O poder negocial do Ministério Público nos acordos de colaboração premiada - Por Rodrigo Medeiros da Silva

01/02/2018

O instituto da colaboração premiada é algo recente no Direito brasileiro e atualmente ganha grande repercussão com a chamada Operação Lava-Jato. O Estado brasileiro implementa a adoção de tal instituto por ser signatário de acordos internacionais, como a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, promulgada pelo Decreto nº 5.687, de 31 de janeiro de 2006 e a  Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional, promulgada pelo Decreto nº 5.015, de 12/03/2004. A colaboração premiada está prevista não somente na Lei nº 12.850/2013 (que trata do combate às organizações criminosas), mas também na Lei nº 8.072/1990 (Lei dos Crimes Hediondos) e na Lei nº 11.343/2006 (Lei de Drogas). No entanto, seria conveniente que houvesse uma unificação dos procedimentos, bem como limites negociais fossem estabelecidos, a fim de se evitar o estabelecimento de cláusulas que possam ir de encontro a disposições legais. A propósito, os acordos celebrados no âmbito da Operação Lava-Jato merecem uma análise mais aprofundada com intuito de se verificar possíveis atropelos da lei. Para tanto, relevante foi o debate travado no CPMI da JBS no útltima deia 21 de novembro de 2017, no qual participaram os professores Alexandre Morais da Rosa, Aury Lopes Júnior, Jacinto Nelson de Miranda Coutinho e o ex-ministro da Justiça Eugênio Aragão. [1]

O instrumento da colaboração premiada está sendo utilizado de forma recorrente, o que leva boa parte dos acusados a serem incentivados a colaborarem. E este incentivo ocorre, pois a ameaça de encarceramento está sempre presente. Ou seja, as colaborações são trocadas pela liberdade. Logo, a prisão cautelar acaba sendo um verdadeiro meio de tortura para o acusado. Com este modelo de colaboração, muitos acusados acabam formalizando acordos, sem qualquer consistência, nos quais inocentes, muitas vezes, são acusados para que colaboradores tenham os benefícios extravagantes oferecidos pelo Ministério Público. Não há nenhuma preocupação na gestão da prova no processo penal.

Tomando como exemplo o acordo celebrado entre o Ministério Público Federal e o acusado Paulo Roberto Costa, homologado pelo Ministro Teori Zawaski, constata-se, na Cláusula 5ª, I, alínea ”a”, a previsão de que a prisão cautelar e as penas criminais serão cumpridas de forma domiciliar pelo prazo de 1 (um) ano, com tornozeleira eletrônica ou equipamento similar, na medida da efetividade da colaboração e nos termos dos parágrafos deste artigo, sem detração do prazo de prisão preventiva cumprido.” [2] Esta disposição é claramente ilegal pois contraria o disposto nos artigos 317 e 318 do Código de Processo Penal. A prisão domiciliar deve atender a questões de cunho humanitário. Idosos acima de 80 anos, doentes, gestantes, presos cujos filhos não tenham 12 anos completos e que necessitem de seus cuidados, etc. Portanto, descabida esse tipo de negociação. Aliás, não cabe ao Ministério Público estabelecer como o custodiado deva ser recolhido. Esta é uma competência exclusiva do magistrado.

Já no Termo de Colaboração de Nestor Cerveró, verifica-se que as partes dispuseram que a pena máxima seria de 25 anos de reclusão, bem como “suspensão dos demais feitos e procedimentos criminais na fase em que se encontrem quando atingido esse limite, desde que não haja recurso pendente com o objetivo de redução da pena, somadas para esse fim as penas já aplicadas e as que vierem a ser aplicadas nos processos cobertos pelo caput desta cláusula 5ª.” [3] Tal disposição é absolutamente ilegal pois a fixação da pena, em caso de condenação, é competência exclusiva do juiz da causa. O Ministério Público e a defesa não podem estabelecer disposições que estejam fora do alcance negocial. O juiz da causa não pode estar adstrito ao acordo celebrado no momento da fixação da pena. Mais adiante, as partes acordam que, independentemente do preenchimento nos artigos 33 a 48 do Código Penal, o cumprimento de pena privativa de liberdade será de um ano, cinco meses e nove dias em regime fechado; um ano e seis meses em regime fechado diferenciado, em prisão domiciliar, com monitoramento eletrônico; um ano em regime semiaberto diferenciado, em prisão domiciliar, com monitoramento eletrônico; e um ano em regime aberto diferenciado, em prisão domiciliar, dispensado o monitoramento eletrônico. O próprio Ministério Público admite o desrespeito à lei, o que parece surpreendente. O Ministério Público inova ao estabelecer um regime diferenciado de cumprimento de pena. O que seria regime diferenciado? Não há disposição legal que defina tal situação. Cláusula semelhante também consta no Termo de Colaboração de Pedro Barusco.[4]

No acordo celebrado com Alberto Yousseff há a previsão de suspensão de ações penais, inquéritos e processos e de prazos prescricionais por um período de dez anos, tendo como condição o trânsito em julgado de sentenças condenatórias cujas penas somem 30 anos de prisão. [5] Convém destacar que as hipóteses de suspensão de ações, inquéritos e de prazos prescricionais é matéria reservada à lei. Não podem as partes transigirem a respeito. Além disso, o Ministério Público inobserva princípios como obrigatoriedade e indisponibilidade da ação penal. Aliás, tal inobservância é verificada nos termos de colaboração dos executivos do Grupo J&F. Chega-se a oferecer o perdão judicial para os casos que já possuem denúncia oferecida. [6] O perdão judicial é concedido exclusivamente pelo magistrado por meio de uma sentença, como preceitua o artigo 120 do Código Penal. No acordo celebrado com Paulo Roberto Costa, o Ministério Público assume o compromisso de promover “o arquivamento de fatos novos em relação ao acusado trazidos pelo colaborador em relação aos quais não exista, na data do acordo, nenhuma linha de investigação em qualquer juízo ou instância”. [7] O arquivamento é determinado pelo juiz. Ademais, a leitura do artigo 28 do Código de Processo Penal evidencia bem esta atribuição do magistrado.

Ainda no acordo de Alberto Yousseff, há a previsão do depósito de dois veículos, produto de crime, em favor de duas filhas do colaborador. [8] A lei é clara ao definir o sequestro adquiridos com o proveito do crime. Assim, evidencia-se mais uma clara disposição que vai de encontro à preceito legal.

Também chama atenção a renúncia dos colaboradores ao direito de recorrer de decisões condenatórias. O colaborador não recorre para não perder os benefícios. O Ministério Público também não recorre, pois não tem interesse recursal. O magistrado assiste passivamente já que acordo está homologado. O acordo acaba sendo restrito ao triunvirato Juiz - Ministério Público – Colaborador, ficando terceiros, possíveis atingidos (acusados) pelo acordo, desprotegidos diante das revelações apresentadas.

Diante das ilegalidades apontadas, a título exemplificativo, conclui-se que a aplicação do instituto da colaboração premiada deve ser revista. O excesso de acordos celebrados demonstra a incapacidade do Estado em investigar e de criar condições mínimas para que o Ministério Público ofereça denúncia. O vazio normativo, constituído pela falta de limites negociais ao Ministério Público, constitui um sério problema que deve ser discutido e observado detidamente pelo magistrado no momento da homologação dos acordos. Não se busca demonizar o instituto. É importante a sua utilização. Todavia, nada justifica iniciativas que extrapolam a Constituição e a lei. Ao Ministério Público é imprescindível o estabelecimento de limites na atuação negocial. Nunca é demais lembrar que compete ao Ministério Público a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, como preceitua o artigo 127 da Constituição da República. É necessária uma reflexão acerca da temática.

 

Notas e Referências:

[1] Audiência pública da CPMI da JBS. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=GlDgc0LQUkk. Acesso em 30 nov. 2017.

[2] Cláusula 5ª, I, alínea ”a”, do Termo de Acordo de Colaboração Premiada de Paulo Roberto Costa. Disponível em https://www.conjur.com.br/dl/lava-jato-acordo-delacao-paulo-roberto.pdf. Acesso em 28 nov. 2017.

[3] Cláusula 5ª, § 1º, alínea “a”, do Termo de Acordo de Colaboração Premiada de Nestor Cuñat Cerveró. Disponível em https://d2f17dr7ourrh3.cloudfront.net/wp-content/uploads/2016/06/Cerver%C3%B3-vol-1.pdf. Acesso em 28 nov. 2017.

[4] Cláusula 5ª, I, do Termo de Acordo de Colaboração Premiada de Pedro José Barusco Filho. Disponível em http://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/wp-content/uploads/sites/41/2015/02/858_ANEXO2.pdf. Acesso em 30 nov. 2017.

[5] Cláusula 5ª, II, do Termo de Acordo de Colaboração Premiada de Alberto Yousseff. Disponível em http://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/wp-content/uploads/sites/41/2015/01/acordodela%C3%A7%C3%A3oyoussef.pdf. Acesso em 28 nov. 2017.

[6] Cláusula 4ª, parágrafo único, do Termo de Acordo de Colaboração Premiada de Florisvaldo Caetano de Oliveira. Disponível em https://www.poder360.com.br/wp-content/uploads/2017/05/PET_7003_APENSO_04.pdf. Acesso em 30 nov. 2017.

[7] Cláusula 5ª, II, do Termo de Acordo de Colaboração Premiada de Paulo Roberto Costa. Disponível em https://www.conjur.com.br/dl/lava-jato-acordo-delacao-paulo-roberto.pdf. Acesso em 28 nov. 2017.

[8] Cláusula 7ª, § 3º, do Termo de Acordo de Colaboração Premiada de Alberto Yousseff. Disponível em http://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/wp-content/uploads/sites/41/2015/01/acordodela%C3%A7%C3%A3oyoussef.pdf. Acesso em 28 nov. 2017.

 

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