O QUE É GARANTISMO PENAL HIPERBÓLICO MONOCULAR?

06/09/2019

Coluna Isso Posto / Coordenadores Ana Paula Couto e Marco Couto

Há alguns meses, escrevemos um artigo intitulado Crítica ao garantismo penal hiperbólico monocular[1]. É claro que, ao pesquisarmos o assunto para escrever um texto, nos aproximamos do tema e passamos a lidar com certa intimidade com o mesmo. Como normalmente ocorre, buscamos dar publicidade ao texto, até para podermos avaliá-lo à luz das críticas que seriam feitas pelos leitores. Em geral, os amigos mais próximos são aqueles que mais críticas nos fazem. E com razão. Autorizados pela amizade, eles sentem-se confortáveis para apresentar os seus pontos de vista.

Nas salas de aula em que lecionamos ou nos textos que escrevemos, temos a preocupação com a melhor didática. Acreditamos que a função dos professores é estabelecer um diálogo direto com os alunos, é facilitar a sua vida, e não confundi-la. É possível, na grande maioria dos casos, ser simples, sem descuidar da profundidade dos temas tratados.

O mundo do Direito é muito formal. Certa vez, um amigo nosso, alheio ao mundo do Direito, disse que somos insuportavelmente formais. Há certo exagero nessa afirmação, mas inegavelmente somos bastante formais. Esse formalismo é revelado nas roupas que usamos, na forma como falamos e, evidentemente, na maneira como escrevemos. Daí a nossa preocupação de ser simples e objetivo na escrita.

Mas vacilamos no artigo que abordou o garantismo penal hiperbólico monocular. Os amigos que se dispuseram a comentar o nosso artigo fizeram a seguinte crítica: não era melhor ter pensado em um título mais simples? De fato, o título não foi muito convidativo. Para aqueles com pouco proximidade com o tema, o título de nosso artigo mais confundiu do que ajudou. Não sabiam o que era o garantismo penal hiperbólico monocular, não se interessaram pelo assunto, não leram o artigo e continuaram sem saber do que trata o nosso texto. Erramos feio.

Portanto, a coluna de hoje é quase um pedido de desculpa pelo tal título infeliz. Mantivemos nesta coluna a expressão garantismo penal hiperbólico monocular, mas, no seu título, pelo menos, nos propusemos a explicá-lo. Tentemos fazer isso agora.

Com esse propósito, cabe registrar que a realidade forense criminal tem demonstrado diariamente o emprego do chamado garantismo penal em situações bastante diversas. Em verdade, afirmar que o garantismo penal tem sido empregado no dia a dia forense consiste em verdadeira força de expressão. A rigor, o que se pode afirmar é que expressiva quantidade de defensores tem embasado as suas teses no garantismo penal que acreditam existir ou no garantismo penal que querem acreditar que exista, sem qualquer preocupação em seguir o que verdadeiramente foi idealizado por Luigi Ferrajoli.

Com a colaboração de parte da doutrina que, a título de examinar o garantismo penal, acaba por sustentar teses que nele não encontram fundamento, muitos defensores ficam estimulados a formular seus pedidos levando em conta não propriamente o ensinamento de Luigi Ferrajoli, mas sim a visão bastante distorcida que alguns autores dele apresentam.

É nesse cenário que se pretende demonstrar que a contribuição do garantismo penal, tal como idealizado, é verdadeiramente importante para o Direito, não sendo necessário que se extrapolem os verdadeiros limites da mencionada teoria para empregá-la em situações incompatíveis com a mesma.

O doutrinador Luigi Ferrajoli notabilizou-se pela teoria do garantismo penal por ele idealizada, sendo certo que a sua mais conhecida obra, qual seja, Direito e razão: teoria do garantismo penal, aprofunda a análise sobre questões com as quais os operadores do Direito diariamente se deparam.

Nesse aspecto, cabe registrar os seguintes princípios expressamente mencionados pelo autor como base de sua teoria: (1) princípio da retributividade ou da consequencialidade da pena em relação ao delito, (2) princípio da legalidade, no sentido lato ou no sentido estrito, (3) princípio da necessidade ou da economia do Direito Penal, (4) princípio da lesividade ou da ofensividade do evento, (5) princípio da materialidade ou da exteriorização da ação, (6) princípio da culpabilidade ou da responsabilidade pessoal, (7) princípio da jurisdicionariedade, no sentido lato ou no sentido estrito, (8) princípio acusatório ou da separação entre juiz e acusação, (9) princípio do ônus da prova ou da verificação e (10) princípio do contraditório ou da defesa, ou da falseabilidade[2].

Com base em tais princípios, cuja análise aprofundada não tem espaço nesta coluna, mas que deve merecer a atenção por aqueles que se interessam pelo tema, nada justifica o embasamento de teses flagrantemente descabidas a título de observância da teoria do garantismo penal, sendo certo que, muito ao contrário, o que encontra amparo na mencionada teoria é justamente a adoção de razoáveis pontos de vista, e não um radicalismo injustificado.

É certo que muitos defensores sustentam com veemência a necessidade de serem conferidas as mesmas condições de atuação para a acusação e para a defesa, no que efetivamente têm razão. Não faz qualquer sentido se prestigiar a acusação em excesso, tratando as pretensões defensivas com má vontade, como se não fosse dever do juiz que preside o processo se manter equidistante de ambas as partes.

Mas o ponto que interessa neste momento se refere ao desejo apresentado por muitos defensores no sentido de que prevaleçam, a qualquer custo, os interesses de seu cliente, praticamente sustentando que as regras processuais apenas devem servir para favorecê-lo, e nunca para prejudicá-lo.

É fundamental examinar o radicalismo que existe no ponto de vista de alguns operadores do Direito, no momento em que adotam a teoria do garantismo penal, o que, verdadeiramente, lhes confere uma visão distorcida de uma teoria tão importante no mundo jurídico.

Em verdade, o título desta coluna decorre de uma expressão bastante precisa adotada por Douglas Fischer, a qual melhor fica explicitada nas palavras do mencionado autor: Qualquer pretensão à prevalência indiscriminada apenas de direitos fundamentais individuais implica – ao menos para nós – uma teoria que denominamos de garantismo penal hiperbólico monocular: evidencia-se desproporcionalmente (hiperbólico) e de forma isolada (monocular) a necessidade de proteção apenas dos direitos fundamentais individuais dos cidadãos, o que, como visto, não é e nunca foi o propósito único do garantismo penal integral.[3]

O autor não podia ter sido mais preciso, uma vez que há, por parte de muitos operadores do Direito, um exagero dirigido, maximizando-se os direitos em favor dos indiciados nos inquéritos policiais e dos acusados nos processos criminais, como se o garantismo penal, idealizado por Luigi Ferrajoli, tivesse apenas esse propósito, esquecendo-se dos demais envolvidos no contexto processual.

Convém registrar que a teoria do garantismo penal é adotada de maneira tão distinta pelos operadores do Direito que a sustentam que o analista mais desatento corre o risco de concluir que existe mais de uma teoria.

Isso porque os princípios já indicados acima, que embasam verdadeiramente a teoria idealizada por Luigi Ferrajoli, não permitem a sua aplicação radical, servindo, muito ao contrário, para embasar uma razoável aplicação da mesma.

Nada justifica que se radicalize a teoria para adotá-la como base para qualquer tipo de pedido a ser formulado pelos defensores, como se também aos indiciados no inquérito policial ou aos réus no processo criminal propriamente dito não pudessem ser impostas regras a serem obedecidas.

É importante registrar que existem outras pessoas envolvidas no processo criminal cujos direitos devem ser igualmente reconhecidos e respeitados, como as testemunhas e as vítimas, por exemplo.

O jogo processual, verdadeiramente, deve ser jogado com a observância das regras que lhe são pertinentes, seja para favorecer os indiciados nos inquéritos policiais e os réus nos processos criminais, seja para prejudicá-los, sendo absolutamente indevida a adoção do garantismo penal hiperbólico monocular.

Afinal, não existe jogo cujas regras sempre favoreçam apenas um dos jogadores.

 

Notas e Referências

[1] COUTO, Ana Paula; COUTO, Marco. Crítica ao garantismo penal hiperbólico monocular. In: MELLO, Cleyson de Moraes; FIGUEIRA, Hector Luiz Martins; MARTINS, Vanderlei (Coord.). Democracia e Direitos Fundamentais: Estudos em homenagem ao Professor Leonardo Rabelo. Rio de Janeiro: Processo, 2019, p. 483-498.

[2] FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 75.

[3] FISCHER, Douglas. O que é garantismo penal (integral)? In: CALABRICH, Bruno; FISCHER, Douglas; PELELLA, Eduardo (Coord.). Garantismo penal integral: questões penais e processuais, criminalidade moderna e aplicação do modelo garantista no Brasil. Salvador: Editora Juspodivm, 2010, p. 48.

 

 

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

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