrário. De igual modo, é a tutela dos direitos e garantias fundamentais, bem como da liberdade é que deve limitar e prevalecer sobre o poder punitivo do Estado.

Segundo a lição de Hélio Tornaghi,

Levando em conta que o acusado é parte no processo e exatamente a parte fraca, contra a qual se pede a aplicação da lei, as ordenações amantes da justiça procuram cercá-lo de todas as garantias. Não se trata apenas de liberalismo e muito menos de liberalidades; por isso não falei em ordenações liberais e sim em ordenações que prezam a justiça, porque o Estado não poderá estar certo de haver feito justiça e, por isso mesmo, não tranquilizara o homem de bem, se não der ao acusado a maior e mais ampla, a mais ilimitada possibilidade de defender-se. Entre as grandes conquistas da humanidade, inscritas nas Constituições modernas figura essa”. [2]

Do reconhecimento do respeito à dignidade humana decorre que o homem não pode, em hipótese alguma, ser submetido a pena ou a tratamento degradante ou cruel, quer seja durante o curso do processo penal, na fase de cognição ou durante a execução da pena. “Mesmo na fase de investigação preliminar, em que há mero procedimento administrativo, o investigado/acusado é sujeito de direitos”. [3]

Lamentavelmente, em nome de uma fúria punitiva o braço repressor do Estado penal (Polícia e MP) vem, sob o pretexto de combater o crime e a impunidade, atropelando todos os direitos e garantias fundamentais do investigado/acusado com o aval de magistrados justiceiros que se transformam em verdugos.

A mídia através de poderoso aparato e do seu poder ilimitado - coberto pelo monopólio dos veículos de comunicação - de forma indecorosa e capciosa dá uma aparência de legalidade às operações empreendidas pelas inúmeras forças-tarefa em que a polícia e o Ministério Público se unem, como se paladinos da justiça fossem, no combate ao crime. Para a mídia só existe uma verdade: a dos órgãos da repressão.

A publicidade dos julgamentos e dos atos processuais representa uma garantia para o cidadão e, portanto, não pode se tornar uma arma contra este mesmo cidadão que a Constituição ambiciona proteger. A publicidade como princípio existe, especialmente, para proteger o indivíduo contra o perigo que representa as acusações secretas, contra os julgamentos parciais e arbitrários e, também, como garantia do devido processo legal.

Quando a publicidade expõe e populariza a vida privada e a intimidade do investigado ou do acusado, quando não da própria vítima, transforma-se em instrumento de opressão e de exploração da imagem, capaz de exercer através dos meios midiáticos influência, para o bem ou para o mal, nos julgamentos penais.

O resguardo da intimidade e da vida privada do investigado ou acusado decorre, também, do tratamento digno que deve ser dado tanto a um quanto ao outro. A Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, já dispunha que: “Ninguém será sujeito à interferência na sua vida privada, na sua família, no seu lar ou na sua correspondência, nem a ataques à sua honra e reputação”. De igual modo o Pacto de São José da Costa Rica, de 1969, proclama que: “ninguém pode ser objeto de ingerências arbitrárias ou abusivas em sua vida privada, na sua família, em seu domicílio ou em sua correspondência, nem de ofensas ilegais à sua honra e reputação” (art. 11, n. 2, do Dec. 678/92).

Apesar de tudo, viola-se “no curso da persecução penal, em ambas as fases e no processo de execução, o direito fundamental da intimidade e vida privada, de modo descuidado e sem qualquer justificação legal. Ora, sob o falso escudo de que se pretende restaurar a paz pública, quebrada com o cometimento da conduta, havida por penalmente relevante; ora, porque se pretende proteger os indivíduos contra a crescente criminalidade; ou, ainda, e pior, porque, pretensamente, se hierarquizam os direitos fundamentais. Basta só lembrar o abuso ritualista das algemas; ou o desnudamento humilhante de encarcerado, após motins ou rebeliões”. [4]

O magistrado Tourinho Neto, com toda sua experiência e sua veia garantista, observa que:

Os excessos praticados pelas autoridades policiais, pelo Ministério Público e pela mídia são condenáveis. O cidadão se vê invadido em suas esferas mais íntimas. Não há respeito nenhum ao homem. Veja, recentemente, um indivíduo suspeito da prática de um crime foi enviado dentro de uma roupa de cor cenoura de presidiário, algemado e jogado num camburão para ser ouvido pelo Ministério Público, cujo representante, de minuto em minuto, aparecia para divulgar à imprensa o que o investigado ia declarando!”. [5]

Como assevera Casara e Melchior, “o apelo populista de combate ao crime traz consigo toda sorte de espetacularização punitiva, colocando em tensão o núcleo democrático de proteção à dignidade”. Lamentavelmente, constata-se que a presunção de inocência é letra morta que o STF acabou de enterrar, a violação da honra, da vida privada e da intimidade do acusado é uma constante, embora assegurados na Constituição da República e nos pactos e tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário.

Além da inviolabilidade da honra, da imagem, da vida privada e da intimidade, são direitos do investigado e do acusado que decorrem da dignidade da pessoa humana: a presunção de inocência – ainda que rechaçada pelo STF -; a proibição de excessos; o direito a não se autoincriminar; o direito ao silêncio; o direito a autodefesa e a defesa técnica. [6] Infelizmente, como já dito, quase nunca respeitado, mormente quando se trata de investigado e acusado vulnerável.

Em nome do fantasmagórico combate ao crime, os direitos e garantias fundamentais são alocados no escaninho do esquecimento, no lado oculto do cérebro e em seu lugar, sob o manto vil de que os fins justificam os meios, são apresentadas as armas do Estado penal. Como se os direitos e garantias, bem como o tratamento digno, fossem uma exclusividade dos chamados “homens de bem”. Para os demais, “inimigos”, “homens do mau” ou “não pessoa”, no dizer infeliz e impróprio de Jakob’s, resta tão somente a fúria do Estado punitivista e as garras do Leviatã.

Como já observou Carnelutti,

O homem quando é suspeito de um delito, é jogado às feras, como se dizia uma vez dos condenados oferecidos como alimento às feras. A fera, a indomável e insaciável fera, é a multidão. O artigo da Constituição, que se ilude a garantir a incolumidade do acusado, é praticamente inconciliável com aquele outro que sanciona a liberdade de imprensa. Logo que surge o suspeito, o acusado, a sua família, a sua casa, o seu trabalho são inquiridos, investigados, despidos na presença de todos. O indivíduo, assim, é feito em pedaços. E o indivíduo, assim, relembremo-nos, é o único valor da civilização que deveria ser protegido”. [7]

Por fim, em um Estado que se pretenda democrático (democracia material) é imprescindível ter como inviolável o respeito à dignidade da pessoa humana, um dos postulados e fundamentos do próprio Estado democrático e de direito. Aqui, não importa se a pessoa é beata ou não; se é boa ou ruim; se é santa ou pecadora; se é amiga ou inimiga; se é primária ou reincidente; se tem bons ou maus antecedentes; se é branca ou negra; se é vermelha ou azul; se é católico ou ateu; se é rico ou pobre; se é homem ou mulher. Aqui importa, tão somente, se é pessoa. Sendo pessoa deve ser tratada com dignidade antes, durante e depois do processo.

Belo Horizonte, 10 de março de 2016.


Notas e Referências:

[1] PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 9ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 349.

[2] TORNAGHI, Helio. A relação processual penal. São Paulo: Saraiva, 1987.

[3] CASARA, Rubens R. R. e MELCHIOR , Antonio Pedro: dogmática e crítica. Conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013, p. 464.

[4] PITOMBO, Cleunice A. Valentim Bastos. Considerações sobre a tutela da intimidade e vida privada no direito processual penal. Revista Brasileira de Ciências Criminais, ano 7, n. 26 – abr.-jun de 1999. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999.

[5] Disponível em http://www.idecrim.com.br/index.php/artigos/279-2013-12-16-19-33-24

[6] Para maior aprofundamento ver CASARA, Rubens R. R. e MELCHIOR, Antonio Pedro: dogmática e crítica. Conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013.

[7] CARNELUTTI, Francesco. As misérias do processo penal. Trad. José Antonio Cardinalli. São Paulo: Conan, 1995.


Sem título-1

. . Leonardo Isaac Yarochewsky é Advogado Criminalista, Professor de Direito Penal da PUC Minas, Membro do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP). . .


Imagem Ilustrativa do Post: Scintillation. // Foto de: Iure Góes // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/thegoes/4813933436

Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode


O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura