Coluna Substractum / Coordenadores Natã Ferraz, Juliana Jacob e Luciano Franco
A utilização factual dos instrumentos do Estatuto da Cidade tem sido um dos maiores impasses para a consolidação da política urbana no Brasil. Mesmo após um longo período de luta em direção à redemocratização, do intenso movimento pela reforma urbana que resultou em um capítulo específico acerca da política urbana na Constituição Federal e da elevação do Município à condição de ente federativo encarregado do controle da política urbana, as questões urbanísticas e as mazelas sociais ainda são um sério problema a se combater.
O processo de urbanização acelerado suscitou em um robusto impacto na valorização da terra, que por sua vez instigou a conduta especulativa do mercado imobiliário. Sob este contexto, as cidades ainda encaram sérios problemas de reserva especulativa, que se exteriorizam em vazios urbanos, exiguidade de terra urbanizada, ausência de infraestrutura, imóveis abandonados, vacantes e em ruínas.
A concepção jurídica da função social da propriedade implicou na reestruturação da hermenêutica de diversos preceitos, como liberdade, propriedade e posse. Isso porque enquanto na matriz individualista a liberdade se manifesta no direito de fazer tudo aquilo que não prejudique ou lese o direito de outro indivíduo, o que também pressupõe o direito de nada fazer. Sob o prisma da função social da propriedade, o direito caminha junto com o dever de executar certa atividade, bem como de desenvolvê-la da melhor maneira. É exercer o direito consoante a função social.
Neste contexto, a Constituição determinou instrumentos de execução sucessiva que promovam a utilização apropriada dos imóveis urbanos. Esta tríade de instrumentos de execução sucessiva, quais sejam: parcelamento, edificação e utilização compulsórios; IPTU progressivo no tempo e a desapropriação com pagamento em títulos da dívida pública, tem suas determinações básicas instituídas no Estatuto da Cidade, e as determinações específicas são delimitadas através de legislação municipal especial que considere as peculiaridades locais.
Quando se traz à baila a ideia de função social da propriedade, não se pode prescindir de fazer menção a teoria que constitui o marco histórico no desenvolvimento do direito de propriedade, concebida por Léon Duguit. No início do Século XX, Duguit propõe o conceito jurídico inicial da função social da propriedade, influenciado principalmente pelas perspectivas positivistas de Augusto Comte e Saint-Simon.
As contemplações de Diguit não se pautam especificamente em normas jurídicas, mas implicam em uma análise sociológica, cuja idealização do Direito não se limita ao feito do legislador. O Direito é, portanto, corolário dos progressivos e espontâneos fatos sociais. Dessa feita, faz-se necessário superar as concepções extremamente individualistas que prevalecem no direito privado.
Uma vez rechaçado o caráter absoluto da propriedade, resta cristalino que tanto o indivíduo quanto a própria coletividade não detém direitos, mas dispõem sim, de uma função a cumprir para com a sociedade. Assim, o direito é obrigante à todos os sujeitos, e até mesmo ao Estado.
Transportando a conjectura de Duguit para a esfera patrimonial, significa dizer que a propriedade não é um absoluto formal e intangível. O proprietário, pelo simples fato de deter a riqueza, isto é, a propriedade, deve, necessariamente, cumprir a função social. De modo que seus direitos de proprietário da coisa estarão unicamente protegidos e garantidos na medida em que a propriedade for cultivada e não for fadada à ruína. Do contrário a ingerência estatal que atue no sentido de promover a função social da propriedade será legítima.
A justificação da intervenção do Estado na propriedade é legitimada não apenas no intuito de impor condutas negativas ao proprietário, para que se evite abusos e lesões a terceiros, mas também no sentido de determinar imposições positivas que obstem a especulação imobiliária e a não utilização da propriedade.
Os que compram grandes quantidades de terrenos a preços relativamente baixos e que se mantém durante vários anos sem explorá-los, esperando que o aumento natural do valor do terreno lhes proporcione grande benefício, não seguem uma prática que deveria estar proibida? Se a lei intervém, a legitimidade de sua intervenção não seria discutível nem discutida. Isto nos leva para muito longe da concepção de direito de propriedade intangível, que implica para o proprietário o direito a permanecer inativo ou não, segundo lhe agrade. (DUGUIT, 1920, p. 184).
A Lei Federal 10.257/2001, conhecida como Estatuto da Cidade, foi sancionada com o fito de regulamentar os artigos 182 e 183 da Constituição Federal de 1988, no Capítulo que trata da Política Urbana. O Estatuto da Cidade foi um grande avanço normativo que junto com a Constituição de 1988, veio a legitimar o Direito Urbanístico como uma importante disciplina e um ramo autônomo do Direito.
Com o fito de obstar a retenção especulativa do solo urbano e permitir a atuação do Poder Público no sentido de assegurar o cumprimento da função social da propriedade é que o artigo 182 CF/88 determinou instrumentos de execução sucessiva que promovam a utilização apropriada dos imóveis urbanos. Esta tríade de instrumentos de execução sucessiva, quais sejam: parcelamento, edificação e utilização compulsórios (PEUC); IPTU progressivo no tempo e a desapropriação com pagamento em títulos da dívida pública, tem suas determinações básicas instituídas no Estatuto da Cidade.
Dessa forma, a Lei 10.257/2001 é norma geral e conduz os Municípios na aplicação de tais instrumentos, determinando parâmetros mínimos que devem ser observados pelos Municípios. Sendo assim, a Lei Federal não dispõe no tocante dos pormenores da aplicação em cada caso, cabendo à legislação municipal, a responsabilidade de disciplinar a questão de acordo com as especificidades locais. No que pese ao parcelamento, edificação e utilização compulsórios, a regulamentação dos parâmetros básicos estão previstos nos artigos 5º e 6º do Estatuto da Cidade
É certo que o Plano Diretor tem importante papel na política urbana, uma vez que é o instrumento normativo essencial para a definição e para a eficácia no plano concreto da função social da propriedade. O Plano Diretor é o responsável por determinar os padrões de ocupação do território municipal, estabelecendo diretrizes gerais de uso e ocupação condizentes com as singularidades de cada região da cidade. E é nos parâmetros determinados pelo Plano Diretor que as áreas passíveis de incidência do parcelamento, edificação e utilização compulsórios são determinadas. De tal modo, percebe-se que o Plano Diretor é elemento fundamental para a efetividade dos instrumentos de política urbana, notadamente o PEUC.
Logicamente, a área delimitada para a aplicação do PEUC pelo Plano Diretor não pode abranger toda a extensão territorial da cidade, uma vez que se assim fosse estipulado, o instrumento perderia seu viés de sanção administrativa, e se transformaria em regra de uso para a comunidade como um todo. Convém salientar que o PEUC é ferramenta estratégica, cuja área de aplicação seja condizente com espaços de urbanização não adequados à ocupação e vazios urbanos.
Além disso, em que pese a competência para disciplinar as regras de aplicação do PEUC, IPTU progressivo e desapropriação sanção, o Estatuto da Cidade é responsável pela disposição sobre o conteúdo mínimo, o que significa dizer que a Lei 10.257/2001 estabelece um rito mínimo que deve ser atentado pelos municípios. Este procedimento mínimo abrange a notificação averbada em cartório ao proprietário do imóvel, através de agente do órgão público competente.
A partir da notificação, o Estatuto da Cidade confere o prazo de um ano para que o proprietário protocole um projeto perante o órgão municipal competente. Uma vez que o projeto é aprovado o proprietário conta com o prazo de dois anos para o efetivo início das obras do empreendimento.
Evidenciado o descumprimento do proprietário no que tange aos prazos atinentes à obrigação do parcelamento, edificação ou utilização compulsórios, o IPTU progressivo no tempo é o instrumento da política urbana que o município deve manejar. Disposto no artigo 7º do Estatuto da Cidade, trata-se de um dos mais polêmicos e controversos instrumentos.
Esta medida tem sustentação constitucional, consoante preconiza o artigo 182, §4º, inciso II, e deve ser regulamentado pela mesma lei municipal que dispõe acerca do PEUC, assim como deve determinar o protocolo para que de fato se evidencie o descumprimento da obrigação de parcelar, edificar e utilizar. Com efeito, o início da cobrança do IPTU progressivo não depende especificamente da legislação municipal, mas sim de medidas administrativas.
O caráter progressivo consiste no aumento da alíquota do imposto segundo os critérios legais estipulados, o que permite que certos contribuintes, notadamente àqueles que não estão dando a devida função social à sua propriedade, tenham o ônus de arcar com o pagamento de uma alíquota mais alta. No entanto, há um limite para a majoração da alíquota no tempo, que é de cinco anos consecutivos.
Convém salientar que o fim precípuo do tributo em comento é o de dar eficácia a função social da propriedade, e não deve se confundir com a arrecadação pela Fazenda Pública, razão pela qual o instrumento é conhecido pela sua função extrafiscal, que se esteia "no uso de instrumentos tributários para obtenção de finalidades não arrecadatórias, mas estimulantes, indutoras ou coibidoras de comportamentos, tendo em vista outros fins, a realização de outros valores constitucionalmente consagrados". (ATALIBA, 1990, p. 235).
Além da limitação do tempo de incidência da majoração do tributo, existem outras limitações que devem ser rigorosamente consideradas. Tratam-se de limites máximos, tais como, o valor da alíquota a ser aplicada não poderá ultrapassar o dobro do valor da alíquota aplicada no ano anterior. Outrossim, a alíquota terá um valor máximo de 15%.
Frente ao descumprimento do proprietário no que tange ao parcelamento, edificação e utilização compulsórios do imóvel urbano, aliado à ausência de resultado com a aplicação do IPTU progressivo no tempo, o Município está legitimado a desapropriar. Trata-se da mais extrema medida dos instrumentos de política urbana.
Na verdade é uma segunda sanção que está associada a uma única obrigação que é a de dar ao imóvel urbano uma destinação em consonância com a função social da propriedade. Neste passo, a primeira sanção se consubstancia na incidência do IPTU progressivo no tempo, isto é, com a majoração da alíquota cujo limite máximo é 15%, no decorrer do lapso temporal de cinco anos.
E embora a desapropriação seja uma decisão discricionária do ente municipal, justamente por ser uma segunda sanção, não pode o Município, dado o não parcelamento, edificação ou utilização compulsórios proceder diretamente à desapropriação. É necessário a incidência ininterrupta do IPTU progressivo por no mínimo cinco anos, antes que se dê prosseguimento à desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública.
Na desapropriação sanção o pagamento não é prévio e nem em dinheiro, tendo em vista que o pagamento da indenização neste caso específico se dá através de títulos da dívida pública, resgatáveis em dez anos, em prestações anuais, iguais e sucessivas.
Passados treze anos da promulgação da Constituição de 1988, foi o Estatuto da Cidade, o grande marco regulatório responsável por estabelecer normas de ordem pública e interesse social atinentes à política urbana, regulando o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e bem-estar dos cidadãos e, ainda, do equilíbrio ambiental.
O Estatuto traz em seu bojo um conjunto de instrumentos jurídico urbanísticos, a serem manejados pelo ente municipal a fim de consubstanciar ao pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana, os quais deverão atender a determinadas diretrizes, dentre as quais destaca-se a gestão democrática da cidade e a justa distribuição dos benefícios e ônus decorrentes do processo de urbanização.
Não obstante os significativos avanços normativos logrados, a realidade urbana no cenário nacional hodierno é marcada por uma acentuada segregação socioespacial e por um robusto déficit habitacional, de modo que nas últimas décadas evidencia-se um agravamento de antigos problemas urbanos e o surgimento de novos desafios nessa seara.
Notas e Referências
ALMEIDA, Fernando Dias Menezes de; MEDAUAR, Odete. Estatuto da Cidade: Lei 10.257, de 10.07.200, Comentários. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002.
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