‘O professor’ perante as instituições de ensino e a produção institucional da subjetividade – Por Patrícia Cordeiro e Guilherme Moreira Pires

20/07/2015

Esse texto é dedicado a todos os professores e alunos que habitam ou já habitaram esse mundo. Nutrindo sentido ou não para você, agradecemos pela leitura.

"O professor marginal é aquele que violenta as instituições para não violentar a vida." (WARAT, Luis Alberto, p. 115, 1985).

Sabidamente, nem todos os professores preenchem esse apontamento de Warat; é dizer, nem todos desafiam as imposturas, criticam a tirania cultural, revolucionam, abalam certezas, sonham e permitem sonhar. Por isso, nem todos merecem essa excelente menção, sublime, crítica, vívida, mágica!

A maioria dos professores rende-se ao fluxo hegemônico de produção institucional da subjetividade padronizada, (re)produzindo - e adequando-se! - às fábricas de saber e manuais de sentir, disseminando e mesmo acreditando no conteúdo incorporado, nos discursos e referenciais naturalizados, aptos a serem disseminados, despejados nos alunos-réplicas; o que constitui uma violência brutal(izante).

Nesse fluxo, professores-padrão fomentando a criação de alunos-padrão são uma constante facilmente verificável: o professor não se permite (não quer e muitas vezes nem pode) transcender os territórios estipulados.

Assim como os alunos, esse professor-padrão também pensa dentro das grades que lhes são impostas, e que ajuda a (re)produzir e reforçar,  grades inclusive curriculares, e de toda sorte, que influem sobre cada parte do todo, instituindo uma atmosfera pesada, sufocante, carregada de um poder que aprisiona e controla corpos e mentes, sutilmente ou não.

E o aluno, cópia da cópia, extensão do poder do professor, reificado e brutalizado, é comumente interpretado como um duplo do que pensa o professor, mas um duplo inferior, hierarquicamente abaixo e rebaixado, para nunca superar o mestre, senão reproduzi-lo. Um duplo em potencial, cujo próprio potencial foi roubado, suprimido, dilacerado.

"Você foi roubado, condicionado, manipulado, argumentado, persuadido, trabalhado de todas as formas possíveis para que não pudesse chegar a você mesmo. Isso é o que a cultura chama de socialização. Nossa proposta é destrutiva, um modo de desaprender o aprendido de forma imposta, destruir o imposto em você, para dessa maneira ativar o espaço vazio para a sua criatividade. As descobertas são feitas por você, o que o torna um ser diferente, por pequenas e simples que essas descobertas sejam. Na realidade nenhuma chave pode ser entregue. Não existem chaves para abrir a porta, quando o que se pede é a própria porta." (WARAT, Luis Alberto, p. 279, 2001).

Alunos que desde cedo têm seus desejos e potenciais libertários castrados, são treinados para obedecerem e reagirem das mesmas formas, para sentirem e pensarem igualmente, brutalmente moldados consoante padrões pré-estabelecidos, incutidos de modo a detonarem com a individualidade, e eis o paradoxo: o que temos incorporado não é nosso, embora, nosso que é, torne-se nós mesmo.

Individualidade obliterada, em que mesmo o aparente sentir é produto de recortes arbitrários e reducionistas, atrelados à produção institucional da subjetividade, que também mata e adiciona desejos, destroça e implanta sentidos, forja e oculta verdades, possibilitando o emergir de horizontes retalhados. É dizer: Alunos que sentem, pensam e enxergam o que - e até onde - se permite.

"Muitas vezes se fala em estimular a criatividade do aluno, mas se quer que o aluno seja criativo de uma maneira semelhante a que pratica o professor. É uma criatividade vigiada. (...) o professor inconformista - o grande iconoclasta - brinca de Deus. Simula derrubar todos os ídolos com a secreta esperança de poder ele ocupar o lugar de todos eles. Nada presta, só sua palavra: o único fetiche a ser venerado.” (WARAT, Luis Alberto, p. 31, 1990).

Nesse cenário, a crítica não transcende as hipóteses e percepções das redes de poderes, inclusive porque é refém desse espaço de produção institucional, de seus campos comunicativos, de suas possibilidades de concretização.

Assim, a crítica não tolerada (desde o referencial delimitado descrito, e que nele não encontra oxigênio), opera mais enquanto resistência e oposição do que como fruto do fluxo normal da produção institucional, caracterizando, precisamente por isso, tentativas árduas de humanizar o inumano, transcender as limitações e violências do conteúdo mecanicamente (re)produzido, conferir possibilidades de pensarmos criticamente e mesmo de nos encontrarmos, afinal, nessa produção, nossas individualidades se diluem e esvanecem a ponto de não sabermos quem somos, senão cópias de cópias.

Mecanismos de adestramento, controle e assujeitamentos, que não reconhecem, e que consequentemente suprimem o próprio reconhecimento de alguém enquanto a pessoa inteligente e criativa que pode ser, tendo em vista que só valoriza o conteúdo (de)limitado desde seus referenciais, que perpetra um corte do que é válido e do que não é, do que interessa e do que não interessa, do que é relevante e do que não é.

Assim, gênios são transformados em burocratas diariamente, a ponto de muitas vezes sequer se reconhecerem enquanto as pessoas criativas e inteligentes que de fato são, ou que poderiam vir a ser caso tivessem se deparado com um ensino libertário, ampliador de horizontes e valorizador da complexidade, e aqui reside esse duplo aspecto marcante.

O saber institucionalizado – sobretudo o saber jurídico –, destroça o potencial criativo, castra desejos e adiciona desejos constitutivos que não são nossos, mas que, uma vez incorporados, se tornam nossos!

Saber que condensa “soluções” em códigos, bem como impede que encontremos caminhos próprios, bloqueando a singularidade dos nossos próprios percursos para situações únicas, analisadas por nós mesmos; assim, ao pretender criar respostas-padrão para a conflitividade (e o mundo!), acaba por edificar e instituir simulacros de verdades e respostas pré-prontas, num caldeirão repleto de adoração, fascínio e dominação, ingredientes que borbulham poder.

As instituições corroboram para que não sejamos nós mesmos, para que não nos encontremos; para que nós, capturados, nos moldemos conforme os anseios do capturador: conforme seus padrões, conceitos, valores, verdades, tateando reféns de projeções, expectativas e desejos alheios, que não são nossos, mas que se tornam nossos, que então nos constituem e passam a pertencer a nós, destroçando nossas individualidades, devorando outras possibilidades, suprimindo a criticidade.

Assim, uma vez capturados, imersos, tornamo-nos suscetíveis a essas violências, que comumente sequer são reconhecidas enquanto violências (das quais muitos até aprendem a gostar, e que são precisamente treinados para isso), mas que implantará desejos e regerá nossas percepções, linguagem, pensamentos, horizontes, mundos.

Uma captura que nos mata e tritura.

Isso dito, como rota de fuga para escapar dessa grande captura, ou ainda como oposição e colisão direta à mesma, não impomos e nem sequer ofereceremos caminhos, chaves e soluções express, propomos sim muita coisa, e temos sim algumas respostas arduamente construídas, porém, cada um deve construir sua individualidade e subjetividade, perscrutando sem grilhões por respostas, ou pelo o que for. Desejos, lembremos!

Nesse sentido, não pretendemos monopolizar conceitos e estruturas de pensamentos, desesperadamente instituindo uma artificial unidade coesa, mediante sacrifício do conteúdo indesejável desde nossos referenciais.

Não somos Estados, brincamos.

Nossa construção também nos remete, como relembra Warat, a uma proposta destrutiva, mas jamais colonizadora e monopolizadora do mundo, sequestradora de todas as perspectivas e referenciais.

Somos o que somos, não o que poderíamos ser. Paira alguma dúvida de que fomos violentados pela produção institucional da subjetividade?

Que potencial residiria na complacência com o fato de sermos filhos dessa plantação? Há potencial nessa complacência de rebanho?

Provavelmente o aluno era mais livre no primeiro dia de aula do que no último. Tempo de vida e energia sugados, potência libertária silenciada e destruída. Escolarização não é sinônimo de ensino crítico e libertário; aliás, a escola historicamente está muito mais próxima da prisão do que disso[1].

Assim como o ser-humano aprisiona e controla seu gado-propriedade, a escola, delineada em formato de cercadinhos, também adestra, disciplina, ordena, decide e controla as vidas de seus gados, exigindo-lhes total obediência, bem como o contemplar das expectativas deles, os senhores.

O professor marginal não tolera tal atmosfera de estupor, a ponto de perpetrar um paradoxo, ele desmi(s)tifica isso, remove coroas e sacralizações, sendo, por excelência, um dessacralizador, pensante e crítico, que entende a importância da liberdade, ao mesmo tempo que, ao remover todo esse viés brutalizante e violento, permite o emergir de uma pedagogia libertária, que não é mágica, mas que se torna mágica na medida em que substitui as arbitrariedades sacralizadas e limitantes (im)postas, desvelando desejos não mais implantados e reforçados por uma produção institucional arbitrária e degradante.

Mágico é descobrir que não há mágica, como não há mais correntes. E, se não há mais correntes, podemos criar mesmo o que não existe, podemos fazer mágica. Assim, o professor marginal é um mágico, um paradoxo, uma potência libertária. Explosão de limites.

Nos ajuda a remover mesmo desejos arbitrários implantados, sacode nossas estruturas de pensamento, desloca e abala o pensamento sedimentado, trabalhando com novos desejos e referenciais, removendo a máscara mágica, pesada, engessada e inquestionável de única realidade possível da própria realidade, e de nós mesmos, que, então, passamos a (nos) questionar e a (re)pensar cada fração de mundo, e de nós.

Ao repelir coroas e sacralizações, o professor marginal, potente dessacralizador, remove o (im)posto dogmático (re)cortado e replicado enquanto sedimentado ponto de partida, questiona todo corte artificial, de viés sacro, mágico e até universal, que passa a simploriamente reger (e limitar) nosso horizonte simbólico, a ponto de pensarmos que certas linguagens são naturais, que o "crime" nos remete a um elemento ontológico, que a "pena" é uma construção universal que nutre enorme sentido para todos, quando, em verdade, são construções arbitrárias que não exaurem todas as possibilidades, tampouco fazem sentido para todos, como sugerem seus conjura-dores e ativa-dores. Construções rasteiras.

Para romper com esse Blackout Criminológico e Linguístico, bem como a produção institucional da subjetividade, é preciso experimentar liberdades, abandonar os deuses do saber e trilhar caminhos próprios, reconstruir a subjetividade, percorrer os próprios territórios desconhecidos da sensibilidade, [2]mergulhar nas próprias inquietações e angústias, repudiar os mapas traçados, que levam a caminhos planejados. O ensino libertário pede a coragem de romper com o velho, suportar o desconforto de abandonar o conhecido, para enfim se deparar com o novo, o inaugural, portador de encantos, surpresas, belezas e caos[3]. Por isso, cabe ao professor transgredir, desafiar os caminhos forjados e lutar pela (re)construção da subjetividade.

Warat com certeza foi uma mágico, que substituía o giz por uma cartola, e dela saíam mil verdades transformadas em borboletas, como costumava dizer. Alguém que, ainda que não tenhamos conhecido pessoalmente, nos faz sentir saudades. Irradia em seus escritos compreensão, amor, sensibilidade, ternura e liberdade. Defensor implacável de uma pedagogia pautada no amor e no desejo.

E sobre o professor, provoca: “o professor deve ser um transgressor total do saber acadêmico. Para que serve um professor, se não pode destruir o saber institucionalizado?” (WARAT, Luis Alberto, p. 95, 2004).

O professor marginal ilumina, demole e desvela a racionalidade mágica do poder exercido, sujeitando-o ao crivo do pensamento crítico, despido de simulacros, discursos legitimantes e roupagens justificacionistas do controle (enquanto universal e única realidade possível), assim abrindo, nas fendas desse abalo, espaço para o novo, que não é mágico, mas acaba se tornando, ressignificado noutra acepção, substituindo tudo aquilo que se colocava como magicamente inquestionável.

Mágico é não existir mágica, mas também não existir correntes. E, se não existe correntes, podemos criar mesmo o que não existe, podemos mesmo criar mágica! Assim, o professor marginal é um mágico, ainda que não exista mágica! É precisamente por não estar sujeito ao que existe, complacentemente condicionado ao (im)posto, não se sujeitando aos lindes que lhe cerca, que pode pensar além, e criar o que nem sequer existe. É por não existir mágica que ele é mágico!!!

Propiciando o surgimento de flores mesmo nos lugares em que diziam ser impossível qualquer vida, o professor marginal não se limita ao fluxo oficial e institucional, e consequentemente não limita seus alunos, não os (re)corta, não os violenta, não os destroça.

Ele desconfia profundamente dos limites que lhe são impostos, neles não confia, e não porque os desconhece, mas precisamente por conhecê-los bem demais, e também por se conhecer, com aguçada sensibilidade e percepção.

Mesmo que limitado no passado por seus professores, ele comporta em si o potencial libertário para interromper com esse ciclo; tornou-se alguém que não se limita e aprendeu a não limitar os demais, aprendeu a não violentar a vida, e estimula um viver sem violentá-la.

O professor marginal é transcendência do conteúdo hegemonicamente (im)posto e de suas próprias condições limitantes, não é refém dos limites em que é inserido, não se sujeitando complacentemente sequer aos limites da margem; ainda que situando-se na margem, ele transborda a margem, que representa sua posição longe do fluxo hegemônico arbitrário, mas não opera enquanto espaço de aprisionamento, senão que de libertação.

A margem é também, portanto, não-identificação às formas de (re)produção institucional de um saber transmitido enquanto um adestrar, permitindo-se a dilacerar limites e lindes sufocantes, que limitam quem nós somos, e quem poderíamos ser, juntamente com desejos, sonhos, sentidos, felicidades e liberdades[4].

O professor marginal não produz automática e mecanicamente alunos marginais, sendo essa lógica de réplicas a lógica aplicável ao professor-padrão; o  que o professor marginal pode fazer é ajudar a provocar e ativar a sensibilidade em cada um de nós, não se trata de algo que pode ser dado ou passado adiante mediante mera repetição.

O aluno marginal é mais complexo, a mera repetição engessada não dá conta de criá-lo. Ele é quem precisa se criar, respirar e viver.

O professor marginal é um igual.

É pura potência libertária!

Saúde e Anarquia,

Que professor você é?

Que professor você deseja ser?

Você ainda deseja?

O que você deseja?

Depois desse texto, esperamos que muitos desejem ser professores. Professores mágicos. Desejamos que vocês tenham muitos desejos.


Notas e Referências:

[1] Prisões e escolas: um estranho parentesco. Prisão e escola são instituições da modernidade. A escola foi criada para disciplinar a criança, para torná-la um bom trabalhador e um bom cidadão; a prisão (para jovens e adultos) apareceu, quase ao mesmo tempo, para corrigir os desviados, ressocializá-los, integrá-los sob o espírito da nova chance, da introjeção dos valores perdidos ou desconhecidos. A prisão, desde o século 19, inaugura o lugar de efetivação de uma economia política da pena, em que se elabora um cálculo supostamente objetivo, segundo as circunstâncias históricas em que ocorrem as lutas sociais As condutas consideradas anti-sociais e que ferem a sociedade, com suas leis e ordem, de acordo uma gravidade infracional determinada, é designada crime pelo direito penal.” p. 94. PASSETTI, Edson. AUGUSTO, Acácio. Anarquismos & Educação. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2008.

[2] Referência ao título da obra: WARAT, Luis Alberto. Territórios desconhecidos: a procura surrealista pelos lugares do abandono do sentido e da reconstrução da subjetividade. Florianópolis: Fundação Boietux, 2004.

[3] “Durante sua existência, cada pessoa interfere nos eventos em sua volta, dando-lhes novos percursos, ignorando-lhes os rumos ou mantendo seus modorrentos itinerários. Por vezes, sob circunstâncias imprevistas, alguém é levado ao transbordamento das margens, dos limites, das fronteiras, das designações a respeito de onde devemos parar sinalizados por regras ou leis. Aí, ele se vê diante do caos e da beleza estonteante e experimenta liberdades.”p. 11. PASSETTI, Edson. AUGUSTO, Acácio. Anarquismos & Educação. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2008.

[4] "Essa crítica leva muitas pessoas a perguntarem se existe outra possibilidade de aprendizagem. Paradoxalmente as mesmas pessoas, quando pressionadas a especificar como adquiriram o que sabem e valorizam, prontamente admitem que o aprenderam, as mais das vezes, fora e não dentro da escola. Seu conhecimento dos fatos, sua compreensão da vida e do trabalho lhes adveio pela amizade ou pelo amor, enquanto assistiam televisão ou liam, pelo exemplo de colegas ou por uma dissensão resultante de um encontro na rua. Ou talvez tenham aprendido o que sabem num noviciado ritual que precedeu à sua admissão num grupo de bairro; pela admissão em um hospital, no parque gráfico de um jornal, na oficina de um bombeiro ou no escritório de uma companhia de seguros." p. 83. ILLICH, Ivan. Sociedade sem escolas. Tradução de Lúcia Mathilde Endlich Orth. Petrópolis: Editora Vozes, 7º edição.

WARAT, Luis Alberto. A ciência jurídica e seus dois maridos. Santa Cruz do Sul: Faculdades Integradas de Santa Cruz do Sul, 1985.

WARAT, Luís Alberto. Manifestos para uma Ecologia do Desejo. São Paulo: Editora Acadêmica, 1990.

WARAT, Luís Alberto. O ofício do mediador. – Florianópolis: Habitus, 2001.


Imagem Ilustrativa do Post: A escola e o mundo real // Foto de: Autor desconhecido // Sem alterações

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