Os discursos utilizados pelos Órgãos de Controle Estatais se justificam pelos mesmos motivos, sejam pelas experiências internacionais ao combate à corrupção sistêmica, tendo sido como o que incentivou a introdução da figura da colaboração premiada na legislação infraconstitucional.
Para melhor entender o problema central da pesquisa aqui realizada, é necessário reproduzir novamente o que ocorreu no julgamento da Ação Penal nº 470, caso mais conhecido como “MENSALÃO”, na qual, definitivamente, houve uma grande ruptura no modelo do que se entende por “dolo eventual” de acordo com a Teoria da Cegueira Deliberada, como assim asseverou Guilherme LUCCHESI;
“Como visto, cegueira deliberada tem por função na common law permitir a expansão da punibilidade nos crimes que têm requisito subjetivo o elemento knowledge para situações em que o autor não tem conhecimento efetivo das circunstâncias elementares do crime. Já na sua aplicação para o direito penal brasileiro, não se visa a expandir por analogia o âmbito de incidência do conhecimento. A justificativa para a sua aplicação no contexto jurídico-penal nacional seria a sua identidade ou equiparação do dolo eventual.[1]
“...logo se verifica não ser suficiente dizer que dolo é simplesmente conhecimento e vontade, ou, então, a vontade consciente de praticar o tipo de injusto de um crime. Ambos componentes, intelectual e volitivo, do dolo precisam ser esmiuçados e definidos, para que se possa estabelecer de que dolo se está tratando. Admitindo, por exemplo, a existência de dolo sem um componente volitivo, sequer faz sentido distinguir dolo direto de dolo eventual.[2]
A influência internacional propôs ao ordenamento jurídico brasileiro mudanças significativas ao modus operandi de se investigar, punir, e justificar determinadas condenações com base em teorias estrangeiras, sejam norte americanas, alemãs ou italianas. Ressalte-se que na maioria dos países aqui citados, o sistema penal é commom law e não civil law como no Brasil, ou seja, há um problema grave de compatibilidade entre ordenamentos jurídicos.
A Alemanha para adequar-se ao instituto da colaboração premiada promoveu a alteração do código de processo penal alemão posteriormente à avaliação da Corte Federal Alemã, tamanha evolução legislativa exigia a reflexão dos operadores do direito.
Por esse discurso, o de se acabar com a corrupção sistêmica que se alastrou pelas estruturas dos sistemas democráticos do país, e, por conseguinte, com o julgamento da Ação Penal nº 470 motivou-se a introdução da colaboração premiada no ordenamento jurídico brasileiro. Com especial comparativo a “Operação Mãos Limpas”, da década de 1980 que ocorreu na Itália, a que inspirou a Operação Lava Jato.
O movimento de combate à corrupção e especialmente de políticos começou na Itália com o fruto de Berlusconni, até que ponto a investigação era política, de caça às bruxas, de pessoas com grande imagem ou influência política.
Pierpaolo Cruz BOTTINI ressalta sobre irregularidades que ocorreram na operação conduzida pela justiça italiana e faz o devido alerta para com experiências estrangeiras;
Na Itália, nos anos 1980, um popular apresentador de televisão chamado Enzo Tortora foi mencionado por diversos colaboradores como envolvido no tráfico de cocaína. Teve sua carreira destroçada, ficou meses preso até que a farsa fosse revelada. Descobriu-se que integrantes da organização criminosa Nova Camorra delataram Tortora porque era alguém importante. Envolvê-lo em seus relatos seduzia as autoridades pela popularidade do escândalo e afastava a necessidade de delatar os reais líderes do crime organizado. Anos depois, Tortora foi absolvido, desfecho irrelevante para a vergonha pretérita. A história italiana é um alerta. A colaboração premiada é importante, desde que não se perca a perspectiva de que se trata de um depoimento parcial, válido apenas se acompanhado de elementos materiais de prova, como e-mails, comprovantes de pagamento, gravações. Determinar a prisão, a busca e apreensão ou a condenação com base exclusiva em depoimentos de colaboradores é desconhecer a lei, a natureza do instituto e as más experiências estrangeiras.[3]
O enfoque para a introdução de determinado instituto é a denominada Operação Mãos Limpas, o discurso é motivado justamente pela experiência Italiana. Não é novidade ao fato da legislação brasileira importar conceitos e teorias estrangeiras de maneira forçada, pois, como já salientado, esses conceitos são incompatíveis com o modelo jurídico acusatório do ordenamento jurídico brasileiro.
Como por exemplo, nos EUA, o Ministério Público é competente para barganhar o tempo de cumprimento de pena e é juridicamente capaz de realizar acordos com os acusados, em alguns casos, sem sequer a necessidade de responder processo criminal, desde que cumpram os requisitos exigidos pelo representante do Estado. Neste caso, a própria estrutura legislativa “commom law” possibilita esta modalidade de negociação, logo, no Brasil como sendo estruturalmente “civil law”, o Ministério Público pode atuar conforme a legislação vigente, sem acarretar na ruptura do modelo de acusação.
Se utiliza também como conceito importado da Alemanha, a Teoria do Domínio do Fato, a qual sofreu as devidas críticas dos maiores doutrinadores do país, em especial Lenio STRECK em artigo publicado no Conjur[4]. Devidos apontamentos são preocupantes, pois, na dogmática penal não se deu um significado para a supracitada teoria, ela carece de anemia significativa e, mesmo assim, foi deliberada na Ação Penal nº 470 e é utilizada pelos Tribunais.[5]
Fica evidente que o posicionamento dos Tribunais não adota critérios específicos para as teorias que estão sendo importadas pelo Poder Judiciário, para com a situação da colaboração premiada não é diferente. Alguns doutrinadores classificam o Brasil como importador à la carte de teorias estrangeiras.
Resumidamente, a colaboração premiada é o resultado de experiências norte americana e europeia introduzidas no ordenamento jurídico brasileiro, sem se levar em conta a estrutura do nosso sistema. Não apenas em matéria de direito penal ou processual penal, matérias de direito civil, direito econômico, etc. O Direito Comparado é regularmente utilizado pela jurisprudência dos Tribunais[6]
Claus ROXIN, jurista alemão, em seminário na EMERJ, Rio de Janeiro, criticou a má utilização da Teoria do Domínio do Fato, in verbis;
(...) Roxin diz que essa decisão precisa ser provada, não basta que haja indícios de que ela possa ter ocorrido. Nas últimas semanas, sua teoria foi citada por ministros do STF (Supremo Tribunal Federal) no julgamento do mensalão. Foi um dos fundamentos usados por Joaquim Barbosa na condenação do ex-ministro José Dirceu. “Quem ocupa posição de comando tem que ter, de fato, emitido a ordem. E isso deve ser provado”, diz Roxin. (...) O que me perturbava eram os crimes do nacional socialismo. Achava que quem ocupa posição dentro de um chamado aparato organizado de poder e dá o comando para que se execute um delito, tem de responder como autor e não só como partícipe, como queria a doutrina na época.[7]
Como por exemplo, nos Estados Unidos, aproximadamente noventa por cento dos delitos são submetidos à acordo, antes mesmo que haja processo penal, ou seja, culturalmente o próprio sistema penal dos Estados Unidos da América suporta a negociação de pena com o representante do Ministério Público e o Acusado, é uma condição da própria historicidade da Nação, nada de inovador.[8]
Necessário observar este aspecto, pois, logo aos primeiros meses exercendo a função de Ministro da Justiça, o ex Juiz Federal Sérgio Fernando MORO propôs a elaboração de legislação que suporte esta modalidade de negociação entre o Ministério Público e os acusados[9], se utilizando da experiência norte americana como parâmetro de resolução de casos de menor complexidade, quando o acusado confessa crime com pena máxima inferior a quatro anos, desde que praticados sem violência ou grave ameaça, diferentemente dos acordos de colaboração premiada que estão sendo judicializados para o combate à corrupção da alta sociedade.
Porém, se utilizar como parâmetro o país da América do Norte poderá trazer consequências gravíssimas ao modelo de processo penal brasileiro, tendo em vista que os EUA alcançaram a maior população carcerária mundial e, quando se fala em autonomia entre MP e defesa para elaborar acordo sem que haja o processo penal, deve-se atentar ao fato de que o Estado não abandona a função de tutelar os acusados frente à elaboração de acordo. Muito pelo contrário, o acordo sem que seja necessário movimentar a máquina judiciária apenas outorga a responsabilidade as autoridades de controle de tais medidas alternativas, não se encerra a punibilidade como os discursos se proliferam no Brasil.
O discurso é o mesmo, de que o ordenamento jurídico brasileiro deve se aperfeiçoar no combate à corrupção sistêmica ante ao fato das organizações criminosas exercerem um grande papel de confiança entre seus integrantes. Na qual o Estado com o aparato disponível não tem forças suficientes para o combate ao crime organizado.
Importante salientar que, existe um movimento no Brasil que busca incansavelmente a introdução do instituto da colaboração premiada na legislação infraconstitucional e que virou realidade, sem se questionar a respeito dos limites de atuação dos protagonistas aos acordos.
Dentre outras críticas a respeito do instituto da colaboração premiada, o fator de maior preocupação é a deliberação unilateral a respeito do “Pacote Anticrimes” proposto pelo então Ministro da Justiça, sem sequer convocar a verdadeira academia de direito penal e direito processual penal para o debate, os quais, efetivamente, são autoridades no assunto.
Notas e Referências
[1] LUCCHESI, Guilherme Brenner. A punição da culpa à título dolo: o problema da cegueira deliberada. Disponível em: http://www.acervodigitalufpr.com.br. Acesso em: 09 nov. 2018.
[2] Idem.
[3] MIGALHAS. Pierpaolo Cruz Bottini. Os limites da delação premiada. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI247760,81042-Os+limites+da+delacao+premiada. Acesso em: 11 nov. 2018.
[4] Aqui se faz, aqui se paga ou “o que atesta Malatesta”. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2012-out-11/senso-incomum-aqui-faz-aqui-paga-ou-atesta-malatesta. Acesso em: 04 fev. 2019.
[5] Lenio Luiz Streck. O mensalão e o “domínio do fato – tipo ponderação”. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2012-ago-06/lenio-streck-mensalao-dominio-fato-algo-tipo-ponderacao. Acesso em: 11 nov. 2018.
[6] Problemas na importação de conceitos jurídicos estrangeiros. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2012-ago-08/direito-comparado-inadequada-importacao-institutos-juridicos-pais. Acesos em: 01 fev. 2019.
[7] Claus Roxin ensina sua teoria ao STF!. Disponível em: http://criminalistanato.blogspot.com/2012/11/claus-roxin-ensina-sua-teoria-ao-stf.html. Acesso em: 02 fev. 2019.
[8] Francisco Dirceu Barros. 90 % a 97 % de todos os casos criminais nos Estados Unidos são submetidos a acordo (plea bargaining) e não vão a julgamento. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/60933/90-a-97-de-todos-os-casos-criminais-nos-estados-unidos-sao-submetidos-a-acordo-plea-bargaining-e-nao-vao-a-julgamento. Acesso em: 11 nov. 2018.
[9] Projeto de Lei Anticrime adequa legislação à realidade atual e torna o cumprimento de penas mais eficiente. Disponível em: http://www.justica.gov.br/news/collective-nitf-content-1549284631.06. Acesos em: 01 fev. 2019.
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