O que é analogia in malam partem e quando é razoável proibi-la?

02/01/2022

De acordo com a doutrina, a analogia só é admissível em direito penal (em sentido amplo) em favor do réu (in bonam partem), não contra ele (in malam partem), sob pena de violação ao princípio da legalidade penal.

Segundo esse entendimento, a analogia não seria um método de interpretação do direito, mas um método de integração, que teria lugar sempre que houvesse omissão legal sobre determinado assunto. Já a interpretação analógica ocorreria quando a lei, já prevendo a inevitabilidade da omissão sobre certo tema, usasse fórmulas que permitissem ao intérprete supri-la. Assim, por exemplo, o art. 121, §2º, I, do CP, considera qualificado o homicídio praticado “mediante paga ou promessa de recompensa, ou outro motivo torpe”. O outro motivo torpe seria um caso de interpretação analógica, pois deve ser considerado como tal qualquer motivação análoga à paga ou à promessa de recompensa. Aqui, porém, admite-se a interpretação in malam partem.

É que, apesar de condenarem a analogia in malam partem, a doutrina e a jurisprudência admitem, sem problemas, tanto a chamada interpretação analógica quanto a interpretação extensiva contra o réu[1].

Com relação à analogia propriamente dita, que é o que nos interessa aqui, vamos usar o seguinte exemplo: o art. 1°, l, da Lei n° 7.960/89 prevê a prisão temporária para o crime de associação criminosa (CP, art. 288), mas nada diz sobre a organização criminosa (Lei n° 12.850/2013), razão pela qual não seria possível a decretação de prisão temporária para esse delito, apesar de análogo e mais grave.

Foi esse inclusive o posicionamento adotado pelo Ministro Gilmar Mendes no julgamento da ADI nº 4.109 e a ADI nº 3.360:

Assim, a prisão temporária deve ser cabível somente aos crimes previstos expressamente na legislação, visto que definido rol exaustivo no dispositivo aqui em análise. Cita-se, por exemplo, a sua inadmissibilidade em hipóteses de imputação por organização criminosa, visto que o crime de quadrilha ou bando, tipificado no art. 288 do Código Penal (previsto no rol temporária), é totalmente autônomo com relação àquele previsto na Lei 12.850/13. Ainda que se considere o crime do art. 2º da Lei n° 12.850/13 mais grave, não há autorização legal específica para a prisão temporária para esse delito, sendo importante destacar que o princípio da legalidade estrita ou cerrada é corolário da proteção dos direitos fundamentais dos investigados, que deveriam ficar livres das considerações de ordem subjetiva, pessoal ou arbitrária sobre a gravidade em abstrato de crimes que podem acarretar ou não em ordens de prisão.[2]

Temos que há vários equívocos sobre o tema em discussão, visto que : 1) analogia é interpretação e, portanto, a chamada integração do direito é também interpretação; 2) nossos juízos de valor são analógicos; logo, toda interpretação envolve analogia; 3) os limites da analogia são, pois, os limites da interpretação, os quais são grandemente indeterminados e não estão previamente dados; 4) analogia in malam partem e in bonam partem são em tese legítimas, exceto se forem incompatíveis com os princípios da legalidade e proporcionalidade.

Expliquemos.

1) Todo texto, claro, obscuro ou lacunoso, exige interpretação

Como é óbvio, qualquer texto normativo, por mais claro, preciso e bem redigido, exige interpretação. A antiga máxima segundo a qual in claris non fit interpretatio confunde a ausência de dificuldades interpretativas com a ausência de interpretação. O direito é interpretação. Parafraseando Nietzsche, cabe dizer, então: Não existem fenômenos jurídicos, mas uma interpretação jurídica e jurídico-penal dos fenômenos (Além do bem e do mal, aforismo 108). Consequentemente, não existem fenômenos criminosos, mas uma interpretação criminalizante dos fenômenos, isto é, tipificante, antijuridicizante, culpabilizante ou punibilizante.

Assim, por exemplo, mesmo uma norma que diga claramente que “é proibida a entrada de cães” requer interpretação sobre casos impossíveis de serem listados. Proibiria também a entrada de um único cão (a norma usa o termo no plural), o ingresso de cão-guia de deficiente visual, a entrada de gatos etc.?

Se há, por conseguinte, interpretação mesmo quando a lei é claríssima, haverá interpretação, com maior razão, quando a lei for omissa (integração), a exigir, possivelmente, maior esforço argumentativo. Aliás, existe também interpretação quando dizemos que a lei é omissa e temos de recorrer à analogia proibida ou permitida etc. Afinal, a interpretação não é um modo de constatar um direito preexistente, mas a própria realização do direito.

2) O direito não é um saber lógico, mas analógico

Além disso, nossos juízos de valor são juízos analógicos. Sim, porque dizemos que algo é alto ou baixo, grande ou pequeno, justo ou injusto, legal ou ilegal, pleno ou lacunoso a partir de comparações, conscientes ou não. Em todo ato de julgar há um ato de comparar. E ao comparar (fazer analogia), valoramos, interpretamos, decidimos.

Por isso, o direito não é um saber lógico, mas analógico. Como ensina Arthur Kaufmann, só se poderia separar logicamente subsunção e analogia se existisse uma fronteira lógica entre igualdade e semelhança, mas tal fronteira não existe, pois a igualdade material é sempre mera semelhança e a igualdade formal não ocorre na realidade, existindo apenas no domínio dos números e sinais matemáticos (lógico-formais). Assim sendo, fracassa qualquer proibição de analogia por mais enfaticamente invocada, porque não pode ser materialmente definida.[3]

Por que então a organização criminosa não permitiria a prisão temporária?

Em favor da prisão temporária para a delito de organização criminosa[4], é possível invocar, dentre outros, os seguintes argumentos: a) a organização criminosa é uma forma especial e qualificada de associação criminosa. Há aqui uma relação de gênero e espécie, já que toda organização criminosa é uma associação criminosa, mas nem toda associação é uma organização. Justamente por isso, o princípio da especialidade incide no caso de conflito de normas, fazendo prevalecer a imputação especial (organização criminosa), sob pena de bis in idem; b) a organização criminosa é um tipo penal mais grave, podendo ser punida com penas muito superiores às cominadas ao delito de associação criminosa (CP, art. 288); c) por ser um crime mais grave, a organização criminosa, diferentemente da associação criminosa, admite a prisão preventiva inclusive; d) se é possível a prisão mais grave (preventiva), por que não caberia a menos grave (temporária)?

Não vemos, portanto, por que não se admitir, também para a organização criminosa, a prisão temporária.

Por fim, imaginemos que a lei previsse a prisão temporária apenas para os crimes culposos, tentados e de perigo (mais leves). Se assim fosse, a prisão temporária deveria ser também admitida para os crimes dolosos, consumados e de dano (mais graves). Já o contrário seria terminantemente proibido e constituiria um caso de analogia in malam partem, pois seria incompatível com os princípios da legalidade e proporcionalidade.

Com efeito, se a lei admitisse a prisão temporária apenas para os crimes dolosos (mais graves) consumados e de dano e pretendêssemos estendê-la para os delitos culposos, tentados e de perigo (menos graves), haveria analogia proibida. Ou ainda: se a lei previsse a prisão temporária para o crime de organização criminosa (mais grave) e quiséssemos aplicá-la também ao crime de associação criminosa (menos grave), haveria analogia/interpretação proibida.

Em suma, só se pode falar rigorosamente de analogia proibida quando a interpretação proposta for incompatível com os princípios penais. A lacuna legal é, pois, uma condição necessária, mas não suficiente para se falar de analogia (proibida ou permitida).

Por isso, temos que não é cabível o uso da analogia para criar crimes não previstos em lei expressamente.

Assim, embora evidente a mora legislativa em criar leis que protejam a comunidade LGBTQ+, a criminalização da homofobia/transfobia por meio de analogia com o crime de racismo viola o princípio da legalidade penal, uma vez que não compete ao Poder Judiciário definir crimes e cominar penas. Não obstante a proteção necessária do Estado contra crimes envolvendo a violência de gênero, é certo que apenas o Poder Legislativo pode criminalizar condutas e penalizá-las.

Aqui houve analogia proibida.

O que é dito aqui sobre analogia in malam partem vale, mutatis mutandis, para a analogia in bonam partem.

Conclusões: 1) toda norma exige interpretação, inevitavelmente; 2) a interpretação é a própria realização do direito; 3) toda interpretação envolve analogia; 4) a chamada interpretação analógica é também analogia, que é interpretação; 5) os limites da interpretação/analogia são os limites do direito (o contrário também é verdade), que são grandemente indeterminados; 6) a analogia in malam e in bonam partem são legítimas, se compatíveis com os princípios penais.

 

Notas e Referências

[1]           Segundo Guilherme de Souza Nucci é indiferente se a interpretação extensiva beneficia ou prejudica o réu, pois a tarefa do intérprete é conferir aplicação lógica ao sistema normativo, evitando-se contradições e injustiças. (NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 14. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014).

[2]             Texto extraído da minuta de voto disponível em: https://www.migalhas.com.br/arquivos/2020/11/27682b91942753_votogm.pdf

[3]          KAUFMANN, Arthur. Filosofia do Direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2004. p. 184 – 191.

[4]          Art. 2º da Lei n° 12.850/2013: Promover, constituir, financiar ou integrar, pessoalmente ou por interposta pessoa, organização criminosa: Pena – reclusão, de 3 (três) a 8 (oito) anos, e multa, sem prejuízo das penas correspondentes às demais infrações penais praticadas.

 

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