Coluna Defensoria e Sistema de Justiça / Coordenador Jorge Bheron
O conhecimento humano, em vários ramos da ciência, produzido desde a Grécia Antiga, e reconhecido como “válido” e transmitido e perpetuado ao longo da história veio esmagadoramente de homens brancos. Movimentos multiculturais vêm tentando modificar essa realidade, com o intuito de contestar o privilégio epistêmico detido por essa elite do pensamento.
Todavia, apesar de certa convergência atual quanto à necessidade de expandir os horizontes de compreensão da ciência para além do estereótipo padrão do homem branco, ainda há vozes que pregam que isso não deveria ser objeto de inquietações, como a filósofa Susan Haack.
Ela sustenta que movimentos que defendem a expansão do conceito de sujeito de conhecimento – denominados pela própria filósofa de contracultura epistemológica – partem de premissas errôneas de que os padrões de conhecimento confiável estão ligados à cultura e que as investigações são inevitável e disfarçadamente políticas[1].
Talvez – tenho minhas dúvidas – essa tese possa ser uma realidade nas Ciências naturais. No entanto, como aceitar que a cultura e a ideologia dominante não influenciam o modo de produzir conhecimento na área das ciências sociais, como no Direito?
De fato, considera-se que a ciência é uma síntese da teoria e da prática, sendo, portanto, o conhecimento científico condicionado pelos valores e pela ideologia dominante no momento histórico em que é construído.
Assim também o é o Direito, de acordo com Marques Neto[2]. Inserido no meio social, a construção da ciência jurídica inevitavelmente se influencia não somente pelas teorias, mas também pela prática forense e pelo ponto de vista de quem a exerce, o que não pode ser ignorado por quem deseja analisar a evolução do Direito.
Certamente, a despeito de divergências doutrinárias sempre existentes, se os sujeitos de conhecimento são, em sua maioria, provenientes de poucos segmentos da sociedade, a produção acadêmica e o manejo das normas, na prática, são consequentemente limitados, em detrimento de um Direito construído a partir de uma pluralidade de cosmovisões.
Essa restrição epistemológica se deve ao modo como o Direito brasileiro é tradicionalmente concebido: ora como um sistema de normatividade emanado do Poder Público, denotando uma visão normativista per si, como se estivesse tivesse alheio a outros fenômenos sociais, quando na verdade sofre fortes influências do sistema político e ideológico dominante em cada sociedade; ora como um conjunto de princípios intangíveis e imutáveis, anteriores ao próprio ser humano, que o regulam, como um Direito supra-social, de ordem divina, acessível somente pela razão prática[3].
Iniciei como essa breve digressão para tentar compreender e, ao mesmo tempo, explicar como o sistema de justiça e o Direito brasileiro possuem tantos pontos cegos[4] e não conseguem lidar de modo satisfatório com questões delicadas, como o racismo estrutural.
A partir dessa concepção, Sílvio Almeida alerta que “o racismo é uma decorrência da própria estrutura social, ou seja, do modo “normal” com que se constituem as relações políticas, econômicas, jurídicas e até familiares, não sendo uma patologia social e nem um desarranjo institucional. O racismo é estrutural”. Assim sendo, “o racismo, como processo histórico e político, cria as condições sociais para que, direta ou indiretamente, grupos racialmente identificados sejam discriminados de forma sistemática.”[5].
Logo, não seria exagero afirmar que tanto a teoria jurídica quanto a práxis e o sistema de justiça não estão imunes ao racismo estrutural.
Portanto, não se pode limitar a discussão sobre tal fenômeno no Direito à análise dos crimes de racismo e de injúria racial, nem à (in)suficiência de suas penas, apesar de se considerar relevante o debate sobre sua eficácia.
O corte epistemológico a ser dado se direciona ao sistema de justiça em si, a despeito de também não se ignorar a importância do debate no nível da edição de leis, afinal o legislador brasileiro ao longo da história teve e tem cor e gênero: homem e branco. E não me utilizo de dados estatísticos, porque basta olhar para a composição do Congresso ao longo do tempo. Portanto, a realidade de quem edita as leis pouco representa uma camada massiva da população.
Voltando ao sistema de justiça, para além da legislação penal simbólica, refiro-me à guerra contra as drogas, que tem vítimas determinadas; à criminalização de manifestações culturais de jovens na periferia por meio da forte repressão; à tortura policial naturalizada nas audiências de custódia, em que relatos de agressão, muitas vezes, são descredibilizados, sem maiores investigações; à omissão ante o abuso de autoridade de alguns agentes de segurança pública no cotidiano, legitimados pelo Poder Judiciário, ao homologar prisões em flagrantes nitidamente ilegais; à banalização dos autos de resistência e repetição das execuções extrajudiciais de vidas negras[6]; ao desrespeito à inviolabilidade dos domicílios na periferia, em nome do combate à criminalidade;
Ao reconhecer a legalidade desse tipo de prova, por exemplo, o Judiciário legitima que a prática prossiga, sem sequer refletir que, ao dar carta branca pra essas condutas, lares de pessoas inocentes são invadidos, com violência e impiedade. Quando o juiz considera lícita essa prova, o aviso é: podem continuar invadindo sem mandado, os fins justificam os meios, uma apreensão de drogas em uma residência legitima a invasão de dez outras casas de pessoas inocentes. Já nos lares de bairros nobres das cidades brasileiras isso é inconcebível, justamente porque a elite jurídica se identificaria com eventual violação a direitos nesses locais, haja vista que o exercício de alteridade nessas hipóteses seria mais imediato.
O que todas essas práticas têm em comum? O seu público alvo, majoritariamente composto de pessoas negras.
Reconhece-se a problemática da crescente violência urbana e da sensação de impunidade da sociedade em geral. Todavia, existe um outro problema tão grave quanto, para o qual o Direito e as pessoas em geral tendem a enxergar com olhos menos compassivos: a realidade de sofrimento da população negra e periférica desse país. A repercussão e comoção com a morte de João Pedro, no Rio de Janeiro, e de George Floyd, nos Estados Unidos, ressoam como um estopim, a ponta de um iceberg bem mais profundo que tem endereço no cotidiano da periferia.
Ao se deparar com dados, percebe-se que, em 2018, de acordo com o 13º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 75,4% das 6.220 vítimas fatais de intervenções policiais no Brasil em 2018 eram negros. Por outro lado, os policiais vitimados, colocados como cobaias nessa guerra urbana e que também perdem suas vidas, são em sua maioria negros[7]. Como o Estado pode matar tanto? Seria mera coincidência que essas mortes e essas prisões aconteçam prioritariamente entre essa fração da população?
E aqui o propósito não é estigmatizar os agentes de segurança pública, porque nem todos compactuam com essa política. Além disso, somente responsabilizar e execrar a vida e a carreira daqueles que cometem excessos também não é uma medida que traz bons reflexos na transformação da realidade.
É necessário pensar de modo mais conjuntural, com uma mudança do Direito, a começar pelo ensino nas faculdades, passando pela conscientização nas instituições como a Defensoria Pública, Ministério Público, OAB, Secretarias de Segurança e Poder Judiciário, de modo a finalmente ampliarmos os horizontes de compreensão de quem interpreta as normas e faz o Direito na teoria e na prática.
O movimento Vidas Negras Importam precisa invadir o Direito. A análise epistemológica da ciência jurídica precisa contemplar a mulher e o homem preto e pardo da periferia. Apesar de ser uma medida indispensável, não se pode esperar que essas pessoas venham a ocupar mais cargos nessas instituições. A mudança precisa acontecer com os membros que hoje as integram.
E aqui não quero me resumir aos dados de reflexão sobre o encarceramento em massa: vai muito além disso. O sistema de justiça precisa refletir sobre a realidade em que muitos de seus jurisdicionados se encontram: o de ser preto; o de nascer periférico; o de perder amigos e familiares com certa frequência; o de crescer com olhares de desconfiança por pequenas e grandes autoridades; o de estar em atitude suspeita pelo simples fato de ser você mesmo; o de ter sua palavra presumidamente desacreditada em audiências de custódia e de instrução criminal; o de ter estigmatizada sua manifestação cultural; o de ver sua luta taxada de “mimimi”.
Que a empatia entre na pauta! Que não tenhamos que esperar a próxima geração para ampliar o conceito de sujeito de conhecimento no Direito brasileiro, sem prejuízo de políticas que venham a pluralizar de fato o sistema de justiça.
E a Defensoria Pública tem um papel central nesse processo de transformação, já que goza do fortúnio de caminhar ao lado dessa população que precisa ser visibilizada. Cada vez mais, compete às defensoras e defensores públicos estarem atentos a tais violações a direitos e marcarem posição, de modo firme, nas audiências de custódia, nas audiências de instrução e julgamento, nas sessões do Tribunal do Júri e também no peticionamento, trazendo a realidade de seus assistidos, e valorizando suas alegações.
Seria oportuno, por exemplo, que o defensor, em seu peticionamento, expusesse ao magistrado os dados da crescente letalidade policial no país e no Estado onde atua, a fim de questionar a presumida credibilidade dos depoimentos dos agentes de segurança pública, num processo que apura mortes decorrentes de intervenção policial. Ou então que a defensora incluísse em suas alegações orais argumentos provenientes da criminologia crítica sobre o conceito de “atitude suspeita” e o quanto essa definição pode ser racista e estereotipada. E ainda que o defensor, ao alegar que a prova decorrente da invasão de domicílio é ilícita, não se resuma a reproduzir precedentes do STJ, como argumento de autoridade, mas que explore a razão de ser dessa norma.
Para além da atuação judicial, a Defensoria Pública pode contribuir também para essa causa, participando de reuniões com coletivos populares, assumindo uma postura antirracista nos conselhos em que tem assento e voz, promovendo interlocução entre o Executivo e o Legislativo, inclusive com a apresentação de anteprojetos de leis e de políticas públicas.
Esse é um artigo-desabafo-manifesto de uma defensora pública que atua na área criminal e que, mesmo do alto do seu privilégio e de não ser vítima dessas práticas, tem dificuldades de ter essa angústia compreendida não somente pela sociedade, mas também pelos cientistas e operadores do Direito.
Notas e Referências
[1] HAACK, Susan. Manifesto de uma moderada apaixonada. Ensaios contra a moda irracionalista. Tradução de Rachel Herdy. Rio de Janeiro: Loyola, 2011, p. 223.
[2] MARQUES NETO, Agostinho Ramalho. A ciência do Direito: conceito, objeto, método. 2.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 53.
[3] MARQUES NETO, Agostinho Ramalho. A ciência do Direito: conceito, objeto, método. 2.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 179.
[4] Rui Cunha Martins aduz que o Direito enquanto ciência possui pontos cegos. Conforme disserta o autor português, assim como a História, a Medicina e a Comunicação Social, o Direito lida com pontos cegos, consubstanciais ao exercício do olhar, tendo em vista que “especializam-se no visível; acreditam numa devolução da visibilidade ao que a não tem; aceitam responder a expectativas de trazer à luz aquilo que se acredita ter-lhe sido roubado. É por isso que têm sempre, por definição, pontos cegos”. MARTINS, Rui Cunha. O ponto cego do Direito. The Brazilia lessons. 3.ed. São Paulo: Editora Atlas, 2013, p. xvi.
[5] ALMEIDA, Silvio Luiz de. Racismo Estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019, p. 50.
[6] ZACCONE, Orlando. Indignos de vida – a forma jurídica da política de extermínio de inimigos na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Revan, 2015.
[7] FÓRUM NACIONAL DE SEGURANÇA PÚBLICA. 13º Anuário Brasileiro de Segurança Pública. 2019. Disponível em: http://www.forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2019/09/Anuario-2019-FINAL-v3.pdf. Acesso em 07 jun. 2020.
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