O PRINCÍPIO “IN DUBIO PRO SOCIETATE” COMO DECORRÊNCIA DA SOBERANIA DOS VEREDICTOS.    

11/04/2019

 

Novamente tornamos a mais um dos assuntos polêmicos que envolvem o Tribunal do Júri, por conta de recente decisão do Supremo Tribunal Federal em que se afastou a aplicação do princípio “in dubio pro societate” na primeira fase do procedimento especial, em acórdão no qual se acolheu o voto do relator, Ministro Gilmar Mendes.

Não obstante o brilhantismo do citado voto condutor, ousamos discordar de alguns pontos em que se decidiu pelo não acolhimento do susodito princípio, concedendo-se, de ofício, ordem de “habeas corpus” para restabelecer a sentença de impronúncia em relação aos imputados.

Como se sabe, no Brasil, a instituição do Tribunal do Júri foi implantada em 1822, para julgar os crimes de imprensa. Em 1824, na Constituição do Império, o Tribunal do Júri passou a compor o Poder Judiciário, cuja competência foi ampliada para julgar as infrações civis e criminais.

A instituição foi mantida na Constituição de 1891 e nas demais Cartas e Emendas Constitucionais brasileiras que a sucederam, à exceção da Constituição de 1937.

Atualmente, na Carta de 1988, dispõe o art. 5º, XXXVIII:

“Art. 5º (...) XXXVIII -  é reconhecida a instituição do Júri, com a organização que lhe der a lei, assegurados:

a) a plenitude de defesa;

b) o sigilo das votações;  

c) a soberania dos veredictos;  

d) a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida.”

Portanto, é pacífico que, além dos princípios constitucionais assegurados a todos os julgamentos (devido processo legal, ampla defesa, contraditório etc), o art. 5º, XXXVIII, da Constituição Federal, enumera quatro princípios fundamentais pertinentes ao Tribunal do Júri: a) plenitude de defesa, b) sigilo das votações; c) soberania dos veredictos e d) competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida.

No que se refere ao procedimento do Júri, é denominado bifásico ou escalonado, eis que abrange uma fase preliminar, preparatória, seguida de uma fase definitiva.

A primeira fase, preparatória (“judicium accusationis” ou juízo de acusação, juízo de admissibilidade ou juízo de prelibação), se destina ao julgamento da denúncia, resultando em um juízo de admissibilidade da acusação. Já a fase definitiva (“judicium causae” ou juízo da causa, juízo de mérito ou juízo de delibação), por seu turno, tem a finalidade de julgar o mérito da causa, transferindo aos jurados o exame da procedência ou improcedência da pretensão acusatória.

Na doutrina pátria, sempre foi dominante a concepção de que, ao término da primeira fase do procedimento do Júri, prevaleceria o princípio “in dubio pro societate”, de modo que o juiz singular, em caso de dúvida, deveria encaminhar o réu ao plenário, onde ele enfrentaria o julgamento democrático, legítimo e constitucional pelos seus pares.

Evidentemente que essa concepção de há muito vem enfrentando respeitável oposição por outra parcela da doutrina, a qual se posiciona contrariamente ao princípio “in dubio pro societate”, pugnando a aplicação, em ambas as fases do procedimento especial, do princípio “in dubio pro reo”, de sorte que, havendo dúvida acerca da existência de indícios de autoria e prova da materialidade, deveria o julgador singular impronunciar o réu.

Muitos processualistas, na ânsia de fundamentar suas posições doutrinárias contrárias ao “in dubio pro societate”, sustentam que não se trata de um princípio de direito e que a sua existência não encontra respaldo em qualquer norma pátria, principalmente na Constituição Federal.

Ousamos discordar. Como é cediço, nosso ordenamento jurídico, ao lastrear-se em base principiológica constitucional, estabelece princípios explícitos e implícitos. Os princípios explícitos se erguem sob preceitos de raízes constitucionais expressas, de lastro aparente, positivados na carta maior. Já os princípios implícitos decorrem dos primeiros, encontrando na fonte explícita seu nascedouro e sua força de legitimação. É o que ocorre com diversos princípios processuais largamente aceitos, como duplo grau de jurisdição, não autoincriminação, economia processual e imparcialidade, dentre outros.

Pois bem, o princípio “in dubio pro societate” deriva naturalmente do princípio da soberania dos veredictos, expressamente consagrado, no Tribunal do Júri, no inciso XXXVIII, alínea “c”, do art. 5º da Constituição Federal. Trata-se evidentemente de princípio constitucional implícito que deve nortear o juiz singular na primeira fase do procedimento do Júri, em que o julgador, sem enveredar-se pelo mérito da questão, apenas e tão somente admite que o réu seja submetido ao legítimo e democrático julgamento por seus pares.

Ademais, deve ser ressaltado que o Supremo Tribunal Federal, ao acolher o voto do ilustre relator Ministro Gilmar Mendes (Recurso Extraordinário com Agravo 1.067.392), em nenhum momento negou a existência do princípio “in dubio pro societate”, embora o critique severamente, expondo e reafirmando que, naquele caso concreto, não deveria o Tribunal de Justiça do Ceará tê-lo aplicado, mas, antes, deveria ter prestigiado a decisão do juiz de primeiro grau, que havia decidido pela impronúncia dos acusados.

Deixa claro o Ministro Gilmar Mendes, em seu voto, que “embora existam precedentes deste Supremo Tribunal Federal no sentido de uma aplicação sem maiores cautelas de tal princípio, inclusive de minha relatoria, creio que esta é situação que carece de atenta análise.”

Outro ponto que merece ser destacado e devidamente rebatido nas justificativas daqueles que discordam do “in dubio pro societate”, e que ficou assentado no voto do Ministro Relator, é que a utilização desse princípio pelo magistrado singular, ao término da primeira fase do procedimento do Júri para pronunciar o réu, representaria um “imenso risco” de ser o acusado julgado por seus pares, reconhecendo que o “julgamento leigo” ocasiona “riscos em razão da falta de conhecimentos jurídicos e da ausência do dever de motivação dos veredictos”.

Ora, a nosso ver, o Tribunal do Júri constitui uma instituição visceralmente democrática, existente desde a Grécia antiga, que areja o sistema judiciário penal e confere a oportunidade de o povo decidir soberanamente sem as amarras preestabelecidas de um sistema muitas vezes preconceituoso e forjado para a proteção da casta dominante.

Não há como prestar sustentáculo à tese de que o julgamento pelo Júri popular seja um “imenso risco”, como verberado por aqueles que, a pretexto de verem prevalecer o interesse do criminoso sobre o interesse da sociedade, inquinam a soberania popular de perigosa e arriscada, procurando deslegitimar esse julgamento democrático e constitucional sob o argumento de “falta de conhecimentos jurídicos” dos integrantes do Conselho de Sentença.

O Tribunal do Júri é legítimo, constitucional, refletindo a Justiça em sua pureza e simplicidade, devendo seus membros, como representantes do povo, ser respeitados e prestigiados, sendo soberanas as suas decisões, ainda que desagradem uma elite jurídica que os discrimina por serem leigos em Direito.

O princípio “in dubio pro societate” é, portanto, derivado do princípio da soberania dos veredictos, como corolário da mais pura expressão popular democraticamente erigida à categoria de preceito constitucional pétreo, merecendo ser lembrado, como bem ressalta Claus Roxin, que “dignidade humana e igualdade compõe condições essenciais da liberdade individual”[1] .

 

 

Notas e Referências

[1] Estudos de Direito Penal. 2ª edição. Tradução de Luís Greco. Rio de Janeiro, Renovar. 2012.

 

Imagem Ilustrativa do Post: Pequeno mosaico de cubos ou prédios vistos do alto. // Foto de: Cícero R. C. Omena // Sem alterações

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