Por Sandro Luiz Bazzanella e Luiz Eduardo Cani - 20/06/2017
“Em algum remoto rincão do universo cintilante que se derrama em um sem-número de sistemas solares, havia uma vez um astro, em que animais inteligentes inventaram o conhecimento. Foi o minuto mais soberbo e mais mentiroso da ‘história universal’; mas também foi somente um minuto. Passados poucos fôlegos da natureza congelou-se o astro, e os animais inteligentes tiveram de morrer.”
Friedrich Wilhelm Nietzsche
Precisamos dizer o óbvio, desde o início: ciência não é religião. Essa advertência é necessária num momento em que muitas pessoas que se pretendem cientistas a pretexto de fazer ciência transformam essa modalidade de conhecimento em religião. Por falar em forma de conhecimento, a primeira modalidade da qual temos notícia é o mito, que tinha a função de simbolizar aquilo que estava para além da capacidade de compreensão da humanidade, especialmente os fenômenos da natureza, a morte e as doenças. Nesse sentido, os fenômenos da natureza e as doenças foram interpretados diversas vezes como consequências de comportamentos humanos considerados negativos: carma, maldição, castigo divino etc. Também a relação dos humanos com o divino foi descrita através de mitos: Hermes, deus da mitologia grega, era responsável por intermediar a comunicação entre humanos e deuses que moravam no Monte Olimpo, porquanto os humanos não podiam chegar naquele local.
Esses dois exemplos têm como pano de fundo algo que só foi desvelado tempos depois, através do paradigma filosófico da linguagem: o conhecimento humano só pode ser produzido através de símbolos (letras, palavras, números, desenhos, gestos etc.) que, em conjunto, formam linguagens. A linguagem é, ao mesmo tempo, condição de possibilidade do conhecimento e limite desse conhecimento, na medida em que é somente através da linguagem que podemos conhecer o mundo e que não podemos conhecer o que não pode ser simbolizado. Eis a importância de entender os três registros psíquicos: o real, que é a totalidade do mundo, que não pode ser representada; o imaginário, que desloca a simbolização de outras coisas; e o simbólico que é o conjunto de símbolos organizados que formam linguagens a partir de articulações entre significante (sons/pronúncias que representam signos/palavras) e significado (representação mental dos signos/palavras)[1].
Durante longo período os humanos continuaram representando o mundo através de mitos, mas essa fase foi paulatinamente chegando ao fim com o surgimento de novas formas de conhecimento acerca daquilo que antes não podia ser representado, notadamente através da religião e da ciência. As diferentes lógicas que orientam essas formas de conhecimento nos possibilitam compreender o que está em jogo nas acaloradas discussões entre defensores de ambas: enquanto a religião tenta fornecer explicações para fenômenos transcendentes, a ciência tenta fornecer explicações para os fenômenos (phenomenum – aquilo que aparece na forma material). Daí é possível perceber que uma forma de conhecimento não exclui a outra, mas se complementam. De todo modo fizemos questão de enfatizar que ambas tentam fornecer explicações para fenômenos, ou seja, são estratégias humanas, demasiadamente humanas cujo fundamento último é a crença das pessoas na potencialidade explicativa da razão. O núcleo comum, chamado crença, nos dá indicativos sobre os motivos pelos quais impera o raciocínio maniqueísta da ciência vs. religião: o defensor da religião acredita cegamente no acerto e na potência do conhecimento que tem, da mesma forma que o defensor da ciência. Entretanto nem um dos dois parece disposto a considerar que ambos podem estar equivocados. A fim de combater uma suposta cegueira produzida pela religião, certos cientistas transformam a ciência em religião e a defendem cegamente e vice-versa. Mas, o que há de prejuízo para a produção de conhecimento é o fato de que o cientista substitui os esforços no sentido de produzir conhecimento pelos esforços no sentido de preservar esse ente metafísico chamado ciência. Ainda nesta direção, determinados cientistas não se dão conta de que conhecimento tem prazo de validade, uma vez que não é possível explicar a totalidade de um fenômeno e tampouco existe perfeição fora do imaginário. Uma teoria explica mais sobre determinado fenômeno somente até o momento em que alguém produza outra teoria que o explique ainda mais, o mesmo que a teoria anterior revele seus limites, suas anomalias.
Compreender minimamente essas ideias é necessário para compreender que fazer ciência é uma constante tentativa de simbolização da totalidade da realidade. É a pretensão de reduzir o campo real através de novas simbolizações. Ou seja, a produção de conhecimento novo, também chamada de inovação científica, é a simbolização de algo que antes não podia ser representado e, como tal, integrava o registro psíquico chamado de real. Para auxiliar os pesquisadores nessa árdua tarefa há pesquisadores que dedicam a vida inteira à identificação de métodos de abordagem e de procedimento em relação ao objeto, técnicas, programas de computador e equipamentos de coleta e tratamento de dados. Além disso, também existem abordagens filosóficas aos problemas, dentre as quais está o positivismo, a abordagem filosófica mais utilizada no direito. O positivismo, nas manifestações em diversos saberes, tem como característica principal o princípio da neutralidade axiológica do sujeito. Esse nome bonito quer dizer que o sujeito (pesquisador) deve ser neutro na análise que faz do objeto de estudo, ou seja, não pode fazer juízos de valor. Por exemplo: não pode dizer se algo é bom ou mau, justo ou injusto, belo ou feio etc. O equívoco do positivismo reside na crença de que o sujeito pode ser neutro. A noção de círculo hermenêutico, que Hans-Georg Gadamer[2] toma de empréstimo de Martin Heidegger para desenvolver a hermenêutica filosófica, é necessária para compreender mais uma limitação do conhecimento: o sujeito que produz o conhecimento é ser no mundo, sempre foi no mundo (historicidade) e está condenado a ser no mundo (faticidade), portanto não pode neutralizar a si mesmo no ato de conhecer.
Apesar de nada disso ser novidade, muitas pessoas continuam conferindo à ciência um tratamento onto-teológico, uma dimensão sagrada. Dizem que o sujeito não pode fazer juízo de valor, que o sujeito não pode dar palpites sobre o objeto, que o método nos proporciona a produção de conhecimento objetivo, que a ausência de método bem delimitado não permite que atinjamos os objetivos. O acontecer hermenêutico sempre antecede o método. A compreensão, que para Gadamer é a primeira etapa do processo de interpretação/aplicação, acontece sem que raciocinemos a partir de métodos, ao nos colocarmos em posição de questionamento e reflexão a partir do conhecimento que já possuímos e que estamos adquirindo. Nesse sentido é comum que formulemos hipóteses sobre determinados fenômenos, a partir do conhecimento que possuímos, para que depois estudemos o objeto, refutando ou confirmando a hipótese, ou seja, o método de raciocínio/abordagem é frequentemente dedutivo. Apesar disso também há quem resista à sedução do raciocínio dedutivo e reserve as considerações, sempre opinativas, para o final. De qualquer forma as crenças na capacidade de compreensão do objeto e na possibilidade de produzir conhecimento são alimentadas pela utopia e por opiniões que recebem o selo de ciência que serve, da mesma forma que servia o toque do Rei Midas, para transformar o objeto em ouro.
Para concluirmos, mas não para encerarmos o debate que se faz salutar esclarecemos que não poderíamos (e não é esta a intenção) explicar tudo o que é e tudo o que não é fazer ciência. Mas escrever um artigo com um título que questionasse sobre o que é seria muito mais pretensioso do que questionar o que não é. Considerando isso, não concluiremos com respostas que não poderiam representar totalidades, mas com questionamentos sobre o que é fazer ciência para que, a partir daí, o leitor possa fazer um exercício intelectual autônomo e criativo questionando alguns aspectos que entendemos de compreensão fundamental para todos os pesquisadores: Transformar o conhecimento numa espécie de monastério dos sábios (Luís Alberto Warat), ou seja, de algo intangível aos reles mortais? Ignorar que teorias são proposições exploratórias, descritivas ou explicativas, formuladas em determinadas circunstâncias espaço-temporais que, por isso, têm prazo de validade? Negar que o conhecimento é produzido através de suposições e proposições formuladas no decorrer da pesquisa, ignorando que fazer ciência é arriscar? Acreditar que o sujeito pode abstrair-se do mundo em que é, sempre foi e sempre será para analisar o objeto livre de tudo o que tem de si (estrutura prévia de sentido)? Não reconhecer os limites do conhecimento, acreditando que verdades absolutas (totalidade das coisas) podem ser encontradas nas pesquisas? Acreditar que o verdadeiro conhecimento é extraído da essência do objeto (filosofia do ser) ou da consciência do sujeito (filosofia da consciência) em vez do fato de o conhecimento ser elaborado através da atribuição de sentido a partir de uma linguagem compartilhada por uma comunidade de pessoas que podem se comunicar através de uma mesma linguagem (filosofia da linguagem)? Considerar que a escrita em primeira pessoa do singular invalida o “caráter científico” da pesquisa? Ainda é possível imaginar que a ciência é e pode ser objetiva no sentido de um espelho que somente reflete a realidade?
Notas e Referências:
[1] LACAN, Jacques. Nomes-do-Pai. Trad. André Telles. Rio de Janeiro: Zahar, 2005, p. 13-23.
[2] GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método. Traços fundamentais de ume hermenêutica filosófica. Trad. Flávio Paulo Meurer. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1997, p. 400-416.
. Luiz Eduardo Cani é Professor (UnC), pesquisador (FURB e UnC), advogado e consultor jurídico (Urbaneski & Cani Advocacia e Consultoria Jurídica). Graduado em Direito (FURB), especialista em Direito Penal e Criminologia (ICPC) e mestrando em Desenvolvimento Regional (UnC).. .
. Sandro Luiz Bazzanella é Graduado em Filosofia pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras Dom Bosco (1989), mestre em Educação e Cultura pela Universidade do Estado de Santa Catarina (2003) e doutor em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina (2010). Professor titular de Filosofia na graduação e no Programa de Mestrado em Desenvolvimento Regional da Universidade do Contestado.
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