O que vem depois do progresso de consumo? – Ordem Algorítmica

26/04/2019

 

Coluna O Direito e a Sociedade de Consumo / Coordenador Marcos Catalan

A festa da cidadania ocorrida em 2018 deixará marcas não-deletáveis nos corpos que habitam a territorialidade brasileira. Mas antes de chegar no reboot do sistema político-partidário com a ascensão do Partido Social Liberal e a admissão da centralidade logarítmica na cultura jurídica, gostaria de atalhar pela via da cidadania construída anteriormente, para que ao cabo possamos refletir sobre a Política e o Direito sob as ínfimas condições imaginárias da Sociedade do Consumo. Ou seja, uma pequena reflexão crítica delirada pela sequência progresso-ordem do complexo labirinto da necessidade.

A BANDEIRA DE TRÁS PRA FRENTE – Progresso e Ordem

Podemos começar pensando sobre o programa de sociedade liderado pelo Partido dos Trabalhadores, aquele que consolidou a forma da cidadania tão desejada globalmente. Em outras palavras, a ampliação de oportunidades e acessos para um mundo tão desigual forjada sob a pesada artilharia de elites dominantes e os por processos coloniais nunca fundamentalmente tocados pelo progresso lulista. O brilho da estrela petista esmorecendo diante das pressões de seus “não-tão” aliados, insufladores da política-jurídica lavajatista. Tudo isso pra expandir uma ideologia metade californiana, metade autoritarismo à brasileira, uma saborosa pizza neoliberal. Enquanto isso, lá no judiciário a elegantérrima praça de desfile dos fóruns tornou-se o locus não só das togas arrastantes, mas também dos bem cortados ternos do empreendedorismo conectado. A cidadania pelo consumo viralizada profundamente no imaginário social.

A ideologia do consumo se misturou com a cultura do autoritarismo, na medida que a moradia tornou-se um bem de consumo financeirizado forjado por meio da colonização da terra - uma etapa do chamado “neoliberalismo de baixo”, onde a propriedade privada e o endividamento são a estratégia civilizatória para o sul global, no lulismo brasileiro teve o sentido de uma reforma gradual sob um pacto conservador[1]. Entre a expropriação financeira dos pobres e os privilégios da toga permeia uma grande semelhança: a justificativa nos direitos sociais, é na função social da propriedade que o endividamento em nome da casa própria encontra razão e no papel democrático do juiz os subsídios desiguais e os “penduricalhos” encontram desculpas para existir.

O Estado de Direito trabalha um conceito de cidadania alheio às desigualdades estruturais da sociedade, finge ser possível eleger cidadãos nessas condições, em uma ordem sociometabólica em que parte da população precisa sofrer em nome do progresso de outra. Na sociedade informacional isso não mudou, o que ocorre é o agravamento das formas de opressão, em nome e sob efeito da velocidade cotidiana, o massacre das minorias e dos trabalhadores ocorre cada vez mais com  a anuência do poder do capital, pois é exercido de forma ubíqua, embora mascarado sob pretensos consensos nas redes digitais. Não só a multidão está desprovida de meios de resistência à ideologia, mas a adquire como ato de vontade.

Diante de uma tele-entrega tão rápida das novas tecnologias da informação e da comunicação o apetite pela legitimação ideológica aumentou profundamente. De Uber em Uber a classe “não-tão” média assim, foi caindo no Real da precarização. Ao mesmo tempo em que a cidadania de consumo equipava a máquina-humano nas redes, o Estado – rotineiramente de exceção – viu a oportunidade de controlar, vigiar e formatar os ávidos cidadãos, agora tão enredados pelas plataformas sociais como Google e Facebook. O cidadão-consumidor, alimentado pela máquina de ansiedade e agonia, é conduzido a um cotidiano de vazio desértico, fora da sentimentalidade e da possibilidade do Outro.

Continuamente, a construção da cidadania do século XXI beira a instauração de uma opacidade do direito[2] insuperável pela via da tecnologização das relações sociais. A subjetividade do consumidor expande vulnerabilidades aos corpos, a tecnopolítica funciona de maneira a reprocessar a legitimidade perdida pela via política convencional. No primeiro dia da posse do atual presidente Jair Messias Bolsonaro o coro bradava: “Whatsapp!”, “Whatsapp!”, “Whatsapp!”, “Facebook!”, “Facebook!”, “Facebook!”. Os valores compartilhados ali identificavam a ilusória legitimidade consensual em torno dos meios tecnológicos, eis que à sombra da festa da cidadania se oculta a autoridade algorítmica. Um Grande Outro[3] tecno-lógico, meio Estado, meio Mercado. Bicéfalo monstruoso que caminha do político ao jurídico.

Seja no fetiche dos juristas high-tech, no “decido conforme minha consciência artificial” ou então nos experimentos políticos[4] como Brexit, Trump e Bolsonaro, a expansão dos meios tecnológicos por cima dos fins embaralha os projetos sociais e políticos. Este Grande Outro se arquiteta como um regime abarcador da experiência e do cotidiano sob as bases da tão necessária extração de mais-valia do tempo de acesso vigiado. É interessante analisar que a dimensão do contrato e seu princípio da confiança se vê decadente com a expansão dos meio tecnológicos, a velocidade e a operacionalização constante desfazem os laços orgânicos de solidariedade da sociabilidade.

 

Conjuntamente à extração de dados dos consumidores nas plataformas digitais, a lógica da troca de mercadorias corrobora com a vigilância estatal e a produção de estímulos políticos e de consumo em massa. Das bizarrices do início do século XXI constará, em algum hardware numa cidade de dados qualquer, a historicidade tropical em que o progresso (lulista) e a ordem (bolsonarista) estabeleceram o acesso e a vigilância, respectivamente; a construção comunicativa d’O Grande Outro. Na vigência do governo progressista posicionaram estrategicamente o populus na rede, a política do ódio configurou o arrebatamento das vulnerabilidades consumeristas nas mãos da vigília estatal. A cultura digital, tão afeita à liberdade, convertida em cultura da vigilância.

 

Notas e Referências

[1] Ver: SINGER, André. Os sentidos do Lulismo: reforma gradual e pacto conservador. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

[2] CÁRCOVA, Carlos María. A opacidade do direito. São Paulo: LTr, 1998.

[3] ZUBOFF, Shoshana. Big Other: capitalismo de vigilância e perspectivas para uma civilização de informação. In: BRUNO, Fernanda [et. al.] (orgs). Tecnopolíticas da vigilância: perspectivas da margem. São Paulo: Boitempo, 2018.

[4] Tais experimentos refletem a negação ao sistema político-partidário e alteram profundamente a ordem política nacional e mundial. Ver: CASTELLS, Manuel. Ruptura: a crise da democracia liberal. Rio de Janeiro: Zahar, 2018.

 

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