O que contribui para a perpetuação da violência de gênero? Reflexões sobre a naturalização da violência e a culpabilização das vítimas

26/02/2017

Por Fernanda Ely Borba – 26/02/2017

Embora a pesquisa intitulada “Mapa da Violência 2015: homicídios de mulheres no Brasil” (WAISELFISZ, 2015) tenha sido divulgada há pouco mais de um ano, revela-se extremamente atual e oportuna para analisarmos os aspectos culturais que podem contribuir para a perpetuação da violência de gênero. Em destaque, o estudo evidencia que o Brasil ocupa a quinta posição no ranking de países que mais matam mulheres no mundo, e do total de feminicídios registrados no ano de 2013, 50,3% foram perpetrados por um familiar da vítima. Outro dado estarrecedor refere-se ao aumento de 54,2% das taxas de feminicídios de mulheres e meninas negras.

Relativamente às violências não letais, o panorama apresentado pelo Mapa da Violência indica que parentes imediatos, parceiros ou ex-parceiros são responsáveis por 67% das ocorrências de violência, cujo lócus privilegiado para sediar tais violações consiste na residência (71% das situações). Paralelo a isso, 49,2% das situações atendidas serão reincidentes, sobretudo com relação a adultas (54,1%) e idosas (60,4%). Tal cenário é revelador da espiral da violência de gênero, a qual muito provavelmente será deflagrada no início da vida da vítima, e tende a se perpetuar ao longo das demais etapas.

O retrato desenhado pela citada pesquisa sinaliza para os desafios postos ao enfrentamento da violência de gênero no Brasil, cujos índices mantêm-se elevados mesmo em face da promulgação de dispositivos legais tais quais a Lei n. 11340 de 07 de agosto de 2006, mais conhecida como Lei Maria da Penha, e a Lei n. 13104 de 09 de março de 2015, que torna o feminicídio crime hediondo. Isto nos leva a crer que muito embora os citados dispositivos legais visem, em última instância, à construção de uma nova cultura (CORTIZO; GOYENECHE, 2010), os caminhos a serem percorridos ultrapassam em muito a esfera legal.

Nessa toada, as conclusões apontadas pelo Mapa da Violência evidenciam que ainda persevera a naturalização das violências de gênero, cujas manifestações – muitas vezes sutis – são banalizadas ou mesmo invisíveis aos olhos de boa parte da população brasileira. Aliado a isso, o estudo enaltece que a perpetuação da violência está fortemente alicerçada aos níveis de aceitação social ante às práticas violentas, baseada no entendimento de que algumas razões justificam a violência sofrida.

É nesse cenário que ganham força os discursos voltados à responsabilização das vítimas em face da(s) violência(s) sofrida(s). Ou seja, atribui-se ao corpo feminino, à roupa ou ao livre exercício de ir e vir possíveis justificativas para o ato de violência. Torna-se indispensável analisarmos tais observações sob o prisma das desigualdades de gênero e do modelo cultural que sustenta tais desigualdades, baseado no patriarcado.

O conceito de gênero permite compreendemos que a construção cultural dos atributos que definem os papeis masculino e feminino transcende o sexo biológico, explicitando constituírem-se em construções socioculturais inscritas em um determinado momento histórico (SCOTT, 1995). Consequentemente, as diferenças entre os gêneros masculino e feminino são evidentes, tendo em vista que se trata de conceito eminentemente relacional. O grande problema reside na conversão das diferenças em desigualdades, o que se materializa por meio da dominação e da opressão de gênero (SAFFIOTI, 2004).

O caldo cultural que possibilitou esta perversa conversão refere-se ao patriarcado, sistema que contribuiu para o estabelecimento de papeis rígidos de gênero, atribuindo à figura masculina o provimento financeiro da família e o protagonismo no espaço público, e à figura feminina o cuidado do lar, da prole e o pertencimento ao espaço privado. Além disso, para a naturalização das desigualdades de gênero e para a legitimidade no emprego da força física e da coerção como mecanismos para a manutenção das desigualdades de gênero (SAFFIOTI, 2004).

Contemporâneo ao surgimento da família monogâmica e do nascente acúmulo dos excedentes da agricultura que repercutiram no surgimento da propriedade privada (ENGELS, 1984), o sistema patriarcal nivelou a figura feminina, a prole, os escravos e as propriedades a um mesmo patamar: objetos sob o domínio do patriarca.

Tais relações culturais, em maior ou menor grau, têm sido reproduzidas ao longo das gerações, repercutindo na perpetuação das violências no âmbito das relações interpessoais (especialmente contra mulheres e crianças), por meio da naturalização das desigualdades e de relações assimétricas de poder. Como resultado desse processo, temos os alarmantes dados reunidos pelo Mapa da Violência de 2015.

Portanto, a ruptura dos legados de violência de gênero que perduram ao largo das gerações é tarefa a ser cumprida no campo da transformação dos valores culturais que dão sustentação à violência, mais precisamente no entendimento de que não existem razões ou justificativas para a violência. Violência é sempre violência.


Notas e Referências:

CORTIZO, Maria del Carmen; GOYENECHE, Priscila Larratea. Judiciarização do privado e violência contra a mulher. IN: Revista Katalysis. V. 13 N° 1. Florianópolis: UFSC, 2010.

ENGELS, Friedrich. A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado. Trad. Leandro Konder. 9. ed. Civilização Brasileira: Rio de Janeiro, 1984.

SAFFIOTI, Heleieth Iara Bongiovani; Gênero, Patriarcado, Violência. São Paulo: Perseu Abramo, 2004.

SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação e Realidade. Vol 20(2) Jul/Dez, 1995.

WAISELFISZ, Julio Jacobo (org). Mapa da Violência 2015. Homicídio de Mulheres no Brasil. 1ª ed. Rio de Janeiro: CEBELA/FLACSO, 2015.


Fernanda Ely BorbaFernanda Ely Borba possui graduação (2004) e mestrado (2007) em Serviço Social pela Universidade Federal de Santa Catarina. É Assistente Social do Poder Judiciário de Santa Catarina desde o ano de 2008, lotada no Fórum da Comarca de Chapecó/SC. Atualmente é aluna do curso de pós-graduação lato sensu Abordagens da Violência contra Crianças e Adolescentes, promovido pela PUC/RS. Integra o  Núcleo de Pesquisas Sobre Violência (NESVI/UNOCHAPECO). Participa da União Brasileira de Mulheres (UBM) sediada em Chapecó/SC. Compõe a Associação Catarinense dos Assistentes Sociais de Poder Judiciário de Santa Catarina (ACASPJ), exercendo o cargo de presidente do Conselho Fiscal (triênio 2017-2020). Estuda o tema da violência sexual contra crianças e adolescentes desde o ano de 2002, quando passou a integrar o Núcleo de Pesquisas em Violência do Departamento de Serviço Social da UFSC (NEPEV/DSS/UFSC). 


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito. 


 

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