O que você, “cidadão de bem” tem a ver com Hitler, com a Ku Klux Klan e com a sonegação de direitos da população carcerária?

11/06/2016

Por Carlos Augusto Ribeiro e Guilherme Silva Araujo - 11/06/2016

1 INTRODUÇÃO

O conceito de vulnerável, advém do termo de origem latina, vulnerabilis, que originalmente significa lesão, corte ou ferida exposta, sem cicatrização, feridas sangrentas com sérios riscos de infecção. Já para o HOUAISS vulnerável é aquele que pode ser fisicamente ferido; sujeito a ser atacado, derrotado, prejudicado ou ofendido.

Neste trilho, em linhas gerais, verifica-se condição de vulnerabilidade onde em uma disputa entre dois sujeitos, um dele esteja em desvantagem, consequentemente deixando o outro, em posição confortável e de superioridade.

Assim, consideram-se vulneráveis as mulheres em relação aos homens, as crianças em relação aos adultos, os negros e índios em relação aos brancos, os homossexuais em relação aos heterossexuais, dentre outros exemplos.

Tal relação de inferioridade, nasce, via de regra, quando uma classe dominante, estipula e determina conceitos que lhes sejam simpáticos, e determinam como anormal, ou inferior aquilo que não estiver de acordo com tais conceitos.

Essa criação de sujeito dominante e dominado (vulnerável), com comportamento aceito e reprovável, pode, a nosso juízo, desenvolver-se de forma inconsciente ou planejada, o que não diferenciará os efeitos na prática, posto que já estabelecidos os conceitos de comportamento aceitos e não aceitos.

Não obstante os grupos vulneráveis acima mencionados, o modelo neoliberal de culto ao capital com estímulo frenético ao consumo, unido à negligencia estatal quando à promoção de políticas públicas, juntamente com outros fatores socioculturais fez do Brasil um país com números alarmantes de violência o que acarretou em um curto período de tempo um aumento incontrolável da população carcerária, a qual com a supressão de direitos e garantias constitucionais passou a figurar em condição de vulnerabilidade em relação ao estado.

2 O PRESO COMO SUJEITO VULNERÁVEL

Conforme explanado no tópico acima, atualmente no Brasil, a população carcerária, diante de alguns fatores que serão destrinchados, passou a figurar como um grupo vulnerável na relação que detém com o Estado, sofrendo as consequências dessa vulnerabilidade antes, durante e após o cumprimento da pena, sendo submetida a tratamento degradante e violento, com a supressão de direitos legalmente garantidos.

Nesse contexto, objetivando garantir que a população presa fosse punida tão somente com a privação de sua liberdade, foi promulgada a Lei 7210, de 11 de julho de 1984 (Lei de Execuções Penais), a qual traz em seu bojo 204 (duzentos e quatro) artigos que tratam sobre as formas de cumprimento das penas impostas ao apenado, estabelecendo diretrizes e visando, primordialmente, a reintegração do preso à sociedade, porém, a olhos vistos, o sistema carcerário nacional ainda não se sujeitou às normas dispostas na Lei de Execução Penal, cuja pedra angular é a humanização do apenado.

Não há, nesse sistema, reconhecidamente, unidades prisionais adequadas ao regime de pena imposto pela aludida lei, pois é facilmente perceptível que os apenados estão sujeitos ao mal-estar nas acomodações, constrangimento ilegal e impossibilidade de readaptação à vida social, ocorrendo, em bem verdade, a inserção do preso na condição de vulnerável, ante a solene afronta à Lei de Execução Penal.

Nessa órbita, é necessário nos remetermos aos direitos previstos no Artigo 6º da constituição, para melhor contextualizarmos a vulnerabilidade do preso gerado pelo abandono estatal:

Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.

Em conjunto com tal dispositivo, necessário apontar que o Artigo 3º da lei de Execuções Penais, determina que serão assegurados ao preso todos os direitos não atingidos pela lei ou pela sentença, verbis:

Art. 3º Ao condenado e ao internado serão assegurados todos os direitos não atingidos pela sentença ou pela lei.

Desta forma, realizando uma interpretação conjunta dos dois dispositivos, nos torna claro que ao preso serão garantidos todos os direitos daquele que não esteja no sistema prisional, salvo, obviamente, a liberdade, isto porquanto as sentenças ou decisões que determinam a prisão não determinam a retirada de direitos sociais, mas tão somente a liberdade, assim como também não há lei neste sentido.

Percebe-se que, dessa forma, há um verdadeiro abandono do Estado para com a pessoa presa, na medida em que descumpre solenemente o comando constitucional, vez que é fato notório que ao preso brasileiro -- salvo raríssimas exceções -- não são garantidos os direitos direito à saúde, educação, alimentação, lazer, segurança, e etc.

Ocorre que o Estado, como sujeito de deveres para com a população presa, deixa de atender as demandas constitucionais, como forma também de atender as expectativas de uma parcela maniqueísta da população que se regozija com o sofrimento do preso, visto como inimigo, portanto, sem direito algum.

Em outra linha, na atual conjuntura política, o homem público se furta de atender as demandas prisionais, receoso justamente de represálias nas urnas, ante este discurso da população não criminalizada de que não se tem que investir em qualidade de vida do preso, quando existem tantas outras necessidades. O que essa parcela da população não percebe, ou faz de conta não perceber, é que talvez seja esta ausência total de estrutura social ao preso que esteja gerando os atuais índices de violência. 

3 A NECESSIDADE DE IMPLEMENTAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS NO SISTEMA PRISIONAL 

Aqui, não se olvida que a conceituação dos direitos humanos é tarefa hercúlea, dado o seu grau de abrangência e seu entrelaçamento com diversas e complexas áreas da sociedade, transcendendo a mera dogmática jurídica, de modo que hoje, parece-nos mais adequado, adotarmos uma posição crítica em relação aos direitos humanos, sob a perspectiva de diversos objetos, para, a partir daí, extrairmos seus nuances do ponto de visão proposto.

É fato insofismável que a consciência universal dos direitos humanos é cada vez mais forte, na medida em que se torna mais evidente o modelo de sociedade marcada pelas notas da exclusão, do massacre, das desigualdades sociais e da injustiça institucionalizada, de maneira que até o sistema econômico influencia sobremaneira a incidência dessa mentalidade, devendo-se adequar as raízes ideológicas dos direitos em tela ao sempre volúvel panorama social. Aliás, sobre o tema, cumpre trazer à baila as seguintes palavras Joaquín Herrera Flores:

Cremos que chegou a hora de pensar se tal marco conceitual e ideológico, situado no mais puro paradigma jusnaturalista, facilita ou dificulta práticas sociais de promoção dos direitos em um contexto de pós-guerra fria e de legitimações economicistas das políticas econômicas e sociais tanto em nível nacional quanto global.

Hoje em dia, depois das grandes transformações neoliberais do sistema de relações baseado no capital, temos uma perspectiva mais ampla para abordar os direitos humanos a partir de novas circunstâncias econômicas, sociais, políticas e culturais com que nós, comprometidos com a geração de disposições críticas e antagônicas frente a essa ordem global injusta e desigual, nos deparamos. Assim, é necessário contextualizar as polêmicas em que nos inserimos, a fim de concretizar a ideia da dignidade a partir do contexto do “novo espírito do capitalismo”. (HERRERA FLORES, 2009. p.105)

Nessa perspectiva, os direitos humanos tanto em alguns postulados internacionais quanto nacionais foram formalmente efetivados, desde a Declaração Universal dos Direitos Humanos até dispositivos constitucionais no ordenamento jurídico pátrio, de modo que esse entrelace e compromisso da comunidade internacional e dos Estados, assumem suma importância na promoção e proteção desses direitos, os quais, inegavelmente, têm a sua raiz na garantia do mínimo digno ao ser humano.

Nesse tom, dentro processo penal, no qual há a maior tensão entre a força estatal e as garantias individuais  há o direito de punir, o qual se desenrola em três momentos: o primeiro, quando do mandamento do legislador para que o destinatário da norma se abstenha de praticar o ato tipificado como crime, sob pena de sanção; o segundo momento, quando a norma penal é desrespeitada, gerando o direito do Estado à persecução penal, na busca de dar efetividade à ameaça antes genérica; no terceiro momento, se sobrevier ao fim do processo penal uma condenação, surge o direito à execução desta sanção (REALE JÚNIOR, 2000. p.27).

Nos ateremos ao direito à execução de uma sanção penal, o qual, como dito, tem como instrumento a Lei de Execuções Penais, cujo objetivo precípuo é a integração social do condenado, como forma de verdadeira humanização daquele que cometeu algum crime. Objetiva-se, por meio da execução penal, punir, porém, também, humanizar.

Assim, para alcançar esse caráter humanizador da pena, é necessário que se tenha em mente, de modo firme e indefectível, que o condenado é um sujeito de direitos e deveres, que devem ser respeitados, sob pena de desviar a pena de sua finalidade. Tanto é assim que em vários artigos da referida lei, reafirma-se o princípio humanitário da pena, como por exemplo, no artigo 40, no qual proclama-se que que todas as autoridades estão obrigadas a respeitar a integridade física e moral dos condenados e dos presos provisórios.

Ainda, o legislador, preocupado com o caráter humanitário da pena e influenciado por um pulsante movimento em defesa dos direitos humanos, fruto da sociedade mencionada, positivou outras normas a serem observadas com o fito de dar dignidade àquele que cumpre a sanção penal, como o art. 85 da aludida lei dispondo que o “estabelecimento penal deverá ter lotação compatível com sua estrutura e finalidade”.

Nesse cenário, nota-se que apesar do caráter humanizador da pena, muitas práticas ao arrepio da lei e da dignidade humana são implementadas, dando vazão para verdadeiras violações morais e físicas do preso, os quais, como mencionado, encontram-se em extrema vulnerabilidade em relação ao Estado, o qual deveria, inescapavelmente, promover e conservar os direitos humanos dentro desse malicioso ambiente.

Como exemplo de violação, podemos citar transferência de presos indiscriminada nas unidades prisionais, sem justificativa plausível, alegando-se apenas que são necessários recambiamentos devido à superlotação carcerária, traduzindo um paradoxo hoje insuperável, pois o Estado consegue exercer um duplo papel, qual seja, simultaneamente defende e viola direitos humanos, tendo em vista que deveria seguir a aproximação familiar prevista no artigo 41, inciso X, da Lei de Execução Penal.

Ora, os direitos humanos, como aponta MIRANDA, tiveram as suas lutas internacionalizadas justamente, também, para que esses direitos se sobreponham a todos os demais, para que a sua efetiva garantia não flutue ao sabor da consciência de determinado governante de plantão, ou mesmo de uma única sociedade, isto porque baseada em valores comuns, muitas vezes indissociáveis dos princípios preconizados pelos Direitos Humanos.

Dentro da realidade jurídica brasileira, tem-se que, no fundo, o Estado deveria adotar medidas preparatórias ao retorno do condenado ao convívio social, por meio da observância da Lei de Execuções Penais, a qual, em decorrência das lutas pelos Direitos Humanos, carrega uma carga humanitária capaz de tornar a pena minimamente digna àquele que a cumpre, diminuindo o estado natural de vulnerabilidade daquele que cumpre uma pena no nosso sistema prisional, mas, ao contrário, deixam-se os Direitos Humanos de lado para, de modo inescrupuloso e em atenção aos anseios politiqueiros da sociedade, conversar um submundo muitas vezes sangrento que é o sistema prisional pátrio. Esquecem-se, porém, que o caldo muitas vezes vira é na sociedade civil.

4 A SONEGAÇÃO DE DIREITOS À POPULAÇÃO PRESA COMO FORMA DE ATENDER À EXPETATIVA DO “CIDADÃO DE BEM”. 

Nesse trabalho, até o momento, procurou-se exteriorizar a situação de vulnerabilidade do apenado e, simploriamente, trazer à tona a necessidade de implementação dos direitos humanos para minimização da vulnerabilização do apenado dentro do sistema repressor penal. Porém, há fatores alheios, como mencionado, que intensificam essa vulnerabilização, dentre eles, destaca-se, a busca de preenchimento das expectativas do obscuro “cidadão de bem”.

É consabido, na atual conjuntura político-social, principalmente impulsionada por uma onda conservadora que insiste em não cessar, que dividiu-se, de modo maniqueísta, a sociedade entre “cidadãos de bem” e “vagabundos”, passando desde a criminalização da esquerda até o jargão “bandido bom é bandido morto”.

Não é demais lembrar que na clássica e deletéria obra “Main Kampf”, baseado em sua ideologia e também, a bem da verdade, em muitos habitantes da Europa, Hitler foi considerado um verdadeiro “cidadão de bem” em busca de resgates de alguns valores da família tradicional. Além desse marco, o cidadão de bem também aparece em uma organização fundada logo após a guerra civil norte-americana, conhecida como Ku Klux Klan (KKK), a qual defendia seus valores, dentre os quais, destaca-se, o impedimento da integração social da população branca com os negros recém egressos da escravidão.

Nesse cenário, no Brasil, o “cidadão de bem”, assume seus contornos quando tenta resgatar os valores da família tradicional, aterrorizados por um mundo livre, no qual as pessoas seguem os seus desejos e esquivam-se de estereótipos independentemente da pauta do “deveria-ser”. No campo penal, o cidadão de bem, vê na polícia a sua salvação, vê na pena a redenção e, dentro da prisão, uma possibilidade de infligir o mal àquele que ao cidadão de bem não se assemelha, qual seja, o “bandido”.

O sentimento de ver o apenado sofrendo, propalado pela mídia e encampado por alguns que detém o poder, torna-se bandeira de algumas unidades prisionais, sendo a supressão de direitos do preso, ao olhar dos “cidadãos de bem”, uma medida necessária, pois existem expectativas de defesa social a serem preenchidas, tanto é que em 2015 foi divulgado um relatório da Human Rights Watch, (HRW) disponível em seu site, o qual demonstra que a tortura continua sendo um problema crônico no Brasil, indicando que o sistema prisional brasileiro abriga 37 % mais presos que a sua capacidade e que das denúncias de tortura entre os anos de 2012 e 2014, 84% se referiam a torturas cometidas dentro dos presídios, cadeias públicas e delegacias que funcionam como unidades prisionais.

Assim, o que se percebe é que, por mais que tenhamos avançados na atividade legiferante em direitos humanos e normas garantidoras de direitos dos cidadãos, o termômetro social acaba determinando e apoiando atitudes deletérias daqueles que atuam dentro do sistema prisional.

A inevitável seletividade da mídia que alimenta o sentimento de impunidade e provoca uma necessidade de estraçalhar aqueles que têm baixas defesas perante o poder punitivo, acarretando, naqueles que detém as decisões políticas dentro do sistema, inevitavelmente, a sonegação dos direitos dos presos como forma de atender às expectativas desses cidadãos moralizantes.

5 CONCLUSÃO 

Dentro da realidade do sistema prisional, temos que o preso assume a posição de vulnerável, pois em que pese o princípio da humanidade decorrer do princípio da dignidade da pessoa humana e advir de garantia constitucional, de acordo com a qual, são proibidas, entre outras, penas de banimento ou cruéis (art. XLVII) e assegura ao preso o respeito à integridade física e moral (art. 5º, XLIX), não há, reconhecidamente, dentro do sistema prisional, respeito à Lei de Execução Penal, cuja mola propulsora é constituída de diversos fatores, desde estruturais até culturais, necessitando que os direitos humanos sejam erguidos como uma bandeira invencível nessa luta de humanização doo sistema, como forma de diminuir a vulnerabilidade daqueles que nele estão inseridos.


Notas e Referências:

Herrera Flores, Joaquín. A reinvenção dos direitos humanos. / Joaquín Herrera Flores; tradução de: Carlos Roberto Diogo Garcia; Antônio Henrique Graciano Suxberger;

Jefferson Aparecido Dias. – Florianópolis: Fundação Boiteux, 2009.

HOUAISS, ANTONIO. Dicionário Houaiss da língua portuguesa . Rio de Janeiro: Editora Objetivo Ltda, 2001, verbete vulnerável.

Miguel Reale Júnior, “O Direito de Liberdade no Processo Penal”, in Revista Cejap, set./2000.

MIRANDA, Nilmário. Direitos Humanos, Soberania e Desafios da Nacionalidade para o Terceiro Milênio.Disponível em: http://seer.cgee.org.br/index.php/parcerias_estrategicas/article/view/22. Acesso em 12 de agosto de 2015.


Carlos Augusto Ribeir. Carlos Augusto Ribeiro é Advogado Criminalista. Pós-graduando em Ciências Criminais pela Faculdade CESUSC. Membro da Associação dos Advogados Criminalistas de Santa Catarina e Membro da Comissão de Assuntos Prisionais da OAB/SC. Email: crb1.adv@gmail.com. .


Guilherme araujo. Guilherme Silva Araujo é Advogado, Pós-graduado em Processo Civil pela UNISUL. Pós-graduando em Ciências Criminais pela Faculdade CESUSC. Membro da Associação dos Advogados Criminalistas de Santa Catarina, Membro da Comissão de Assuntos Prisionais da OAB/SC e presidente da Comissão de Segurança, Violência Pública e Criminalidade da 30ª Subseção da OAB/SC. Email: guilherme@araujosandini.com.br


Imagem Ilustrativa do Post: Human rights. Indonesia 2009. Photo: Josh Estey // Foto de: Department of Foreign Affairs and Trade // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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