Coluna Vozes-Mulheres / Coordenadora Paola Dumont
A alusão ao conto do século XIX de Hans Christian Andersen (a roupa nova do rei) se apresenta como uma alegoria aqui referenciada para ilustrar a necessidade de se afastar os discursos de justificação da pena, que tem como consectário necessário a legitimação do poder punitivo.
No conto, o Rei é seduzido por supostos alfaiates que diziam confeccionar vestimentas com tecidos especiais, que somente os inteligentes poderiam ver. Periodicamente o Rei incumbia a ministros visitas ao tear para conferir o andamento do trabalho e estes sempre retornavam maravilhados com o deslumbrante tecido, sem admitir que não conseguiam enxergar os fios. Afirmando prontas as vestes, o Rei promove um cortejo para exibir a novidade e, embora o público não pudesse ver os trajes do Rei, mostravam-se encantados, não querendo confessar a ausência de intelecto que supostamente impediria que enxergassem o tecido mágico. O desfile seguiu até que um garoto apontou e exclamou: "o Rei está nu"! A seguir o burburinho se instalou, e passaram os presentes a reconhecer a situação constrangedora suportada pela nobre majestade.
O convite que se faz aqui aos envolvidos na dogmática penal é o de retirar as lentes benevolentes do discurso penal para assumir que não resta à pena de prisão funções positivas — sobretudo a da ressocialização. O convite que se faz é o de conclamar a nudez das instituições jurídico penais, a revelar as suas constrangedoras funções que remanescem: de retribuição e neutralização, deixando de legitimar o ilegitimável, de inebriar-se com a falaciosa bondade da pena de prisão para admitir a violência que lhe é inerente.
As prevenções geral e especial, próprias do discurso penal acerca das funções da pena, servem como ferramentas para mistificar a realidade e trazer alento àqueles menos atentos ao cenário prisional. Neste sentido, Amilton Bueno de Carvalho menciona que "uma das maneiras mais 'confortáveis' de suportar o mal que se faz (determinar que alguém vá a presídio) é acreditar na mentira: presídio é 'necessário', é 'útil' e, dito mais fanaticamente, 'recupera'". [1]
A insistência na ressocialização como função da pena ignora que os ambientes carcerários "são espaços permanentes de violações e suspensões de direitos, chancelados nos fins e nas formas pelas instituições públicas (...) e, apesar de existir uma ordem jurídica que dispõe sobre como as penas devem ser executadas, tal ordem não é transgredida ocasionalmente, mas, de maneira estável, inalterável, perene".[2]
Quando se nega a agonia vivenciada pelas 758.676 [3] pessoas encarceradas, em espécie cegueira deliberada a naturalizar a barbárie, passa-se a legitimar o poder punitivo que tem promovido, "de modo indolor e soberano, a morte pelo Direito". [4]
É o Direito, através do discurso jurídico-penal e de seus instituições que, a pretexto de justificar a violência carcerária, encobre com vestes que não podemos enxergar na realidade carcerária a função que tem efetivamente restado à pena: neutralização, retribuição, destruição das subjetividades.
Lançando mão da reserva do possível, de um lado, e da sensação de insegurança, de outro lado, o discurso jurídico amplia as margens penais do intolerável, autorizando a uma execução penal sem garantias e racionalizando o ódio e a vingança ao afirmar — a pretexto de uma função ressocializadora sabidamente inexistente — que restará algo de bom após a experiência carcerária.
É necessário confrontar o Direito Penal com a realidade experienciada de forma que o discurso sobre a pena não ignore a pena que é de fato executada. O descompasso entre o que está previsto nas letras frias dos livros e das leis e o que é vivenciado "no chão da cadeia" faz ecoar no discurso do senso comum que sustentamos hotéis para bandidos viverem a boa vida — o que, em última medida, levará à legitimação políticas públicas voltadas ao endurecimento das penas.[4]
Assim, em vez de se conferir à prisão uma função ressocializadora sabidamente inalcançável, há que assumir a irracionalidade do poder punitivo admitindo que "a existência do cárcere não logrou ter sustentação racional até hoje: todas as suas promessas legitimadoras são destruídas pela realidade". [6]
Enquanto fingimos não perceber que não resta bondade na pena, a continuidade da violência no cárcere vai perenizando de tal sorte a naturalizá-la, como se insuperável fosse. "É o que dá pra fazer". Este conformismo subjuga qualquer pretensão de alteração da realidade passando a dogmática penal a reproduzir a ideologia do poder punitivo.
A condutora da ratio do discurso jurídico-penal passa a ser a ideologia punitiva em vez de, em sentido contrário, que esta seja limitada por aquele. Toma lugar o pensamento conformista-pessimista de impossibilidade de "contenção do poder punitivo através de um marco normativo, [sem descuidar que] é precisamente no espaço deixado em aberto entre o programa e o mundo real que a exceção [no sentido de Agamben ou Benjamin] prospera". [7]
Ao convocar o leitor a exclamar a nudez da pena em seus fins benévolos, o que se pretende é estimular que o discurso penal não mais compactue com a fatalidade da falência do sistema penal, no sentido de frear a busca por justificativas próprias de um conformismo implicitamente amparado na reserva do possível, sob pena de assegurar a permanência deste estado de violações.
O discurso penal deve volver-se à sua posição de resistência ao poder punitivo, à sua vocação de contenção deste poder, deixando de legitimar a barbárie escondida nas vestes de funções benfazejas da pena sabidamente inexistentes. Isso porque "sem a contenção jurídica (...) o poder punitivo ficaria liberado ao puro impulso das agências executivas e políticas e, por conseguinte, desapareciam o Estado de direito e a própria república".[8]
Não significa que, a pretexto de uma finalidade irrealizável, se permita acentuar as características deteriorantes do aprisionamento [9], como se desonerasse o Estado de assegurar o mínimo existencial a seus custodiados.
O que se defende é que a admissão de que a pena de prisão não traz em si uma finalidade minimamente digna é o primeiro passo para se pensar meios normativos de contenção do poder punitivo, que perpassam pela oferta de "possibilidades de que os apenados diminuam seu nível de vulnerabilidade ao poder punitivo (possibilidade de seleção criminalizante)." [10].
Trata-se de uma proposta com lastro na realidade experenciada no cárcere: que os juristas assumam a impossibilidade de implementação das "ideologias re" [11] e a inevitável produção de danos pelo encarceramento, para então promover a implementação de ferramentas normativas a promover a redução dos danos na execução pena.
O que pode parecer, à primeira vista, tão inalcançável quanto a ressocialização, deixa de soar impraticável se pensarmos no rol de garantias previstas no texto constitucional. Em grande medida, o que vemos em sede de execução penal, é o emprego subversivo dos princípios que serviriam de garantias aos apenados. [12]
O manejo da legislação através de sua interpretação e aplicação, em matéria de direito carcerário, pode ser apontado como um mecanismo de prolongamento do encarceramento sustentado pela irracionalidade do poder punitivo que, no afã de dar respostas rápidas ao complexo problema da segurança pública, promove a deformação jurídica para sustentar fins que não servem à pena. [13]
Quando se fala na contenção normativa do poder punitivo como bandeira a ser hasteada pelo discurso jurídico-penal, em uma proposta redutora de danos, passamos invariavelmente pela necessidade de mudança na mentalidade dos agentes envolvidos com o processo de aplicação e execução das penas, de tal sorte a não se admitir a utilização estratégica das normas de garantias contra o sujeito. E aqui, o óbvio precisa ser dito.
Assim, em detrimento da defesa do discurso falacioso da ressocialização a legitimar o poder punitivo que recairá, inevitavelmente, na manutenção da violência e do arbítrio, convidamos os juristas a exclamar a nudez da pena, em toda a sua irracionalidade, com a espontaneidade do garoto que apontou a nudez do Rei.
Notas e Referências
[1] CARVALHO, Amilton Bueno de. Direito Penal a marteladas: algo sobre Nietzsche e o Direito. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013, p. 101.
[2] ALEIXO, Klelia Canabrava; PENIDO, Flávia Ávila. Execução penal e resistências. Belo Horizonte: Editora D'Plácido, 2018, p. 36.
[3] BRASIL. MINISTÉRIO DA JUSTIÇA E SEGURANÇA PÚBLICA. DEPARTAMENTO PENITENCIÁRIO NACIONAL. Total de presos no Brasil no sistema penitenciário: período de janeiro a junho de 2019. Brasília: Ministério da Justiça e Segurança Pública. Departamento Penitenciário Nacional, 2019. Disponível em <https://app.powerbi.com/view?r=eyJrIjoiMTVjZDQyODUtN2FjMi00ZjFkLTlhZmItNzQ4YzYwNGMxZjQzIiwidCI6ImViMDkwNDIwLTQ0NGMtNDNmNy05MWYyLTRiOGRhNmJmZThlMSJ9> Acesso em 29 fev. 2020.
[4] LEAL, Rosemiro Pereira. Relativização inconstitucional da coisa julgada: temática processual e reflexões jurídicas. Belo Horizonte: Del Rey, 2005, p. 115.
[5] Assim, "a função real de ampliar as redes de vigilância e de controle, sofisticando as formas de imposição da dor, se oculta pelos discursos de humanização da pena (funções declaradas), apresentando ao público consumidor do sistema penal um imbatível e sofisticado discurso de legitimação". CARVALHO, Salo de. Criminologia, garantismo e teoria crítica de los derechos humanos: ensayo sobre el ejercicio de los poderes punitivos. Revista de Derechos Humanos y Estudios Sociales, año 1, nº1, Enero/junio, 2009, p. 165. (tradução livre)
[6] CARVALHO, Amilton Bueno de. Direito Penal a marteladas: algo sobre Nietzsche e o Direito. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013, p. 100.
[7] KAHLED JR., Salah H. Justiça social e sistema penal. 2. ed. ver. — Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 33.
[8] ZAFFARONI, Eugenio Raúl et al. Direito penal brasileiro. v. 1. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 40.
[9] ZAFFARONI, Eugenio Raúl et al. Direito penal brasileiro. v. 1. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 113.
[10] ROIG, Rodrigo Duque Estrada. Execução Penal: teoria crítica. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 25. O autor faz referência à lição de Eugenio Zaffaroni e Nilo Batista.
[11] ZAFFARONI, Eugenio Raúl et al. Direito penal brasileiro. v. 1. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 126.
[12] Sobre o tema, Cf. ALEIXO, Klelia Canabrava; PENIDO, Flávia Ávila. A subversão principiológica na execução penal e o princípio ne bis in idem. Delictae: Revista de Estudos Interdisciplinares sobre o Delito, v. 2, p. 227-249, 2017.
[13] Em outro texto listamos um rol de situações em que foi promovida interpreção in malam partem na execução penal. Cf. ALEIXO, Klelia Canabrava; PENIDO, Flávia Ávila. A interpretação in malam partem na execução penal da exceção. Revista da Faculdade de Direito do Sul de Minas, v. 35.1, p. 1-20, 2019.
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