O princípio da (des)vinculação motivada e os precedentes obrigatórios

10/09/2016

Por Paulo Gurjão e Maurilio Casas Maia - 10/09/2016

A decisão judicial ganha novos contornos a partir da vigência do novo Código de Processo Civil (NCPC). A análise sobre a aplicação (ou não) um precedente é agora questão necessária ao dever fundamental de motivação das decisões judiciais. Ou seja, tanto aplicação, quanto a não aplicação dos precedentes, farão parte do dever constitucional de fundamentação dos decisórios – razão pela qual o presente texto versa sobre o princípio (des)vinculação motivada dos decisórios judiciais quanto à aplicação (ou não) dos precedentes obrigatórios.

Inicialmente, assenta-se que a proposta do presente escrito é defender a necessária justificação das razões decisórias adotadas pelo juiz a partir da aplicação (ou não) do precedente. Para tanto, dois são os momentos estruturantes da análise: em primeiro plano, é preciso compreender a amplitude normativa do dever de motivação qualificada (art. 489,§1º do CPC/15), considerando os aspectos de legitimidade da decisão perante os jurisdicionados e coerência argumentativa interna; depois, entender como a força vinculante exercida pela ratio do precedente condiciona tal motivação, uma vez que o provimento que pretenda não aplicar a tese jurídica deve ser estruturado em função da distinção dos pressupostos de fato informantes do caso concreto, garantindo adequação da tutela pretendida, promovendo a construção democrática do direito e respeitando um sistema hierarquizado de orientações interpretativas.

A nova ordem processual é fruto das aspirações de um Estado Constitucional de Direito. Significa dizer que a solução dos conflitos, enquanto função estatal politicamente instituída, informa-se a partir de princípios constitucionais estruturantes que expandem sua normatividade para a estrutura do procedimento judicial e determinam o objetivo da Jurisdição. O processo constitucionalizado, em verdade, significa uma aproximação em duplo sentido: as fontes da ciência processual são previstas no texto constitucional – notadamente enquanto direitos fundamentais – e, ainda, as normas infraconstitucionais passam a ser analisadas enquanto necessária concretização dos mandamentos constitucionais[1].

A partir de tais premissas, a fundamentação das decisões prevista no NCPC representa verdadeira qualificação legislativa a direito fundamental previsto na Constituição, imputando ao magistrado verdadeiro dever de, analiticamente, justificar a construção normativa que solucionará o caso concreto que está sendo julgado, materializando-se como parte do dever de cooperação edificado com o Novo Código, no sentido de prever para a atividade jurisdicional deveres de esclarecimento, motivação, consulta e auxílio durante todas as fases do procedimento[2] enquanto condição de legitimidade e estruturação adequada do provimento.

O §1º do art. 489 do NCPC prevê o que é uma decisão judicial não fundamentada, elencando hipóteses em que o magistrado condiciona suas razões decisórias a circunstâncias claramente ilegítimas do ponto de vista teórico, como por exemplo, quando se limitar à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a questão decidida (inciso I) ou quando empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso (inciso II).

Da análise teórica das regras contidas nos incisos é possível concluir, inicialmente, que a previsão normativa densifica a necessidade de que o magistrado decida de forma coerente com o ordenamento, objetivando garantir efetividade e adequação à tutela concedida. Além disso, percebe-se que a lógica da argumentação deve ser direcionada também à segurança jurídica e à igualdade perante o provimento, corroborando com a ideia de legitimidade externa da própria função jurisdicional perante a sociedade.

Em havendo o reconhecimento de tal normatividade ao dever de motivação, é preciso identificar também a inovação na ordem de desenvolvimento na construção da solução judicial: se o magistrado não pode deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento, é preciso que se defina a existência de uma necessária desvinculação motivada nos casos em que se pretende não aplicar a tese jurídica/orientação interpretativa anteriormente construída, levando em consideração os efeitos adotados para a teoria do precedente e a necessidade de construção dialógica da decisão judicial.

A classificação enquanto princípio processual tem por fundamento a ideia de se tratar de preceito que, ao prescrever fins a serem atingidos, serve de critério interpretativo para aplicação do ordenamento processual, principalmente ao se ressaltar a importância da decisão judicial para os escopos do processo. Obviamente, não se trata de mera classificação conceitual, mas, em verdade, de estrutura normativa – assim reconhecida a partir do pós-positivismo enquanto marco filosófico do neoconstitucionalismo[3] - com aplicação prática imprescindível para a higidez do procedimento e garantia de efetividade da decisão.

Como leciona Humberto Ávila[4], o objetivo da categorização deve ser relacionado à clareza conceitual exigida pela ciência, tendo por escopo a melhor aplicação do Direito por meio da correta argumentação teórica dos responsáveis por tal procedimento. No caso da desvinculação motivada, o conceito depende da compreensão do que representa a obrigatoriedade do precedente judicial no sistema decisório criado com a nova legislação. A partir de então, será possível balizar, na prática, o desenvolvimento da interpretação jurídica tendo como marco referencial a justificativa para eventual não aplicação de tese jurídica desenvolvida anteriormente.

Para tanto, diga-se: a regra da vinculação ao precedente busca suas raízes em normas constitucionais, quais sejam, a segurança jurídica e a igualdade perante os provimentos jurisdicionais[5]. Sobre o primeiro aspecto, significa que o padrão decisório que se concretiza a partir do respeito ao precedente é responsável, a um só tempo, por legitimar a atividade do Poder Judiciário e garantir uma melhora qualitativa nas decisões judiciais. Em relação ao segundo fundamento, o precedente efetiva a ideia de igualdade material em relação à decisão judicial, eis que casos idênticos deverão ser resolvidos a partir da aplicação da mesma norma jurídica.

Tecnicamente, para além da discussão teórica de fundamentação, a estrutura de vinculação às razões decisórias que basearam determinada tese jurídica, significa que diante dos mesmos pressupostos fáticos e da mesma relação jurídica, o juiz deverá pautar-se em orientação interpretativa especificamente construída pelos Tribunais que possuem a competência para unificar a aplicação do direito, seja constitucional ou infraconstitucional. Trata-se de tese jurídica que possui o potencial para ser universalmente aplicável na solução de causas em que a matéria de direito possui as mesmas características e, de tal forma, merecem solução padronizada.

Contudo, tal obrigatoriedade do precedente hierarquicamente superior, é relativa. Ou seja, é possível que se prove que o precedente não se aplica ao caso concreto levado a julgamento. Teríamos algo verdadeiramente prejudicial para o sistema judicial e sem qualquer sentido prático a circunstâncias de as razões decisórias serem tratadas algo estático, sem que houvesse a oportunidade adaptá-las à realidade dos diferentes casos surgidos diariamente. Compara-se para garantir a correspondência ou não. Se os casos não apresentam identidade jurídica, não há que se falar em obrigatoriedade na utilização do precedente.

É então que surge a distinção enquanto técnica aplicada com o efeito de se subordinar, ou não, o caso que está sendo julgado a um precedente. A distinção propriamente dita representa a possibilidade de manter o direito de acordo com as necessidades materiais da sociedade, já que é possível provar a não aplicação do precedente ao caso concreto a partir de sua identificação[6].

No que diz respeito à teoria da decisão, objeto de análise do presente texto, desvinculação motivada significa exatamente distinção no sentido de técnica argumentativa utilizada pelo magistrado para decidir casos diferentes da orientação interpretativa contida na tese jurídica vinculante. Não se trata da possibilidade desobedecer precedentes que não aparentam ser pertinentes, sendo necessário considerar, para além das situações fáticas eventualmente diferentes, as causas de pedir entre os casos comparados. A finalidade é usar dessa comparação para dizer que a tese jurídica é inaplicável – pautada em circunstâncias de fato e direito diversas – e não que é um precedente mal construído, com fundamentos baseados em errônea percepção da realidade dos casos.

De tal forma, ao prever que não é fundamentada, e portanto nula, a decisão que simplesmente deixar de seguir precedente sem demonstrar a existência de distinção ou superação do entendimento (art. 489, §1º, VI do NCPC), o Código fundamenta a norma-princípio da desvinculação motivada, uma vez que só se garantirá a materialização do direito fundamental à justificação a partir do momento em que se souber o porquê da possibilidade de não respeitar a obrigatoriedade das razões decisórias construídas quando dos julgamentos anteriores.

Na verdade, é preciso que se diga que a motivação para a desvinculação serve como técnica decisória também nas hipóteses em que o juiz pretende aplicar de ofício a tese jurídica anterior. A norma que aqui se discute é construída em um modelo de decisões judiciais hierarquizadas, isto é, em que existem órgãos responsáveis por garantir que seja extraída a interpretação mais condizente com o Texto Constitucional e que, a partir de tal atividade, condicionam os julgamentos realizados nas instâncias inferiores. Assim, ainda que não haja veiculação nas argumentações das partes, há a necessidade de motivar a não aplicação do precedente, se existente, pautando tal conduta no dever na construção dialética da decisão e na efetivação do contraditório.

Portanto, a necessidade de motivação da não aplicação do precedente consagra uma releitura na teoria da decisão judicial: a fundamentação desenvolvida não toma como parâmetro o “livre” convencimento do magistrado, mas sim a necessidade de resolver casos iguais de forma igual, sendo circunstância legitimadora da desvinculação o desenvolvimento de argumentos que garantam a efetividade de uma nova tese jurídica, isto é, que tal regra seja capaz de promover resultado prático adequado à pretensão que não se amolda ás hipóteses previstas para o precedente.


Notas e Referências:

[1] DIDIER JR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil. 15ª ed. Vol. 1 – Salvador: Editora Juspodium, 2013, p. 32-33.

[2] O aprofundamento teórico do princípio da cooperação é condição metodológica para a análise do modelo constitucional de processo, principalmente no que diz respeito ao redimensionamento do contraditório. Contudo, no presente momento, a intenção é apenas apontar a motivação das decisões enquanto aspecto que revela o resultado da inserção do magistrado no diálogo processual.

[3]  BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do direito. O triunfo tardio do direito constitucional no Brasil. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 240, p.1-42, 2005.

[4] ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios. Da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 13ª ed. São Paulo: Malheiros Ed., 2013.

[5] Importa destacar que é possível defender que outros preceitos constitucionais, em decorrência da estrutura que se propõe na Constituição para a teoria da decisão, também justificam, de forma menos incisiva, a obrigatoriedade do precedente. Por exemplo, não há qualquer dúvida que a abreviação do procedimento a partir da aplicação de orientação interpretativa já assentada pelas Cortes de vértice é circunstância que materializa a razoável duração do processo.

[6] MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes Obrigatórios. 2ª ed. Revista, atualizada e ampliada – São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.


paulo-gurjao. Paulo Henrique Gurjão da Silva é Professor do Curso Preparatório do Amazonas (CPA) e Assistente Jurídico no TJAM. Graduado em Direito pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e pós graduando em Direito Público pela Universidade do Estado do Amazonas (UEA).. .


Maurilio Casas Maia pngMaurilio Casas Maia é Mestre em Ciências Jurídicas pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e doutorando em Direito Constitucional e Ciência Política (UNIFOR). Pós-Graduado lato sensu em Direito Público: Constitucional e Administrativo; Direitos Civil e Processual Civil. Professor de carreira da Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e Defensor Público (DPE-AM). 

Email: mauriliocasasmaia@gmail.com / Facebook: aqui.


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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