Por Adriano Almeida - 20/07/2016
Seguindo a linha traçada pelo meu amigo e colega Delegado de Polícia Civil, Dr. David Tarciso Queiroz de Souza, quando da inauguração da coluna “persecução penal em perspectiva”, saliento que o tema explorado no presente artigo não se esgotará ao fim da exposição, eis que se trata de um campo vasto, extremamente fértil, e que merece ser aprofundado no âmbito da academia.
Trago ao conhecimento dos leitores, mais um "causo", vivenciado em uma delegacia de polícia situada em nosso reino (cujo nome ainda precisamos encontrar).
Pois bem, vamos aos fatos! Certo dia, por volta das 23h30min, eis que surgem na delegacia alguns guardas do reino, os quais trazem consigo um homem, com aproximadamente 1.67 alt, magro, cabelos pretos, afrodescendente, e uma jovem, extremamente bela, sob a alegação de que o primeiro, na companhia de outro jovem (não localizado), mediante o uso de uma arma de fogo, teria subtraído um veículo BMW da referida jovem.
Nos termos do que preceitua o art. 304, do CPP[1], deu-se início à lavratura do auto de prisão em flagrante. Realizada a oitiva do guarda do reino, ora condutor, disse ele que após obter com a vítima as características físicas dos criminosos, saiu ao encalço dos "masculinos", tendo logrado êxito na captura de um deles algum tempo depois. A vítima, por sua vez, disse ter reconhecido o conduzido, sem dúvida alguma, como sendo um dos autores do delito. Indagada a respeito de como foi realizado o reconhecimento, relatou que os guardas a levaram até a carruagem, onde lhe mostraram o criminoso.
O delegado de polícia, convencido de que as respostas do condutor e da vítima eram robustas o suficiente para tornar fundada a suspeita contra o conduzido, mandou recolhê-lo à prisão, prosseguindo nos atos do inquérito até ser concluído.
Ocorre que ainda restava a identificação do coautor da empreitada, motivo pelo qual, outra delegacia, especializada em crimes contra o patrimônio, iniciou minuciosa investigação, com a utilização dos mais diversos meios, tendo ao final, identificado 02 homens como sendo os prováveis autores do roubo.
Os suspeitos, nos termos do que preceitua o art. 226, do CPP[2], foram colocados em uma sala destinada a reconhecimentos, ambos ao lado de 02 outras pessoas com quem possuíam semelhança, oportunidade em que a vítima identificou-os como sendo os criminosos que subtraíram sua BMW e seu aparelho celular.
Assim, inquirida mais uma vez, agora, a respeito do reconhecimento informal, aquele realizado quando o conduzido ainda estava no interior da carruagem, disse que havia se "equivocado", pois o cidadão apresentado pelos guardas era "parecido" com um dos criminosos. Em razão exposto, o inocente restou solto, tendo permanecido preso por aproximadamente 02 meses.
No caso em tela, existiu desacerto por parte do delegado de polícia ao considerar válido o reconhecimento pessoal realizado em desconformidade com o art. 226, do CPP?
O delegado de polícia que lavrou o auto de prisão em flagrante agiu com fundamento na orientação jurisprudencial e doutrinária sobre o tema, a qual assevera que as regras estipuladas no art. 226, do CPP não são inflexíveis.
Nesse rumo, o Superior Tribunal de Justiça[3] "firmou o entendimento no sentido de que as disposições insculpidas no artigo 226, do CPP configuram uma recomendação legal, e não uma exigência, cuja inobservância não enseja a nulidade do ato"
Na doutrina[4], também há o entendimento de que a inobservância de tais disposições tem somente um reflexo, o de que prova "apenas não receberá o cunho de reconhecimento de pessoa ou coisa, podendo constituir-se numa prova meramente testemunhal, de avaliação subjetiva, que contribuirá ou não para a formação do convencimento do magistrado".
Com a devida vênia, nos parece que aceitar o reconhecimento pessoal efetivado sem as devidas formalidades, ainda que seja com o valor de prova meramente testemunhal, não só viola a Lei, bem como pode dar ensejo ao cerceamento da liberdade de um inocente.
Caberia ao delegado de polícia que lavrou o auto de prisão em flagrante, na condição de “primeiro garantidor da legalidade e da justiça”[5], refutar o reconhecimento pessoal realizado, e de pronto, relaxar a prisão captura[6], com a consequente soltura do conduzido, eis que além de ser um elemento de informação produzido de forma ilícita[7], possivelmente, foi contaminado, pois o resultado foi sugestionado pelos guardas do rei.
Diante disso, no caso em comento, de acordo com a Teoria dos Jogos aplicada ao Processo Penal, tratou-se de uma das modalidades de doping processual[8], em que os jogadores (guardas do rei) fraudaram o jogo, ainda que na fase pré-processual, na busca de recompensa, que consistiu no primeiro momento, na prisão em flagrante do inocente, simplesmente por possuir as mesmas características físicas dos verdadeiros autores da empreitada criminosa, e no segundo momento, na condenação do cidadão reconhecido ilegalmente.
Notas e Referências:
[1] Art. 304. Apresentado o preso à autoridade competente, ouvirá esta o condutor e colherá, desde logo, sua assinatura, entregando a este cópia do termo e recibo de entrega do preso. Em seguida, procederá à oitiva das testemunhas que o acompanharem e ao interrogatório do acusado sobre a imputação que lhe é feita, colhendo, após cada oitiva suas respectivas assinaturas, lavrando, a autoridade, afinal, o auto.
(...)
[2] Art. 226. Quando houver necessidade de fazer-se o reconhecimento de pessoa, proceder-se-á pela seguinte forma:
I - a pessoa que tiver de fazer o reconhecimento será convidada a descrever a pessoa que deva ser reconhecida;
Il - a pessoa, cujo reconhecimento se pretender, será colocada, se possível, ao lado de outras que com ela tiverem qualquer semelhança, convidando-se quem tiver de fazer o reconhecimento a apontá-la;
III - se houver razão para recear que a pessoa chamada para o reconhecimento, por efeito de intimidação ou outra influência, não diga a verdade em face da pessoa que deve ser reconhecida, a autoridade providenciará para que esta não veja aquela;
IV - do ato de reconhecimento lavrar-se-á auto pormenorizado, subscrito pela autoridade, pela pessoa chamada para proceder ao reconhecimento e por duas testemunhas presenciais.
Parágrafo único. O disposto no no III deste artigo não terá aplicação na fase da instrução criminal ou em plenário de julgamento.
[3] STJ, HC 316294, Rel. Min. Leopoldo de Arruda Raposo, julgado em 2.6.15.
[4] NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. 11. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. p. 528.
[5] STF, HC 84548/SP. Rel. Ministro Marco Aurélio. Julgado em 21/6/2012.
[6] ZANOTTI, Bruno Taufner; SANTOS, Cleopas Isaías. Delegado de Polícia em Ação. Salvador: JusPodvm, 2014, p. 299: O art. 304, § 1º, do CPP, portanto, deve ser interpretado no sentido de que o delegado de polícia poderá "relaxar" a prisão captura, por entender ausente a justa causa para a sua formalização".
[7] Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
LVI - são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos;
[8] MORAIS DA ROSA, Alexandre. Guia Compacto do Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos. 3. ed. Rev. e Atual. Florianópolis: Empório do Direito, 2016. p. 191-194.
. . Adriano Almeida é Especialista em Direito Penal e Processo Penal pela Universidade do Vale do Itajaí/SC, Delegado de Polícia Civil do Estado de Santa Catarina. . .
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