O Prejuízo e as Nulidades Processuais Penais – módulo I: um panorama inicial acerca dos principais questionamentos referentes ao assunto

11/02/2016

Por Jorge Coutinho Paschoal - 11/02/2016

O tema das nulidades é um dos mais controvertidos do Direito Processual, tanto na teoria quanto na prática. Basta uma rápida consulta à jurisprudência para verificar que uma mesma situação jurídica ora dá ensejo ao reconhecimento da nulidade, ora não; e o mais preocupante é constatar que muitas dessas decisões contraditórias emanam dos Tribunais Superiores, em que deveria haver maior preocupação com a uniformização das questões de Direito, entre as quais se circunscrevem as nulidades.

Em uma explicação simples, a nulidade processual decorre da omissão ou da prática imperfeita do ato processual: origina-se, em síntese, de um ato jurídico atípico; uma constatação, a princípio, singela, que não ensejaria maiores indagações.

Em que pese a aparente tranquilidade da matéria, o fato é que, ao se aprofundar o seu estudo, constatam-se diversas dificuldades, tanto de cunho teórico quanto prático.

Com efeito, ainda existe grande controvérsia com relação ao conceito de nulidade e qual seria a sua natureza jurídica. Até hoje não há anuência entre os estudiosos a respeito de qual o melhor critério para a sua classificação (em nulidade ou anulabilidade; nulidade absoluta ou relativa; cominada ou não; explícita ou implícita; em vício sanável/insanável).

Igualmente, há grande confusão na delimitação do âmbito das nulidades com as demais invalidades, sem falar na dificuldade em se diferenciarem as nulidades das hipóteses de inexistência jurídica (e mesmo com algumas hipóteses de meras irregularidades).

Pode-se dizer que tanto a doutrina quanto a jurisprudência chegaram a um acordo em um ponto: a nulidade está diretamente relacionada à proteção de valores relevantes para o Direito e processo. Nesse sentido, a nulidade não se restringiria ao vício de forma, já que, para ser reconhecida, é necessária a violação ou, ao menos, a colocação em risco de algum valor relevante do ordenamento. Para dizer se há, ou não, violação de algum desses valores, e, consequentemente, se há nulidade, a doutrina tradicional sempre se serviu de determinados indicativos, entre os quais a gravidade do vício do ato processual. Conforme o grau da imperfeição, as nulidades seriam divididas em absolutas e relativas.

As relativas diriam respeito à violação de normas postas em favor do interesse das partes e o seu reconhecimento dependeria da alegação do interessado no prazo legal; nesses casos, tradicionalmente sempre se entendeu que o reconhecimento da nulidade não seria imediato, ou melhor, não se daria de plano, sendo imprescindível a demonstração do prejuízo sofrido pela parte, decorrente do vício.

Já as nulidades de ordem absoluta decorreriam de imperfeições especialmente graves, que transcenderiam o interesse particular, atingindo o interesse púbico, de modo que o seu conhecimento poderia ocorrer de ofício, a qualquer tempo. Não haveria, assim, prazos preclusivos para sua alegação. O vício seria insanável e o prejuízo presumido. Não por outra razão se pontua, nessas mesmas hipóteses, que seria dispensável demonstrar o prejuízo, havendo quase que um automatismo em se reconhecer a nulidade.

Uma primeira dificuldade na adoção desses conceitos – particularmente, da dicotomia entre nulidade absoluta/relativa e entre interesse público/privado - é que o critério utilizado para o reconhecimento da nulidade absoluta, isto é, consistente na violação do interesse público, mostra-se muito vago. É difícil vislumbrar, dentro do Direito Processual - sobretudo no processo penal – uma única norma sequer que proteja, exclusivamente, o interesse exclusivo das partes. Por isso, seria, a princípio, impróprio falar em nulidades relativas dentro do processo penal (e quiçá até mesmo do processo civil).

Um critério um pouco mais objetivo – para estabelecer uma melhor diferenciação entre o que poderia se entender por nulidade absoluta e relativa - seria o da violação dos direitos e das garantias fundamentais. Sendo assim, decorreria a nulidade de um vício de forma que coloque em perigo algum valor constitucionalmente relevante.

Nulidade absoluta decorreria de uma imperfeição que viole um direito fundamental enquanto relativa seria aquela que não infrinja a Constituição ou as normas de garantia.

Um problema que surge é que, em primeiro lugar, essa afirmação, calcada na teoria da atipicidade constitucional, apesar de correta, constitui - principalmente nos dias de hoje - uma obviedade, sobretudo no processo penal. É difícil – se não impossível - pensar em qualquer hipótese de nulidade processual que não tenha relação, ainda que indireta, com algum valor de ordem constitucional ou norma de garantia.

Outrossim, apesar de a teoria constitucional das nulidades ter sido criada para melhor resolver os problemas envolvendo a matéria, sobretudo para fins de uma maior e melhor diferenciação entre as nulidades “mais graves e menos graves” (absolutas e relativas), o que se verifica, na prática, é que, da mesma forma que o critério anterior, isto é, da ordem pública, também o critério da vulneração da ordem constitucional tem se mostrado tão (ou mais) genérico, tendo fracassado e se mostrado imprestável para o fim proposto. Na verdade, basta uma rápida pesquisa à jurisprudência, mormente quando estiver calcada na teoria constitucional, para mostrar que inexistem critérios (o mesmo vale para a doutrina, pois o que é nulidade absoluta para um não é para outro).

Paralelamente a isso, tem-se abrandado o entendimento de que a nulidade absoluta implicaria, quase que imediatamente, a imprestabilidade dos atos processuais. Assim, a princípio – apenas excepcionalmente - quando não se verificasse um prejuízo, a nulidade - ainda que absoluta - não deveria ser reconhecida.

O problema é que, como tudo que é pensado para ser exceção acaba virando a regra, também essa “relativização”[1] das nulidades absolutas veio a se tornar uma constante.

Hoje, mais e mais tem sido comum questionar se o ato atípico não acarretou algum prejuízo, de modo a preservar a validade do ato praticado; quer dizer, também para as hipóteses de nulidade absoluta passou-se a indagar acerca da (in)ocorrência do prejuízo, o que antes – a rigor - não se fazia, já que se entendia ser o prejuízo presumido, ou ínsito.

Pode-se afirmar, assim, que, modernamente, as nulidades absolutas acabaram sendo cada vez mais relativizadas, tornando-se, assim, menos absolutas, mais relativas.

Mais recentemente, inclusive, alguns julgados - não obstante reconheçam a existência do prejuízo e a própria gravidade do vício - têm ressalvado que se passou muito tempo para a nulidade ser alegada (ainda que se trate de nulidade absoluta!), o que impossibilitaria o seu reconhecimento; trata-se, a nosso ver, da mais nova onda de relativização.

Do exposto, qualquer sujeito atuante na justiça, principalmente o advogado, pode constatar essa flexibilização. Ao suscitar a ocorrência de alguma nulidade, os Tribunais sempre encontram algum argumento para afirmar que - especificamente naquele caso (ou quiçá: justamente no seu caso!) - não houve um prejuízo.

A imprecisão da jurisprudência também se aplica a uma parte da doutrina, que tem enveredado pela seara da flexibilização, sem, contudo, fornecer balizas ou mesmo algum norteamento mais seguro e palpável a respeito do que se deve entender por prejuízo.

Colocada a questão nesses termos, tem-se que, em linhas gerais, o principal parâmetro utilizado, hoje, para reconhecer a nulidade centra-se na análise do prejuízo, indagando-se, para tanto, se, a despeito do vício, a finalidade do ato foi, ou não, alcançada. O problema é que as diretrizes utilizadas para analisar quando há, ou não, prejuízo, são imprecisas. O prejuízo poderia ser analisado pelo prisma do não alcance da finalidade do ato. Contudo, ainda que seja possível falar na finalidade do ato, tem-se que esse é um dado igualmente incerto e fluido: afinal, haveria uma finalidade ou várias finalidades do ato (ou melhor, para cada ato)? Não alcançar a(s) finalidade(s) do ato equivaleria ao prejuízo? O próprio prejuízo se mostra um dado genérico e aberto, constituindo um conceito que, do ponto de vista objetivo, se apresenta de difícil apreciação.

Afinal, o que é prejuízo? Quando há prejuízo? Ele é um dado aferível pela ótica subjetiva das partes, ou não? Se não, quando, objetivamente, haveria prejuízo? Haverá prejuízo quando o vício prejudicar a busca da verdade e a administração da justiça? Quem diz que, na hipótese, não houve prejuízo à busca da verdade no processo? Quem diz qual é a verdade do processo? Outra questão em aberto, que suscita também algumas dúvidas: o prejuízo tem que ser efetivo ou pode ser meramente potencial? Havendo dúvidas quanto à sua ocorrência, como solucionar a questão? A dúvida acerca do prejuízo milita a favor de alguém? A quem cumpre fazer a prova do prejuízo (ou melhor: poder-se-ia falar em um “ônus” de alguém em demonstrá-lo)? Não constituiria a prova do prejuízo, sobretudo quando endereçada à parte, um ônus demasiadamente pesado, isto é, uma espécie de prova diabólica? A alegação do prejuízo não poderia levar à antecipação de alguma tese jurídica, prejudicando a parte, em sua linha de atuação e estratégia? Seria possível falar em ponderação de valores constitucionais na avaliação da nulidade?

Tudo isso torna a tarefa do intérprete e do aplicador do direito ainda mais difícil, sendo apenas uma parte dos questionamentos a ser analisada neste trabalho.

Com efeito, já existe na comunidade acadêmica, bem como entre operadores do direito, uma preocupante sensação[2] de falta de sistematização da matéria, que beira, em certo ponto, o casuísmo, como bem discorre Vicente Greco Filho[3].

Uma das razões do estudo levado a caso por nós a respeito do prejuízo e das nulidades processuais penais[4] residiu no fato de, infelizmente, ainda hoje, não ser nada incomum verificar contradições a respeito do tratamento do tema, em sede jurisprudencial.

Desse modo, constituiu um dos objetivos do estudo averiguar essa situação, até para confirmar ou desmentir a sensação quanto à falta de uniformização da matéria, presente tanto no meio acadêmico quanto forense, a qual, a princípio, era apenas uma hipótese, que, depois, segundo pensamos, restou comprovada.

Por ora, a respeito do assunto das nulidades processuais, a título introdutório, era o que cabia falar. Se possível, em cada mês, será dedicada uma coluna à matéria das nulidades, sendo expostas algumas inquietações, premissas e conclusões a que chegamos.


Notas e Referências:

[1] O termo relativização das nulidades tem sido utilizado na doutrina e na jurisprudência: DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 14.ª ed. São Paulo, Malheiros, 2009, p. 154, nota de rodapé n. 191; STF, HC 88.193/SP, Ministro Relator Eros Grau, 2.ª T., j. 25.04.2006, v.u.

[2] Não constitui pecado, mesmo em um trabalho científico, começar as indagações investigativas por meio de uma sensação ou intuição. Ensina Miguel Reale: “o homem não é apenas ‘sensibilidade’, porque também ‘sente afetivamente’, reage emocionalmente, tem simpatias e aversões, comove-se, apaixona-se. (...) A afirmação de que o homem é um ser que pensa é exata, mas, sob certo prisma, poderia representar uma incompreensão do humano. O homem é sim um ser que pensa, sente e age, razão pela qual Hessen, em sua clara monografia sobre Teoria do Conhecimento, distingue, em função das três forças fundamentais do ser espiritual (pensamento, sentimento e vontade), estas três espécies de intuição: racional, emocional e volitiva, todas suscetíveis de apreensão imediata de um objeto. (...) Antes de lembrarmos algumas teorias intuicionistas, não é demais ponderar que, mesmo fora do campo filosófico, no domínio das ciências exatas, se reconhece o papel da intuição como instrumento de saber. Em pequeno e admirável livro, intitulado Aonde vai a Ciência?, Max Planck – o cientista que com a teoria dos ‘quanta’ deu início à Nova Física – põe em relevo a importância da intuição intelectual, não só quanto aos princípios fundamentais, mas também no plano da pesquisa experimental, mostrando como o investigador autêntico sabe ‘com os olhos do espírito’ penetrar nos mais delicados processos que se desenrolam perante ele, construindo intuitivamente todo um mundo de hipóteses destinado a ser verificado segundo ‘medições experimentais’. No prefácio da mencionada obra, Albert Einstein escreve o seguinte: - ‘Assim, o trabalho supremo do físico é o descobrimento das leis elementares mais gerais, a partir das quais pode ser deduzida logicamente a imagem do mundo. Porém, não existe um caminho lógico para o descobrimento dessas leis elementares. Existe unicamente a via da intuição, ajudada por um sentimento para a ordem que jaz através das aparências, e este Einfühlung se desenrola pela experiência’. Ora, essa colocação do problema, feita pelos cietistas, coincide com a dos filósofos, como Max Sheler, N. Hartmann e M. Heidegger, segundo os quais em todo conhecimento há como que um ‘dado antecipatório’, toda pergunta pressupondo certa intuição ou ‘percepção liminar’ do perguntado” (REALE, Miguel. Filosofia do direito 20.ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 133-135).

[3] GRECO FILHO, Vicente. Manual de processo penal. 7.ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 285.

[4] Cf: PASCHOAL, Jorge Coutinho. O prejuízo e as nulidades processuais penais: um estudo à luz da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2014. Igualmente, em artigo: PASCHOAL, Jorge Coutinho. As nulidades no processo penal e o prejuízo. In: http://www.editoraforum.com.br/ef/wp-content/uploads/2015/01/nulidade.pdf.


Jorge Coutinho Paschoal

. . Jorge Coutinho Paschoal é Advogado e Mestre em Direito Processual Penal pela Universidade de São Paulo (USP). . .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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