O que o poeta de Xerém diria sobre o Juiz de Garantias?   

08/01/2021

Coluna Defensoria e Sistema de Justiça / Coordenador Jorge Bheron

Há quase um ano, parte da comunidade jurídica nutria esperanças de que a entrada em vigor do Pacote Anticrime, no dia 23/01/2020 implicaria na implementação do juiz de garantias. Essa expectativa era bastante legítima, vez que a aprovação dessa figura passou pelo longo e árduo caminho do devido processo legislativo na Câmara dos Deputados, Senado Federal e na Presidência da República até virar lei.

Mas a jornada deste instituto não tem sido fácil, tendo sofrido inicialmente movimento político em sentido contrário dentro do próprio Governo Federal, orquestrado por Sergio Moro, então Ministro da Justiça, cujo objetivo era o veto do dispositivo que o disciplinava pelo Chefe do Executivo.

Já sancionado, promulgado, publicada e às vésperas de entrar em vigor, o juiz de garantias foi alvo de questionamentos quanto à sua constitucionalidade formal e material, o que desembocou,  no ajuizamento das Ações Diretas de Inconstitucionalidade 6298, 6299, 6300 e 6305, cujo primeiro trâmite judicial, em dia 15/01/2020, foi dado pelo então presidente do STF, Ministro Dias Toffoli, concedendo a medida liminar para determinar a suspensão de sua implementação pelo prazo de 180 dias.

Passada uma semana dessa decisão, no dia 22/01/2020, o Ministro Luiz Fux, à época vice-presidente da Suprema Corte e relator das ADIs referidas, revogou a liminar mencionada e determinou a suspensão sine die da implementação do juiz de garantias até que a decisão fosse referendada em sessão plenária, o que não aconteceu até a data de hoje. A decisão do Ministro Fux é tão heterodoxa que, apesar de não ter sido questionado, incidiu até mesmo sobre o art. 3°-A do CPP.

E por que tanta demora em se pautar uma matéria de tamanha importância no STF? Essa é uma pergunta que sem resposta! Inclusive, o Instituto de Garantias Penais (IGP) impetrou um HC objetivando a suspensão da decisão do Ministro Luiz Fux que impediu a implementação do juiz de garantias no ordenamento penal brasileiro. O relator do mencionado HC 195.807, Ministro Alexandre de Moraes, despachou em 21 de dezembro e 2020 pedindo informações à autoridade coatora, presidente do STF.

Em resposta ao pedido de informações, por conduto do ofício nº 508/2020/GPR, o Ministro Luiz Fux esclareceu que, dentro dos processos das ADIs, havia intenção de discutir o instituto do juiz de garantias ainda no primeiro semestre de 2020, por meio de audiências públicas. No entanto, tal expectativa se viu frustrada em razão da pandemia do Covid19, sendo suspensas as audiências, cuja redesignação se fará em “data oportuna”.

Na decisão liminar, o Ministro Fux apontou que a jurisdição constitucional deve se pautar unicamente por critérios jurídicos. Pois bem, um ano já se passou e não há nenhuma previsão real para que a matéria seja pautada para julgamento no STF.

Até quando vamos ficar nesse limbo jurídico e temporal sem nenhuma objetividade? Acreditamos que a sociedade e a comunidade jurídica merecem uma resposta objetiva quando a alguns pontos:

Limbo jurídico: afinal, a figura do juiz de garantias, prevista nos art. 3°B-3°F do CPP, é constitucional ou inconstitucional? No país andino vizinho, o Chile, o juiz de garantias foi implementado sem maiores questionamentos, e com tempo razoável para fortalecimento e reestruturação das instituições (principalmente – com destaque - a Defensoria Pública),  e para capacitação.  Sim, capacitação. Com aulas teóricas e práticas de juízes, promotores, advogados, defensores públicos e servidores.

Muito embora não se vá explorar detidamente a questão, a inconstitucionalidade formal é facilmente superada pela competência legislativa privativa da União. O Código de Processo Civil, carinhosamente denominado Código Fux, aponta para a necessidade de observância dos precedentes. O Supremo Tribunal Federal, ao apreciar a compatibilidade constitucional do artigo 33, Lei nº 11.340/06, não visualizou qualquer inconstitucionalidade na criação de vara especializada por meio de legislação federal. Um dos Ministros, ao antecipar seu voto, afirmou que um dos mecanismos [de assistência à família] é a criação de uma vara especializada. Então, com relação a esse aspecto, não entrevejo nenhuma inconstitucionalidade. O magistrado que assim se manifestou foi Luiz Fux.

Sob o prisma da inconstitucionalidade material do juiz de garantias, invoca-se a ausência de prévia dotação orçamentária para implementar as mudanças organizacionais que advirão da instauração do juiz de garantias, o que violaria a autonomia financeira e administrativa do Poder Judiciário. Alega-se ainda suposta afronta ao novo regime fiscal da União (instituído pela EC n° 95).

Pensamos que os custos relativos à implementação do juiz de garantias podem ser minimizados com a reorganização da estrutura administrativa e recursos humanos do Judiciário, o que decorre da observância dos princípios da eficiência e da economicidade que regem toda a Administração Pública. Levantamos ainda um questionamento: por que não se questionou, pelas mesmas razões lógicas, o aumento de despesas oriundos da nova redação do art. 75 do CP (aumentou o tempo máximo de cumprimento das penas privativas de liberdade de 30 para 40 anos)?! Depara-se com uma completa falta de coerência no argumento financeiro, que imediatamente desaparece com a incomensurável vontade de punir.

Ademais, Pau que dá em juiz de garantias não dá em custódia virtual?[1]                                                                                                                                                            Ora, o ato do CNJ que dispões sobre a realização de audiência de custódia virtuais prevê uma série de medidas que pressupõem um gasto pelo Poder Executivo (Polícias, Delegacias, Perícias) sem qualquer previsão na dotação orçamentária. Sobre isso já se questionou:

“O Poder Legislativo não pode implementar lei que cause impacto orçamentário no Poder Judiciário, sem prévia dotação orçamentária, mas órgão administrativo do Poder Judiciário pode implementar ato normativo que cause impacto orçamentário no Poder Executivo sem prévia dotação orçamentária?”[2]

Limbo temporal: não se poderia marcar as audiências públicas por videoconferência? O STF tem sessões plenárias virtuais, e não custa lembrar que o CNJ regulamentou a realizações de atos processuais, até mesmo de audiência de custódia, por videoconferência. E o que dizer da audiência pública  sobre Fundo Amazônia realizada no STF no mês de outubro[3]?

De acordo com a decisão liminar do Ministro Luiz Fux, o deferimento se fazia necessário em razão da complexidade da matéria, o que reclamaria a reunião de melhores subsídios que indiquem, acima de qualquer dúvida razoável, os reais impactos do juízo das garantias para os diversos interesses tutelados pela Constituição Federal, incluídos o devido processo legal, a duração razoável do processo e a eficiência da justiça criminal. É aqui que se verifica a maior de todas as fragilidades do ato decisório. A preocupação com a duração razoável do processo não é real, é performática e simplesmente não se sustenta.

Dito de outra forma: a implementação do juiz de garantias foi suspensa sine die e, quando se questiona sobre a previsão para julgamento, após o interregno de quase um ano, a resposta é que as audiências públicas para se iniciar a discussão da matéria serão designadas em data oportuna. Em resumo, continuamos sem previsão alguma, tanto que as ADIs nº 6298, 6299, 6300 e 6305, não estão incluídas no calendário de julgamento divulgado pelo STF[1].

Diante do manto da crise sanitária, a liminar proferida pelo Ministro Luiz Fux se aproxima de seu primeiro aniversário sem que tenham sido realizadas as audiências públicas. Vivemos na chamada pós-modernidade e a comunicação se aperfeiçoou de tal forma que distâncias foram reduzidas. Não seria realizar as audiências públicas de forma presencial, a posse do atual Presidente do Supremo Tribunal Federal demonstrou o perigo de um evento dessa forma. Mas o uso de videoconferências seria plenamente capaz de permitir o franco debate da questão por diversos atores. Aury Lopes Júnior traz precisa lição sobre a razoável duração do processo e da necessidade de se eliminar tempos mortos, que não deve se restringir ao âmbito do processo penal:

Também chegou o momento de aprofundar o estudo de um novo direito: o direito de ser julgado num processo sem dilações indevidas. Trata-se de decorrência natural de uma série de outros direitos fundamentais, como o respeito à dignidade da pessoa humana e à própria garantia da jurisdição. Na medida em que a jurisdição é um poder, mas também um direito, pode-se falar em verdadeira ‘mora jurisdicional’, quando o Estado abusar do tempo necessário para prestar a tutela.”[2]

Apesar do enorme respeito que temos por Sobral Pinto, não escrevemos este texto inspirados na marcante fala do magistral tribuno, quando do julgamento do habeas corpus nº 40.047 apreciado pelo Supremo Tribunal Federal e que tinha como paciente o jornalista Hélio Fernandes:

(...) o impetrante, com os olhos voltados tão-só para o futuro da civilização brasileira, ora ameaçada terrivelmente, vem implorar, de joelhos, com as mãos levantadas para o céu, que V. Exa. o Sr. Ministro Relator, devidamente designado, e o Supremo Tribunal Federal, por fim se manifestem com urgência sobre o presente pedido de ‘habeas corpus’, cujo destino se confunde inelutavelmente, com a estabilidade do próprio Supremo Tribunal Federal.”[3]

Nada aqui parece razoável, muito menos a duração.

A instituição do juiz de garantias, responsável pela salvaguarda dos direitos e garantias fundamentais na fase investigatória, visa blindar o juiz do processo de eventuais contaminações decorrentes da tomada de decisões anteriores.

A teoria da dissonância cognitiva[4] explica que, quando um magistrado tem postura ativa durante a persecução, suas posições influenciam, muitas vezes até involuntariamente, suas posteriores decisões no curso do processo e há ainda uma tendência – desvalorização dos elementos dissonantes – de se rechaçar informações em sentido contrário. Destarte, o juiz de garantias é uma figura fundamental em Estado Democrático de Direito, haja vista que a imparcialidade do magistrado é princípio supremo do direito processual, com previsão expressa no Convenção Americana sobre Direitos Humanos (art.8°,1).

Por que, então, tanta resistência ao juiz de garantias? Talvez porque sua implementação signifique a extinção de práticas autoritárias no processo penal brasileiro. Por exemplo, o §3º do art. 3º C do CPP determina a exclusão física do caderno investigatório (exceto com relação os documentos relativos às provas irrepetíveis, medidas de obtenção de provas ou de antecipação de provas) dos autos do processo penal, devendo aquele permanecer acautelado na secretaria do juízo de garantias; isso significa, em termos práticos, que as testemunhas terão de efetivamente prestar depoimento com conteúdo probatório, sob o crivo do contraditório, no lugar de apenas convalidar, após leitura do depoimento produzido no inquérito policial, o elemento informativo e transmudá-lo, ilegalmente, para a qualidade de prova. Pensar o contrário significa tornar inócuo os arts. 155, 204 e 212 do CPP, bem como relativizar a necessidade de realização da audiência de instrução. É o fim do trabalho de tabelião realizado diariamente nas audiências de instrução e julgamento. Explicamos: quando a testemunha, geralmente de acusação, afirma que não se recorda dos fatos, a partir do material produzido na fase inquisitiva, é perguntada sobre a autenticidade da assinatura contida no fim do depoimento. Caso confirmada a autenticidade, o material produzido sem o contraditório ganha validade para o processo penal.

O que nos move unicamente, tal como afirmado pelo próprio Ministro Luiz Fux, é a realização do juízo jurídico sobre a questão; daí, instigamos o julgamento. A provocação para o julgamento é imprescindível, quer seja pela necessidade de saber se o instituto do juiz de garantias é, ou não, constitucional, quer seja pelo fato de o histórico do Ministro Relator não lhe favorecer. Afinal, após a liminar que concedeu o auxílio-moradia para determinado grupo da burocracia brasileira ocorreu uma profunda e detida análise que quase alcançou um lustro. Por fim, a necessidade do julgamento permitirá que a lógica do pensamento de famoso morador do distrito de Xerém não se aplique no processo penal brasileiro. Com o julgamento das ADI’s que tratam do juiz de garantias não haverá o risco de que alguém inspirado em Zeca Pagodinho afirme que sobre juiz de garantias: nunca viu, nem vigeu, e só se ouve falar!

 

Notas e Referências

[1]          https://www.conjur.com.br/2020-dez-02/opiniao-juiz-garantias-custodia-virtual

[2]          https://www.conjur.com.br/2020-dez-02/opiniao-juiz-garantias-custodia-virtual

[3]          http://stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=453892

[1]             Fux diz que vai remarcar audiências sobre juiz das garantias “em data oportuna”, Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-jan-05/fux-remarcar-audiencias-juiz-garantias, acesso em 05/01/2020.

[2]             LOPES JÚNIOR, Aury. Introdução crítica ao processo penal. Fundamentos da instrumentalidade garantista. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. p. 34.

[3]             RODRIGUES, Lêda Boechat. História do Supremo Tribunal Federal. Tomo IV, volume I (1930-1963). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. p. 241.

[4]             LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal. São Paulo: Saraiva, 2019, p. 71-74

 

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