Contextualizando a problemática
A pandemia do Corona Vírus não trouxe ao mundo “apenas” uma crise sanitária, mas também dilemas jurídicos que angustiam os amantes dos direitos fundamentais.
O que se iniciou como uma doença respiratória na China, muito rapidamente se transformou em causa de incidentes internacionais, políticos, econômicos e jurídicos, mote perfeito para um rico debate.
A questão basilar é de escrita rápida, mas de uma profundidade sem precedentes desde o advento da Constituição Federal de 1988: o conflito entre a proteção da saúde pública e da vida em face da manutenção da ordem econômica em vias de um possível colapso absoluto.
Ante situações concretas de impensáveis desafios, o mundo vivencia, no ano de 2020, um declarado estado de Pandemia pela Covid-19, doença causada pelo denominado “coronavírus” (SARS-CoV23 ou HCoV-19), conforme fala do diretor-geral da Organização Mundial de Saúde (OMS), Tedros Adhanom Ghebreyesus[1].
A crise sanitária atravessada pelo mundo contabiliza, até março deste mesmo ano, mais de meio milhão de infectados e de 25 mil mortos, atribuindo-se tais proporções à velocidade de propagação da doença e contágio.
Estimam os pesquisadores que em cenário de ausência de intervenções, a COVID-19 resultaria em 7 bilhões de infectados e 40 milhões de mortes globalmente neste ano de 2020 e que estratégias de mitigação com foco na proteção de idosos (60% de redução em contatos sociais) e no retardo do ritmo de transmissão/contágio (40% de redução em contatos sociais da população em geral) poderia reduzir pela metade as consequências[2].
No Brasil, o crescimento exponencial do número de infectados passou a ser verdadeiramente percebido na segunda quinzena do mesmo mês, exigindo-se redobradas cautelas sanitárias.
Em Portaria nº 454 MS/GM, de 20/03/2020, o Ministério da Saúde declarou estado de transmissão comunitária da COVID-19 em todo o território nacional.
Como medidas responsivas, o Governo Federal tem produzido vasto rol de atos normativos, dentre Medidas Provisórias, Decretos Federais, Portarias e Instruções de suas respectivas Pastas, sob o mote de minimizar o impacto da pandemia, de reduzir a mortalidade e a demanda dos sistemas de saúde, a partir de experiências de outros países já atingidos, consideradas estratégias de mitigação e supressão, tais como a “quarentena”
Incontinenti e dada a evidente urgência na tomada de decisões administrativas, governantes estaduais e municipais trataram de editar outras determinações, no exercício de suas competências materiais, em defesa do melhor interesse público.
Contudo, ao fazê-los, as três esferas políticas descuidaram da necessária harmonia entre suas imposições, eis que tratam, de acordo com entendimento do Supremo Tribunal Federal, de matéria de competência comum.
Em Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6.341, proposta pelo Partido Democrático Trabalhista, sob a Relatoria do Ministro Marco Aurélio de Mello, almejou-se ver declarada a incompatibilidade parcial da Medida Provisória nº 926, de 20 de março de 2020, relativamente às alterações promovidas no artigo 3º[3], caput, incisos I, II e VI, e parágrafos 8º, 9º, 10 e 11, da Lei Federal nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020[4], sob o fundamento de que a Medida Provisória trata de tema reservado à lei complementar.
No julgamento da Medida Cautelar na referida ADI, o STF[5] consignou o entendimento de que o tema da saúde é reservado, como gênero, à competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, a teor do artigo 23, inciso II, da Constituição Federal e que a referida Medida Provisória “revela o endosso a atos de autoridades, no âmbito das respectivas competências, visando o isolamento, a quarentena, a restrição excepcional e temporária, conforme recomendação técnica e fundamentada da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, por rodovias, portos ou aeroportos de entrada e saída do País, bem como locomoção interestadual e intermunicipal”, tornando explícita, a competência concorrente.
Feitas tais considerações, o impasse jurídico que se propõe a enfrentar decorre, justamente, dos limites de atuação do Administrador Público, aí consideradas as linhas mestras definidas na Constituição Federal, quanto à extensão e profundidade das competências administrativas de cada um dos entes federados da República Federativa do Brasil, em tempos de Covid-19.
A análise de um aparente antagonismo axiológico entre a proteção da liberdade econômica e a vida pressupõe o enfrentamento de várias premissas, sendo algumas poucas encaradas neste artigo, a exemplo do estudo dos limites das funções estatais e do pacto federativo, bem como as suas respectivas competências constitucionais, sem descuidar do alerta constitucional de obediência às cláusulas pétreas.
Isso porque, em previsão expressa, o artigo 60, §4º[6], da Carta Magna proíbe qualquer ato, inclusive sua própria Emenda, que atente contra os direitos fundamentais, a separação de Poderes e o pacto federativo.
Diz-se que a pedra de toque do modelo federalista pode estar em crise na medida em que se observa um nítido conflito entre a postura do Governo Federal em relação às esferas estaduais e municipais, como se verá.
Para lançar luzes ao presente tempo de evidente anormalidade, cabe aos estudiosos e operadores do Direito se empenharem em prol da coesão das estruturas políticas e constitucionais do Estado.
Frente às posturas públicas que colocam à prova a sorte e o respeito a institutos basilares do Direito, surge a necessidade de lutar pelo respeito aos padrões federativos de interação, à luz de uma estrutura lógica de repartição de competências e livre de hierarquias.
O Pacto Federativo e as competências administrativas constitucionais
Desde a instituição da República no Brasil, em 1889, com as linhas do regime delineadas na Constituição de 1891, adota-se no sistema pátrio o modelo de federação.
Já no preâmbulo da Carta Magna[7] em vigor resta, sem qualquer sombra de dúvidas, a expressa opção do Constituinte originário pela forma federativa, cláusula pétrea gravada na própria denominação do Estado – República Federativa do Brasil.
De tantos outros dispositivos constitucionais também se extrai a premissa de que a união dos entes federativos é indissolúvel[8], despida de hierarquia, eis que autônomos entre si[9].
Uma vez reunidos num só Estado, o vínculo das pessoas políticas de direito público interno é o de indissolubilidade, marcado pelo caráter de permanência e definitividade da aliança. Governantes devem buscar a harmonia, no exercício de cada qual de suas atribuições constitucionais.
Nesse sentir, José dos Santos Carvalho Filho[10] defende que no Estado federativo ocorre “a verdadeira descentralização política, sendo atribuídos poder e capacidade política aos entes integrantes do sistema. A soberania é una e aos integrantes a Constituição reserva autonomia, maior ou menor, conforme o país, que lhes permite atuar com certa liberdade dentro dos padrões definidos na Carta federal”.
Daí se extrai que, no plano interno, as entidades federadas componentes exercem suas competências, em relações horizontais de poder, e somente no plano internacional, o Estado uno é o soberano. Tais competências serão legislativas e administrativas (ou materiais) e garantem às pessoas integrantes da federação a não invasão pelo governo central.
Conforme lição de Raul Machado Horta, competência legislativa é aquela relacionada com a elaboração de lei, enquanto que a material, geral ou de execução se acha voltada para a realização de diferentes tarefas ou serviços[11].
No que tange às competências materiais, que se referem ao exercício da função administrativa propriamente dita, a Constituição Federal atribuiu à União, Estados-Membros, Distrito Federal e Municípios um vasto rol de tarefas, notadamente as definidas nos seus artigos 21, 23, 25, §§1º e 2º e artigo 30, com predominância do critério do interesse.
No presente estudo, que analisa a atuação da Administração Pública frente ao cenário de pandemia, e seguindo forte e recente entendimento do STF, na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6.341, defende-se que as ações de combate ao COVID, versadas na Lei Federal nº 13.979/2020, são de competência comum dos entes federativos.
Enraizado no ideal de federalismo cooperativo, o exercício da competência comum/concorrente no âmbito da saúde deve respeitar a premissa de que toda decisão do governo decorre de um acordo intergovernamental, de modo a reduzir políticas públicas conflitantes e conservar as medidas administrativas tomadas pelo gestor local, que é, de fato, quem tem maior contato com as realidades concretas vivenciadas pelos cidadãos.
A propósito, segundo Michel Temer, “na Federação descentraliza-se o exercício espacial do poder e os regionalismos se pacificam, na medida em que suas peculiaridades locais são preservadas pela repartição constitucional de competências”[12]
Vale dizer, para o exercício das competências comuns é imprescindível que a atuação dos entes federativos seja coordenada e cooperativa.
É incontroverso que as relações intergovernamentais travadas entre a União e os Estados-Membros e/ou Municípios, chamada de horizontal, devem ser marcadas pela harmonia.
No modelo constitucional de repartição de competência administrativa, diferentes níveis de governo atuantes sobre uma mesma porção territorial podem levar à fragmentação das políticas sociais e a sobreposição das iniciativas de diferentes níveis de governo em um mesmo tema.
Em situações extremadas de pandemia, comoção social e de medo coletivo, regadas de doses de incerteza jurídica, confinamento e limitação a uma série de direitos fundamentais, a mão forte e protetora do Estado é imprescindível.
A harmonia que se espera do Estado é aquela verdadeiramente despida de interesses pessoais dos seus governantes.
O ano corrente é eleitoral: campo próprio para desvios.
O regime jurídico administrativo nos relembra que a atuação do gestor deve ser pautada na Lei, na moralidade, na impessoalidade e na eficiência, a partir da dicção do artigo 37 da Carta Magna, sem olvidar da razoabilidade e da proporcionalidade das e nas condutas públicas.
O consenso intragovernamental que a sociedade precisa é de proteção do melhor interesse público.
Segundo Phillip Gil FRANÇA, interesse público é “produto das forças de uma dada sociedade (...) concretizadas em determinado momento e espaço que exprime o melhor valor de desenvolvimento de um maior número possível de pessoas”: (...) interesse público é objeto que se condiciona como concretizavelmente positivo e produtivo, de forma proporcional, para quem carece de uma eficiente atividade estatal, conforme objetivos e estrutura normativa, social e política definida pela Constituição Federal. É fim a ser alcançado e promovido pelo Estado e pelos particulares em razão do dever geral de realização do sucesso estatal, via consolidação dos ditames constitucionais”[13].
Na mesma linha, Gustavo BINENBOJM sustenta que “o melhor interesse público só pode ser obtido a partir de um procedimento racional (...) de ponderação que permita a realização de todos [interesses individuais e coletivos] eles na maior extensão possível”[14].
Percebe-se que, neste palco de dilemas atuais, a grande dificuldade posta aos gestores de todas as esferas de governo é, justamente, identificar, com clarividência e a partir de uma correta ponderação de valores constitucionais, qual é o melhor interesse público concretizável.
A atuação administrativa em um contexto de normalidade, regularidade ou ordinariedade não gera, com a mesma riqueza de complexidade, os conflitos vivenciados pelos governantes em ambiências excepcionais.
Cada um dos entes da federação — União, estados e municípios —quando operam em âmbitos comuns, devem exercitar a arte da coordenação e supervisão.
Não há espaço para protagonismos.
Nesse modelo, intervenções corretivas da União somente serão aceitas em casos de graves perturbações materiais ou de deformações estruturais relevantes.
A falta de consenso gera dissonância de posturas políticas entre as diferentes esferas de Poder, que encontra raiz em múltiplas causas, ora de ordem cultural, econômica e climática, dentre outras, próprias de um território tão extenso e rico em influências como o brasileiro.
Conforme ressalta Anastásia, “O federalismo brasileiro assimétrico encontra-se diante do desafio de enfrentar enormes desigualdades de diferentes tipos que caracterizam o país e que, muitas vezes, são agravadas pelas perversas condições socioeconômicas que se mostram mais em alguns Estados e em algumas regiões do que em outras”[15].
Essas disparidades próprias do federalismo brasileiro, refletidas no ambiente jurídico neste dado recorte de tempo e espaço, fazem surgir questionamentos como: a) possibilidade de o Chefe do Poder Executivo Federal expedir Decretos e Medidas Provisórias regulando os limites dos poderes dos Chefes do Poder Executivo Estadual e Municipal; b) os limites constitucionais do poder regulamentar administrativo; c) a correta percepção do melhor interesse público concretizável; d) os limites do Poder Judiciário no controle das decisões tomadas pelos administradores públicos federal, estadual e municipal, mormente dadas pela via de Decretos, no exercício do Poder Normativo a que se refere o artigo 84, IV da Carta Magna[16].
As Políticas Públicas de Saúde em tempos de COVID 19
As políticas públicas de saúde constituem um forte pilar fundamental dos sistemas de proteção de liberdades subjetivas conquistadas ao longo do século XX.
Nessa toada, e considerando que a União é o ente federativo que mais congrega competências, com maior leque de possibilidades de ação e em matéria de competência legislativa concorrente, incumbe-lhe editar normas gerais, há uma expectativa por parte dos demais entes federados na atuação do governo federal.
Dentre vários diplomas normativos, primários e secundários, a União Federal, pelo seu Poder Legislativo e Executivo, editou a já mencionada Lei Federal nº13.979/2020, posteriormente alterada pela Medida Provisória nº 926/2020[17].
Assim, visando ao combate à propagação exponencial da doença provocada pelo Corona Vírus, o Poder Público poderá, no exercício da função administrativa, promover medidas de isolamento ou imposição de “quarentena”.
A primeira consistente na separação de pessoas doentes ou contaminadas, ou de bagagens, meios de transporte, mercadorias ou encomendas postais afetadas. A segunda, compreendida como restrição de atividades ou separação de pessoas suspeitas de contaminação das pessoas que não estejam doentes, ou de bagagens, contêineres, animais, meios de transporte ou mercadorias suspeitos de contaminação, de maneira a evitar a possível contaminação ou a propagação do vírus.
Importante destacar que tais determinações encontram respaldo em recomendação da Organização Mundial de Saúde, em diretrizes de órgãos sanitários e comitês científicos competentes.
Pela literalidade de seu artigo 3º, as medidas de enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus podem ser tomadas pelas autoridades estaduais e municipais[18], no âmbito de suas competências, que é comum, conforme entendimento do Supremo Tribunal Federal.
Dentre tantas polêmicas que surgiram, está a se as autoridades locais poderiam determinar as medidas de isolamento e quarentena, sem antes serem autorizados pelo Ministério da Saúde.
Polemizou-se, outrossim, se as autoridades administrativas locais competentes poderiam determinar a abertura do comércio, a despeito de não serem consideradas essenciais as respectivas atividades, como medida protetiva da economia.
E ainda, se o rol de atividades essenciais constante em Decreto Federal tem caráter vinculante em todas as esferas de poder e se é matéria a ser regulada por lei em sentido estrito, em obediência ao princípio da legalidade.
São muitos os embates jurídicos e principiológicos a serem enfrentados. A efemeridade da situação talvez não permita que grande parte deles sejam solucionados a tempo.
Do Conflito de Bens Jurídicos Essenciais em Tempos do COVID 19
Além do evidente problema de saúde pública, o corona vírus trouxe à tona conflitos ideológicos e principiológicos há muito não vistos no cenário jurídico pátrio.
Choques entre o bem jurídico representado pelo binômio “vida e saúde” em oposição a bens jurídico de natureza patrimonial não são recentes no cenário jurídico nacional.
Diariamente, conflitos dessa estirpe são submetidos ao crivo do Poder Judiciário, tais como o debate da escassez de recursos públicos e o fornecimento de medicamentos e tratamentos de alto custo pelo Sistema Público de Saúde.
Não por outra razão que a polêmica tem sido há anos analisada e maturada pelos nobres magistrados na Corte Superior.
Entretanto, é inovadora a magnitude e a proporção que o conflito entre “vida e economia” tomou com a chegada não benvinda do COVID -19 ao mundo.
A valoração que se dará a um outro bem jurídico é que irá definir o futuro de toda a nação.
Se por um lado, o direito à vida é fundamental, é inegável que o direito ao labor, desde que feito em condições seguras e salubres, é um direito social.[19]
De igual forma, há previsão constitucional de proteção ao direito à exploração do mercado, da atividade econômica, e da propriedade (e sua função social), eis que, não se olvide, a República Federativa do Brasil também abraçou o modelo capitalista.
Viu-se que, no exercício do seu Poder regulamentar, o Chefe do Poder Executivo Federal foi incumbido de estabelecer lista de atividades consideradas essenciais, ou seja, aquelas indispensáveis ao atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade, sob pena de ofensa à sobrevivência, à saúde e à segurança da população.
Com fulcro em tal competência, foi editado o Decreto Federal nº 10.282/2020, posteriormente alterado e ampliado pelo Decreto Federal nº10.292/2020[20], que, cedendo à pressão de alguns grupos, incluiu dentre as atividades imprescindíveis à sociedade o funcionamento de lotéricas e de Igrejas.
Em contramão às recomendações de “isolamento horizontal” defendida pela Organização Mundial de Saúde e órgãos sanitários, a fim de evitar o contato interpessoal e, de forma absoluta, qualquer espécie de aglomeração, o Governo Federal, por meio do Decreto nº10.292/2020 ampliou o rol de atividades, permitindo a sua prática, demonstrando uma tendência ao “isolamento vertical”[21], o que foi defendida em diferentes pronunciamentos oficiais do Presidente da República.
Em manifestação do controle externo do ato normativo federal, o Ministério Público Federal ajuizou demanda judicial em face da União, questionando a legalidade do referido Decreto e a ausência de justificativa para alargar o rol de atividades, para aquelas que não se mostram, à evidência, imprescindíveis[22].
Em decisão liminar, determinou-se a suspensão dos itens referentes às lotéricas e Igrejas, ficando impedida a inclusão de novas atividades essenciais sem antes serem prestadas as devidas justificativas técnicas[23].
No plano normativo e político, a postura do governo federal causou “dúvidas” na população e nos demais governantes, em evidente prejuízo ao equilibrado pacto federativo, produzindo efeitos em cascata e todos os cantos do território brasileiro.
Isso porque, entende-se que a reabertura do comércio acarretará o aumento de circulação de bens e pessoas, colocando em suposto risco a saúde dos trabalhadores e da população em geral (patrões, clientes, familiares etc.), em razão do alto nível de transmissão da COVID-19, inclusive no caso de pessoas assintomáticas
A postura mais liberal do Governo Federal entrou em rota de colisão com atos normativos produzidos nos Estados Membros e Municípios, até então praticados sob a orientação de que o isolamento horizontal era a medida mais satisfativa do interesse público.
Em carta datada de 27 de março de 2020, o Conselho Nacional de Secretários de Saúde de todo o Brasil– CONASS[24], declarou que “Pronunciamentos e orientações conflitantes das autoridades sobre medidas restritivas adotadas no enfrentamento do corona vírus geram intranquilidade e insegurança”.
Governadores e Prefeitos se mobilizam entre a gradual retomada das atividades econômicas e manutenção do isolamento, enquanto o Ministério Público expede recomendações administrativas e ajuíza ações judiciais em defesa da “quarentena”. Magistrados ora proferem decisões de urgência pela manutenção do recolhimento social, ora pela preponderância do mérito administrativo a ser ponderado a critério discricionário do Governante.
Sob o enfoque jurídico, poder-se-ia defender que a dialética de posições é fruto da diversidade de subjetivismos. Atores deste palco social ora se inclinam às tendências mais humanizadas, ora a vertentes mais econômicas.
Na tentativa de se fazer o certo, o melhor ao interesse coletivo, está-se a arriscar algo muito precioso: a vida humana em massa.
A Ciência do Direito e as Ciências Sociais há muito explicam que as leis são fruto da sociedade, que agora está dividida, regida por governantes igualmente divididos e políticas nada coesas.
Sem nenhum eufemismo, não se pode negar que o Direito e a Economia andam juntos e a manutenção da sociedade pressupõe a existência de recursos, que são escassos. Cabe ao Governantes melhor geri-los, o que torna a preocupação com a manutenção da atividade produtiva igualmente legítima.
Em obra intitulada “Políticas de Saúde no Brasil: continuidade e mudanças”, Cristiani Vieira Machado assevera que “se, por um lado, as transformações no capitalismo e na atuação dos Estados Nacionais têm importância para as políticas sociais, por outro lado os sistemas de proteção social apresentam características próprias, que afetam a face das nações capitalistas das quais fazem parte e repercutem na questão social em casa sociedade” [25]
É dessa análise de simbiose entre capital e estrutura pública suficiente que se questiona como garantir o regular funcionamento do sistema de saúde, peça fundamental nas políticas sociais, se os recursos que o mantém forem escassos.
No Brasil, a saúde representa grande impacto no orçamento da área social, com um sistema público de saúde atuante na maior parte da extensão do território nacional.
Sob a égide da Constituição Cidadã de 1988, é inegável que a política nacional de saúde é fundamental para a compreensão dos limites da proteção social no país, a partir de preceitos de universalidade, igualdade e cidadania.
Não se pode ignorar, portanto, que a sobrevida de toda esta custosa estrutura pública é igualmente essencial.
Cabe, portanto, a partir de uma análise sistemática e à luz do princípio da razoabilidade, tão caro ao mérito administrativo, buscar a solução mais eficiente, que deve necessariamente ponderar o dever estatal mais basilar: o de preservar o maior número de vidas possível.
Considerações Finais
A forma de Estado adotada pela República Federativa do Brasil pressupõe que cada ente político desenvolva suas respectivas competências constitucionais de forma autônoma, mas harmoniosa, como resultado do Pacto federativo entre União, Estados-membros, Distrito Federal e Municípios.
Em tempos de COVID 19, pandemia de contágio rápido e de alto índice de óbito, a Administração Pública é chamada a realizar atividades positivas, no sentido de proteger direitos mais basilares de seus administrados.
Zelar pela saúde, conforme expressa previsão constitucional, é atividade comum a todos os referidos entes, o que foi confirmado pelo Supremo Tribunal Federal ao julgar Medida Cautelar na ADI nº 6.341, no que tange às medidas tomadas pelo Governo Federal na aplicação da Lei Federal nº 13979/2020, que dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019.
Os sistemas de saúde de todo o mundo foram colocados à prova e rapidamente levados à exaustão, com maior gravidade para aqueles países (notadamente de baixa renda) que dispõem de sistemas de saúde com menor capacidade, como é o caso do Brasil.
Governantes de todo o planeta se apoiam na comunidade científica para, em consenso, aceitar que o distanciamento/isolamento social é a medida mais eficaz no do que se chamou “achamento da curva” de propagação do vírus, permitindo que os sistemas de saúde se municiem de condições mínimas de enfrentamento da crise de contágio, que, até agora, mostrou-se inevitável.
Em virtude dessa orientação e considerando as medidas de proteção estabelecidas na Lei Federal 13.979/2020 (em especial de isolamento social e necessidade de evitar aglomerações), vários Estados e Municípios brasileiros passaram a editar normas jurídicas, determinando o fechamento de vias públicas e estabelecimentos prestadores de serviços considerados não essenciais.
Aos demais, pela imprescindibilidade ao interesse púbico, resguardou-se tratamento jurídico apto a evitar a solução de continuidade.
Contudo, o Governo Federal adotou postura antagônica ao consenso federativo, ao defender que a medida de isolamento é traumática à Economia, sob o mote de que “pode ser pior que a própria doença”, aumentando o rol de atividades essenciais e indicar que o isolamento dos grupos considerados de risco é suficiente.
Opondo-se à recomendação da Organização Mundial da Saúde (OMS), da comunidade científica brasileira e Secretários de Saúde estaduais e municipais, a postura do Governo federal, ainda seguida por outros poucos governantes estaduais e municipais, tem sido questionada pelo Ministério Público, inclusive judicialmente.
A população, confusa, quebra a recomendação do isolamento e volta às ruas, ignorando, inclusive, o cuidado com os grupos de risco.
Os efeitos do impasse que ora se vive são incalculáveis. Ao leitor do futuro cabe a resposta.
É certo que ao Administrador Público é dada a função precípua de satisfazer o melhor interesse público, a partir das balizas da lei. Espera-se, contudo, que esse caminho, seja regado de bom senso e de princípios morais do bom trato com a coisa pública, com olhos e consciência nas futuras gerações, e despido de interesses eleitoreiros.
Roga-se pela manutenção do pacto federativo e pelo fortalecimento do laço de cooperação entre os entes federados, sob pena de ruírem as bases da República.
E esse ponto cabe mais “aos homens da federação” que à própria forma de federação. A unidade de esforços já é custosa aos reveses da crise do Covid 19. A pluralidade multiplicará os mesmos contratempos em proporções irrecuperáveis.
Notas e Referências
[1] Decretado estado de pandemia em 11 de março de 2020.
[2] Conforme extraído da petição inicial dos autos de ação civil pública nº 5002814-73.2020.4.02.5118/RJ – 1º Vara Federal de Duque de Caxias – RJ.
[3] Art. 3º Para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus, as autoridades poderão adotar, no âmbito de suas competências, dentre outras, as seguintes medidas:
I – isolamento;
II – quarentena
[…]
VI - restrição excepcional e temporária, conforme recomendação técnica e fundamentada da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, por rodovias, portos ou aeroportos de:
a) entrada e saída do País;
b) locomoção interestadual e intermunicipal;
[…]
§8º As medidas previstas neste artigo, quando adotadas, deverão resguardar o exercício e o funcionamento de serviços públicos e atividades essenciais.
§9º O Presidente da República disporá, mediante decreto, sobre os serviços públicos e atividades essenciais a que se referem o § 8º.
§10. As medidas a que se referem os incisos I, II e VI do caput, quando afetarem a execução de serviços públicos e atividades essenciais, inclusive as reguladas, concedidas ou autorizadas, somente poderão ser adotadas em ato específico e desde que em articulação prévia com o órgão regulador ou o Poder concedente ou autorizador.
§11. É vedada a restrição à circulação de trabalhadores que possa afetar o funcionamento de serviços públicos e atividades essenciais, definidas nos termos do disposto no § 9º, e cargas de qualquer espécie que possam acarretar desabastecimento de gêneros necessários à população.”
[4] Dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019.
[5] Ementa do julgado: “SAÚDE – CRISE – CORONAVÍRUS – MEDIDA PROVISÓRIA – PROVIDÊNCIAS – LEGITIMAÇÃO CONCORRENTE. Surgem atendidos os requisitos de urgência e necessidade, no que medida provisória dispõe sobre providências no campo da saúde pública nacional, sem prejuízo da legitimação concorrente dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.”
[6] Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta:
(...)
§4ºNão será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:
I - a forma federativa de Estado;
II - o voto direto, secreto, universal e periódico;
III - a separação dos Poderes;
IV - os direitos e garantias individuais.
[7] Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.
[8] Conforme artigo 1º da CF: “Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (...)”
[9] Conforme artigo 18 da CF: “Art. 18. A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição.”
[10] https://www.emerj.tjrj.jus.br/revistaemerj_online/edicoes/revista15/revista15_200.pdf. Acesso em 29/03/2020.
[11] HORTA, Raul Machado. Direito Constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 2002.
[12] TEMER, Michel. Elementos de Direito Constitucional. 3. Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1985, p. 61
[13] FRANÇA, Phillip Gil. Ato administrativo e interesse público: gestão pública, controle judicial e consequencialismo administrativo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 223.
[14] BINENBOJM, Gustavo. Uma teoria do direito administrativo: direitos fundamentais, democracia e Constitucionalização. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 116.
[15] ANASTASIA, Fátima. Federalismo e relações intergovernamentais. In: AVELAR, Lúcia & CINTRA, Antônio Octávio (Org.). Sistema político brasileiro: uma introdução. Rio de Janeiro: Fundação Konrad-Adenauer-Stiftung; São Paulo: Fundação Unesp Ed. 2007, p. 240.
[16] Art. 84 CF: Compete privativamente ao Presidente da República:
(...)
IV - sancionar, promulgar e fazer publicar as leis, bem como expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução;”
[17] De 20 de março de 2020 - Altera a Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, para dispor sobre procedimentos para aquisição de bens, serviços e insumos destinados ao enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus.
[18] Cf. artigo 3º, §7º da Lei Federal nº 13.979/2020:
“§ 7º As medidas previstas neste artigo poderão ser adotadas:
I - pelo Ministério da Saúde;
II - pelos gestores locais de saúde, desde que autorizados pelo Ministério da Saúde, nas hipóteses dos incisos I, II, V, VI e VIII do caput deste artigo; ou
III - pelos gestores locais de saúde, nas hipóteses dos incisos III, IV e VII do caput deste artigo”
[19] É direito do trabalhador a redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança, conforme artigo 6º e 7º, XXII, da Constituição Federal
[20] De 26 de março de 2020.
[21] De acordo com a Associação Paulista de Medicina, o isolamento “horizontal” aconselha que grande parte da população permaneça em suas casas ,para evitar aglomerações e reduzir a disseminação do vírus. O confinamento “vertical” sugere o isolamento dos grupos de riscos conhecidos – como idosos e pessoas com doenças anteriores. http://associacaopaulistamedicina.org.br/noticia/isolamento-e-quarentenas-como-paises-estao-lidando-ao-redor-do-mundo. Acesso em 30/03/2020.
[22] Ação Civil Pública nº 5002814-73.2020.4.02.5118/RJ em trâmite perante a 1º Vara Federal de Duque de Caxias – RJ.
[23] De acordo com a liminar, determinou-se a “suspensão da aplicação dos incisos XXXIX e XL do §1º do art 3º do Decreto nº 10.282/2020, inserido pelo Decreto nº 10.292/2020, editados pela União” e determinou que a União “se abstenha de editar novos Decretos que tratem de atividades e serviços essenciais sem observar a Lei 7.783/1989 e as recomendações técnicas e científicas dispostas no art. 3º §1º, da Lei 13.979/2020, sob pena de multa de R$ 100.000,00”, bem como de “adotar qualquer estímulo à não observância do isolamento social recomendada pela OMS e pleno compromisso com o direito à informação e o dever de justificativa dos atos normativos e medidas de saúde, sob pena de multa de R$ 100.000,00
[24] Íntegra da Carta: “O Conass, em seus 38 anos de existência, sempre se colocou ao lado do povo brasileiro e na defesa de seu direito à saúde e à vida. Esta é nossa missão e nosso compromisso. Não faltaremos ao povo brasileiro neste momento de grave ameaça à saúde e à vida de todos. Pronunciamentos e orientações conflitantes das autoridades sobre medidas restritivas adotadas no enfrentamento do coronavírus geram intranquilidade e insegurança. Diante disso, manifestamos nossa posição oficial sobre a matéria e defendemos a condução técnica das medidas de combate pelos profissionais do Ministério da Saúde, em alinhamento e harmonia com os gestores estaduais e municipais de saúde do país. Frente à Covid-19, que ameaça o mundo e o Brasil, seguiremos com nossa tradição de pautar nossas ações pelo mais elevado espírito público, pelas melhores evidências científicas e técnicas, pelas mais exitosas práticas internacionais, resistindo a qualquer ação estranha a isso e que possa colocar em risco a vida de nossa gente. Defendemos irrestritamente as medidas sanitárias adotadas pelas unidades federativas do país, pois não se pautam por cores partidárias ou de qualquer outra natureza, e sim por critérios técnicos e científicos observados ao redor do planeta. A doença não escolhe quem atinge. É implacável. Implacáveis e incansáveis devemos ser nós, e o povo brasileiro, contra ela”. http://www.conass.org.br/carta-a-nacao-2. Acesso em 30/03/2020.
[25] MACHADO, C.V., BAPTISTA, T.W.W., and LIMA, L.D., orgs. Políticas de Saúde no Brasil: continuidade e mudanças. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz, 2012, p. 13
Imagem Ilustrativa do Post: Scales of Justice - Frankfurt Version // Foto de: Michael Coghlan // Sem alterações
Disponível em: https://www.flickr.com/photos/mikecogh/8035396680
Licença de uso: https://creativecommons.org/publicdomain/mark/2.0/