O Poder que Manda Renova suas Vestes

05/07/2019

Coluna Práxis / Coordenadoras: Juliana Lopes Ferreira e Fabiana Aldaci Lanke 

Este estudo se propõe a aludir o processo organizativo da sociedade humana, através dos séculos e dos modelos de produção, como forma de identificar o estabelecimento do poder e suas relações contextuais. Tendo em vista que a abordagem deste tema fomenta o entendimento sobre as realidades emergentes e os reflexos da alocação do poder no contexto sócio-político atual. Foucault (1998, p.12-13) ressalta que é preciso pensar os problemas políticos em termos de verdade e poder, considerando-os como termos aproximados, ligados. Assim, quem detém o poder, também, o faz com a verdade. Razões que motivam o conhecimento exploratório sobre o que se compreende como verdade estabelecida e poder organizado.

O arcabouço histórico da distribuição do poder estruturado em instituições demonstra que, embora séculos tenham se passado entre um e outro modelo organizativo da sociedade, há resquícios de atos e comportamentos que se mantem na esfera da ação humana. Como destacou Garland apud Foucault (2008, p.71) “um dos hábitos mais danosos do pensamento contemporaneo é análise do presente como sendo precisamente, na história, um presente de ruptura”. Assim, para compreender um dado no presente é salutar compreender que há ocorrência histórica continuada de ações humanas e construções sociais que consolidam a figura atual, imediatamente localizável. As sociedades humanas, historicamente, vêm formando tipos de comportamento, sistemas e modelos de organização e distribuição do poder, junto aos diversos modelos de produção.

Na sociedade primitiva, a sobrevivência humana, foi possibilitada pelo processo extrativista nos variados biomas. Foram as mudanças climáticas como estiagem ou “período chuvoso”, e demais fenômenos naturais que lançaram o homem primitivo à intempérie da escassez de alimentos, esta adversidade levou a cultivar plantas. Foi exigida a mudança dos hábitos para que a espécie humana pudesse se preservar.

Na sociedade primitiva o poder era exercido pelo chefe ou xamã, com partilha de alimentos e tradições voltadas a sobrevivência do indivíduo em grupo. Situações dissonantes eram levadas a autoridade de prestígio que agiam como mediadores do conflito ou arbitravam decidindo a contenda, mesmo através do exercício do poder de força. O uso da força apresenta uma característica marcante está na divisão do trabalho por sexo, definindo competências do homem e da mulher, essas sociedades não se voltavam a geração de lucro ou acumulação. (TOMAZI, 2000, p. 36-37).

O processo de mudanças para a garantia de sobrevivência humana, levou o homem a criar o sistema patriarcal. Enfatizado nos relatos bíblicos, o modelo familiar parecia com as atuais comunidades rurais de agricultura de subsistência. À época, o armazenamento de grãos e a opção pela produção de produtos ou criação de animais se dava pela adequação ao clima local. A valorização imperativa e central da figura do pai, provedor e conhecedor caracterizava este modelo. Essa característica do patriarcalismo, permanece em inúmeras culturas atuais. Manifestada por diversas linguagens como a submissão de mulheres às condições e restrições impostas e a centralização do chefe da família como detentor do poder de decisão sobre os demais.

Na escravocrata esboçou-se um modelo de Estado, como figura superior aos demais civis e possuidor do poder de ordem da sociedade, na qual estrangeiros, escravos e mulheres eram vistos como inferiores, sem inferência em decisões políticas ou administrativas das cidades. Aos cidadãos, era permitido o efetivo poder sobre escolhas, incluindo vida e morte dos escravos. “Com a invenção da moeda, a economia deixa de ser natural, baseada na troca em espécie, e passa a ser monetária, enriquecendo os comerciantes e proprietários de oficinas, os quais, ainda sem representação política, tendem a aspirar ao poder.” (ARANHA, MARTINS, 1993, p.191). A distinção de produto e valor materializado passou a delimitar posses.

            Sequencialmente, na História, o poder passa a ser direcionado por instituições consolidadas, para além da figura de uma pessoa. A Igreja se uniu ao Estado e definiu o exercício divinizado da ordem no período feudal, os detentores do poder tinha domínio sobre todas as instancias da vida dos súditos. O poder divino era efetivado por seus representantes terrenos, que dispunham de concessões e papéis a cumprir, cada instituição de poder com sua configuração. “A Igreja é de riqueza espiritual, voltada para os interesses da salvação da alma e deve encaminhar o rebanho para a verdadeira religião por meio da força da educação e da persuasão”. (IDEM, 1993, p.200). Às “massas” (população), restava o medo – exercício do poder descrito por Nicolau Maquiavel nas orientações ao príncipe[1] - e a súplica pela clemência e salvação eterna. A crença dominante na “expiação dos pecados” regia a vida regrada, e garantiria bem-estar na eternidade pós-morte. Com a busca pela salvação lançava as pessoas ao pagamento de indulgências, pelo medo constante da punição e sufrágio para o paraíso.

O prestígio dos detentores poder era tamanho, que este decidia sobre vida e morte dos demais, os problemas e quaisquer conflitos eram levados aos “Senhores”, que chegava a uma resolução por meio da autoridade. Com venda de indulgências e o temor do julgamento final que operacionalizava como a mão invisível do Estado religioso ordenando o comportamento dos cidadãos.

            No século XVIII, a Revolução Industrial lançou os homens a outro patamar de relação econômico-social. A venda da força do trabalho, aliada ao processo de alienação do status quo, estabeleceu regras sociais e culturais passadas por gerações criando modelos e padrões forjados pelo capitalismo. Os anseios humanos que se voltavam a adequação com vistas a salvação eterna, cedeu espaço aos princípios do mercado, a compra e o consumo. Na busca pela garantia, para si, do que Polanyi (1983, p. 94) denominou como mercadoria fictícia: moeda, terra e força de trabalho, pois em si não possuem valor comercial, o valor ou a precificação é algo atribuído sobre esses elementos.

Então, sobressai uma noção do homem possuidor de bens, terras e contratos, que se estendem até relação conjugal. De modo que a mulher fica assegurada sob a guarda civil do seu marido, ou proprietário. Assentada sobre a ideia da individualidade, um dos principais marcos referenciais do conflito familiar e do embrião cultural da passividade coletiva frente as violações e negligencias da dignidade humana com a ideia do poder sobre outro. Situação originada no campo macrossocial, que por regra de padronização social, reflete diretamente nas ações individuais.

No caso do Brasil, há menos de meio século ainda perdurava a desigualdade de gênero assegurada pela legislação. A Constituição Federal de 1988, garantiu a igualdade a todos os gêneros perante a Lei, e, o Código Civil de 2002 (Lei nº 10.406/02), estabeleceu que indivíduos acima de 18 anos são considerados emancipados e aptos a vida civil. Nota-se que o poder do Estado sobre os indivíduos age em todas as esferas da vida humana, inclusive no reconhecimento de dados naturais.

Importante, que as observações sobre o recorte histórico apresentado suscitem reflexões, sobre a lógica do poder e do domínio. Pela constante análise da realidade e das relações implicadas no contexto socio-histórico pode-se propor ação efetiva com impulso para novos comportamentos na sociedade. Como reforça Chomsky (2017, p.60) “A amnésia histórica é um fenômeno perigoso, não só porque mina a integridade moral e intelectual, mas também porque prepara o terreno e estabelece as bases para crimes que ainda estão por vir.” De tal modo, é fundamental que o processo de implantação ou “aparente” localização do poder de compra como poder como a “capacidade para fazer algo”. (GUARESCHI, 2000, p. 97).

Com o passar dos tempos e com o Pós-modernismo, emergiram demais revoluções industriais. Contudo, a conflitante relação entre mandatários e mandados, possuidores e despossuídos, seja com outro cenário ou títulos, permanece. A Era Pós-Moderna inaugura uma lógica de “ambiguidade” para Bauman (2010, p.51-53), ou seja, um período em que as pessoas podem encaixar os fatos de acordo com suas crenças. A venda comercial do “faça-você mesmo” incutiu no ideário comum que todos possuem poderes, de compra de posse e, acima de tudo, poder sobre si mesmo. O autor ressalta, inclusive, a característica fluida que vende diferenças, como exemplo pelo princípio imperante do “seja você”, cria formas de conduzir a venda e o controle sobre o indivíduo.

O direcionamento da “ideia” de poder dissolvido entre as massas, poder individual pode ser um indício de que é necessário entender donde provém essa máxima. Se a percepção sobre o fato é pessoal, ou se faz forjada pelos interesses de poderes dominantes, ou reprodução de afirmativas a exemplo do que ocorre nas redes sociais. Ou seja, é fundamental que a sociedade reflita constantemente, sobre seus valores e a quem estes valores são postos a serviço.

 

Notas e Referências

ARANHA, Maria Lucia de A. e MARTINS, Maria Helena P. Filosofando: introdução à filosofia. São Paulo: Moderna, 1993.

BAUMAN, Zygmunt. Capitalismo parasitário: e outros temas contemporâneos. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.

BRASIL, Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002.  Disponível em <  http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/2002/L10406.htm >. Acesso em 20 abr. 2019.

CHOMSKY, Noam. Quem manda no mundo? São Paulo: Planeta, 2017.

FOUCAULT, Michael. A microfísica do poder. 13ª. ed.  Graal: Rio de Janeiro, 1998.

GARLAND, David. A cultura do controle: crime e ordem social na sociedade contemporânea. Rio de JaneIro: Revan, 2008.

GUARESCHI. Pedrinho. Ideologia. In: STREY, Marlene Neves. et. al. Psicologia social contemporânea. 4ª. ed.  Petrópolis: Vozes, 2000.

POLANYI, Karl. A grande transformação: as origens da nossa época. 2ª ed. Rio de Janeiro: Campus, 2000.

TOMAZI, Nelson Dacio. Iniciação à sociologia. 2. ed. São Paulo, Atual: 2000.

[1] É a pessoa do príncipe que se torna o intermediário entre homens e Deus, ou o intérprete humano da Suprema Razão.” (ARANHA, MARTINS, 1993, p.181)

 

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