O processo penal medievalesco e o risco do silêncio: das masmorras dos inquisidores às prisões provisórias – Por Maurilio Casas Maia

03/05/2015

“Na primeira noite eles se aproximam e roubam uma flor do nosso jardim. E não dizemos nada. Na segunda noite, já não se escondem: pisam as flores, matam nosso cão, e não dizemos nada. Até que um dia, o mais frágil deles entra sozinho em nossa casa, rouba-nos a luz, e, conhecendo nosso medo, arranca-nos a voz da garganta. E já não podemos dizer nada.”

“No caminho, com Maiakóvski”, poema de Eduardo Alves da Costa

Não tardou para que a discussão oriunda da chamada “Operação Lava Jato” avançasse ao Supremo Tribunal Federal – cite-se aqui o HC n. 127.186-PR (STF, 2ª Turma, j. 28.4.2015), comentado adiante. Um dos polêmicos tópicos em torno do referido caso seria a suposta tese pela qual a prisão provisória teria a finalidade de “incentivar” os acusados à confissão e colaboração com a instrução processual penal. Nesse cenário atual, longe do debate sobre o caso concreto – evitando-se, assim, o reducionismo e o pronunciamento sem conhecimento da realidade dos autos –, importa tratar da constitucionalidade de eventuais decretos de prisões preventivas com lastro na finalidade probatória, seja referente à obtenção de confissões ou de colaborações via delação premiada.

Pois bem.

O eminente jurista Amilton Bueno de Carvalho, em seu Garantismo penal aplicado (2006, p. 105-112), denunciou a “busca (sem limites) da confissão” como tentativa de ressuscitar antigas práticas inquisitoriais, típicas do medievo. Aprovado por unanimidade pela Quinta Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, em 20 de novembro de 2002, o acórdão relatado por Bueno de Carvalho teve por base o debate sobre a validade da antiga redação do art. 186 do Código de Processo Penal, segundo o qual o silêncio do acusado “poderá ser interpretado em prejuízo da própria defesa”.

O retrocitado dispositivo legal – criticado por sua inconstitucionalidade, frente à presunção de inocência e ao princípio nemo tenetur se detegere (“ninguém é obrigado a produzir provas contra si mesmo”) – foi substituído por redação constitucionalizada: “Art. 186. Depois de devidamente qualificado e cientificado do inteiro teor da acusação, o acusado será informado pelo juiz, antes de iniciar o interrogatório, do seu direito de permanecer calado e de não responder perguntas que lhe forem formuladas”.

Seria de se pressupor a impossibilidade processual do uso do silêncio em desfavor do acusado, seja para fins de fixação da responsabilidade penal ou mesmo para decretação de prisões provisórias. Na prática, entretanto, as coisas não ocorrem bem dessa maneira. O uso (geralmente verbal ou implícito, e raramente escrito) do silêncio, de modo desfavorável ao acusado – seja por falta de confissão ou de delação –, é prática que vem sendo “delatada” de norte a sul do País por causídicos.

Não à toa, o escritor e juiz de Santa Catarina Alexandre Morais da Rosa, no seu Guia compacto do Processo Penal conforme a teoria dos jogos (2014, p. 194), mencionou a substituição do padre pela figura do juiz no imaginário coletivo: “o acusado precisa se confessar”. Nesse cenário – embora não se trate de prática generalizada entre os órgãos judicantes –, pode-se indagar quantos juristas presenciaram afirmações judiciais no sentido de que, “se o acusado confessar, ele poderá ser muito beneficiado. Mas se não confessar...” Quantos? Aliás, sobre a parte final da assertiva (pós-reticências), seu teor dependerá muito do caso concreto, sendo o silêncio eloquente também utilizado para causar temor no acusado, caso o mesmo não confesse. E a presunção de inocência? Bem, essa está, ao menos, na Constituição (art. 5º, inciso LVII) e nos livros de Direito Penal, sejam estes obras críticas ou manualescas.

Em verdade, os juristas precisam “constitucionalizar” a prática e inibir os malefícios dos “riscos do silêncio” (ROSA, 2014, p. 194). O fator silêncio é projetado constitucionalmente como tutela da inocência por ampla defesa e não como presunção de culpabilidade. Nesse cenário, Aury Lopes Júnior (2014, p. 665) registra a necessidade de se abandonar o “ranço inquisitório” de visualizar a confissão como “rainha das provas” e o acusado como detentor da “verdade” a ser extraída a todo custo – ora, a confissão não deve ser a mera possibilidade de punir sem culpa na consciência do juiz, sendo preciso superar a visão silenciosamente lastreada no trinômio “herege, pecado e confissão”.

A denúncia de Alexandre Morais da Rosa e Salah H. Khaled Jr. deve ser cada vez mais conhecida pelo público e pelos juristas: A prática processual penal vem esquecendo a beleza constitucional do princípio “in dubio pro reo” e adotando a silenciosa (e perniciosa) concepção “in dubio pro hell” (na dúvida, réu ao inferno). No referido ambiente, o direito penal e processual penal ganha contornos de “quixotismo penal” – expressão utilizada pelo defensor público Daniel Britto (DPE-AM) –, no qual se combate o suposto “inimigo”, imaginando-se atacar um gigante, quando na verdade, trata-se de mero moinho de vento.

Com efeito, retornando às lições preciosas de Bueno de Carvalho (2013, p. 99), o autor apresenta o sistema penitenciário brasileiro em comparação com as antigas masmorras e relembra que não basta morrer, devendo tal morte ser má: “más” e “morras”, expressões eloquentes. Diante da realidade penitenciária brasileira, na qual muitas vezes não se ressocializa “pedrinhas” por “pedrinhas” da dignidade humana, haveria local mais apropriado à tortura psicológica do acusado que as “más” “morras” brasileiras? Aliás, masmorras não, correção seja feita, presídios pátrios.

A quase mitológica busca da verdade real tem deixado suas vítimas órfãs do devido processo legal. Se a verdade real for considerada um fim em si mesmo, então poderia ser buscada a qualquer preço? Nesta senda, Bueno de Carvalho (2013, p. 145) registra o uso de torturas (psicológicas ou físicas) em desfavor do acusado como instrumento para alcançar a superestimada verdade real. É ele também que relembra, lastreado em Nietzsche, que a verdade processual é aquela verdade convincente. E, sendo realista, a verdade convincente nem sempre é coincidente com a verdade real, que é uma ingenuidade epistemológica, conforme lição do renomado Luigi Ferrajoli (2014, p. 52).

Verdadeiramente, caso se admita o uso das prisões provisórias com o fim de provocar tortura psicológica (e, por que não dizer, também física se há cerceamento da liberdade de ir e vir?) hábil a estimular a confissão e a delação, estar-se-á também admitindo o que a doutrina vem chamando de doping processual e causando patente desequilíbrio de forças entre o Estado-acusador e a Defesa do acusado. Sobre a noção de doping processual, remete-se à leitura do já citado juiz Morais da Rosa (p. 195). O fair play processual precisa ser preservado, observando-se a chamada cláusula geral do devido processo legal. O doping processual é afrontoso à isonomia das partes, causando disparidade de armas afrontosa ao due process of law, a qual não deve ser admitida no âmbito processual.

Ora, se a Constituição determinou que “o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado” (art. 5º, inciso LXIII), e se uma prisão provisória, fora das hipóteses legais do art. 312 do Código de Processo Penal, é usada como meio de pressão (ou “tortura”) psicológica do acusado visando à busca de novas provas para embasar o pleito condenatório penal, então se estaria diante daquelas provas que “são inadmissíveis”, porquanto “obtidas por meios ilícitos” (art. 5º, inciso LVI, CF)? É a questão lançada à reflexão, para que a pós-Modernidade processual penal não se renda à ultrapassada Inquisição.

Assim, tem-se defendido (MAIA, 2015, p. 22-23) a inconstitucionalidade do uso da prisão antecipada (anterior à sentença condenatória transitada em julgado) para além das excepcionais hipóteses previstas em Lei, isso com lastro na total incompatibilidade com a principiologia do sistema processual penal pós-moderno do Brasil. Nesse ponto, traz-se a lume as sóbrias palavras do ministro Teori Zavascki, no HC 127.186-PR (j. 28.4.2015), incidentes sobre o caso “operação lava jato”, ao comentar a impossibilidade de utilização da prisão como mecanismo de pressão para obtenção da colaboração (supostamente espontânea) do acusado: “(...) seria extrema arbitrariedade (...) manter a prisão preventiva como mecanismo para extrair do preso uma colaboração premiada que, segundo a Lei, deve ser voluntária (Lei 12.850/13, art. 4º, caput, e § 6º). Subterfúgio dessa natureza, além de atentatório aos mais fundamentais direitos consagrados na Constituição, constituiria medida medievalesca que cobriria de vergonha qualquer sociedade civilizada” (Trecho de voto do Min. Teori Zavascki no HC n. 127.186-PR).

Na mesma esteira argumentativa, a visão contramajoritária do Processo Penal merece atenção e reflexão: “Não se pode condenar ninguém, em Democracia, em nome de fins políticos ou midiáticos” e muito menos a obsessão cautelar pode ser exercida por ambição à verdade acima de tudo, assassinando o jogo democrático e perpetuando ideais autoritários, como bem lecionam Morais da Rosa e Khaled Jr. (2014, p. 27) – as prisões não podem seguir a lógica paterna do cinto de castidade, sentenciam os autores. Verbi gratia, em caso de transferência de bens por acusado no processo penal, a segregação preventiva seria a medida judicial mais proporcional e adequada? Ou a determinação do bloqueio cautelar de bens poderia bastar? A ponderação é impositiva quando a opção costumeira da prática forense é a segregação sem pena definitiva, revelando-se nesse palco não só a imaginária luta contra os gigantes de Dom Quixote, como também a lógica paterna ou marital ultrapassada “de cerceamento absoluto da vontade potencial do outro” (ROSA e KHALED JR, 2014, p.23).

A nefasta prática do in dubio pro hell – por vezes perpetrada inconscientemente sob o pálio da bondade pro societate – necessita de constitucionalização sob o crivo do democrático in dubio pro reo. Nesse tino, registra-se a lição quixotesca: “quando a Justiça estiver em dúvida, devemos trocá-la pela misericórdia”.

Com efeito, poder-se-ia consignar que “ainda há juízes em Berlim” – rememorando a antiga história do século XVIII –, e indagar, parafraseando Agostinho Ramalho Marques Neto: “Quem nos salva da bondade dos bons?”. O questionamento é pertinente, pois se hoje levarem ilegalmente os judeus, os negros, os sindicalistas, os empregados, os miseráveis, e mesmo os corruptos, sem que cada cidadão ainda livre proteste pela tutela da Constituição, no futuro talvez encarcerem também os cidadãos honestos restantes, já não havendo quem lute pela observância da Constituição[1].1

Enfim, não se deve silenciar uma verdade constitucional: todos – culpados ou inocentes – são titulares do direito fundamental ao devido processo legal. Todos, repita-se. Ninguém pode ser privado de seus bens, direitos e liberdade sem a observância dos mandamentos constitucionais. “A visão punitivista (...) ainda prevalece na Justiça Criminal”, registra Luiz Eduardo Soares (2011, p. 179 e 181), que arremata: “não vamos fazer nenhuma nova sociedade planetária que valha a pena atropelando a Justiça (...). Não vamos produzir um jeito mais justo de viver, sacrificando a justiça no meio do caminho”. Portanto, que continue a caminhada pela constitucionalização da prática processual penal no Direito brasileiro.


Notas e Referências:

Carvalho, Amilton Bueno de Carvalho. Direito Penal a marteladas (algo sobre Nietzsche e o Direito). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013.

______. Garantismo penal aplicado. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.

CERVANTES, Miguel de. Dom Quixote de la Mancha. Tradução e adaptação de Ferreira Gullar. Ilustrações de Gustave Doré. 5ª ed. Rio de Janeiro: Revan, 2011.

Ferrajoli, Luigi. Direito e razão. 4. ed. São Paulo: RT, 2014.

MAIA, Maurilio Casas. O Risco do Silêncio: Das masmorras dos inquisidores às prisões provisórias. Revista Jurídica Consulex, Brasília (DF), v. 434, p. 22-23, Fev. 2015.

Lopes Júnior, Aury. Direito Processual Penal. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2014.

Marques Neto, Agostinho Ramalho. O Poder Judiciário na perspectiva da sociedade democrática: o juiz cidadão. Revista ANAMATRA. São Paulo, n. 21, p. 30-50, 1994.

Rosa, Alexandre Morais da. KHALED JR., Salah H. In dubio pro hell: profanando o sistema penal. Rio de Janeiro: Ed. Lumen Juris, 2014.

______.  Guia compacto do Processo Penal conforme a teoria dos jogos. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014.

SOARES, Luiz Eduardo. Justiça: pensando alto sobre violência, crime e castigo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011.

[1] Para melhor esclarecimento do argumento expendido, vide Martin Niemöller, Bertold Brecht e Eduardo Alves da Costa.


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